A revisão da matéria dada noutros tempos tem-se revelado como uma das características mais fascinantes (e por vezes mais ingratas ou injustificadas) da cultura popular das duas últimas décadas. Se, por um lado, há menos risco, ao mastigar algo que já foi digerido antes — por vezes, mais do que uma vez — por outro a assimilação de que existe um original e que este já foi pensado e trabalhado por outras pessoas pode motivar uma reviravolta criativa.
Alice Walker foi a primeira mulher negra a ganhar o Pulitzer de ficção graças a A Cor Púrpura, livro de 1982. Em 1985, o romance foi adaptado para cinema por Steven Spielberg, com Whoopi Goldberg, Danny Glover e Oprah Winfrey nos papéis principais e banda-sonora de Quincy Jones. Há quem goste muito do filme, há quem o critique por adornar — e é verdade que o faz — a vida das personagens de Walker. Por outras palavras, o tom não respeita o original, mas criou-se algo diferente. E isso também tem valor. Já neste século, a obra de Walker foi adaptada à Broadway, teve duas vidas (2005-2008 e 2015-2017) e em ambas foi um sucesso e arrecadou prémios.
2023 e a A Cor Púrpura regressa ao cinema, pelas mãos de Blitz Bazawule, com argumento de Marcus Gardley, e nos créditos de produção conta com Steven Spielberg, Oprah, Quincy Jones e Scott Sanders (um dos produtores do musical da Broadway). A colagem de nomes é natural nestas coisas, o filme de Bazawule reconhece a existência de todas estas obras e requalifica A Cor Púrpura através das mesmas. À superfície, é uma adaptação do musical da Broadway, nos ossos tem uma tentativa de dar a volta a uns quantos detalhes na obra de Spielberg (que, já agora, na altura foi nomeado para onze Óscares e não ganhou nem um).
[o trailer de “A Cor Púrpura”:]
O filme que chega agora às salas portuguesas é, portanto, um híbrido. No início ameaça como sendo um musical puro e duro. Feitas as introduções, percebe-se que embora a música esteja lá, a fórmula mais clássica de contar uma história predomina. Os números musicais servem para marcar grandes momentos, episódios de viragem, e, por isso, estão mais presentes em alturas que o realizador opta por avançar a narrativa de forma desenfreada, no início — onde o faz muito bem — e no terceiro ato — onde não acontece tão bem.
Estão lá e marcam. Mais nos momentos coletivos face aos individuais. Estes últimos ficam muito aquém, não devido à performance dos intérpretes, mas pela forma como são filmados: nunca dão uma ideia de grande espectáculo – que está à acontecer à volta, sem ser evidenciado – e fecham o momento numa caixa. Não se daria por isto se os outros não fossem tão bons, mas o contraste é notório e tem efeito no impacto das cenas.
A Cor Púrpura faz isto acolhendo quem conhece o romance, o filme, o musical, só um deles ou mesmo nenhum. E assegura, sem que se note, uma experiência mais enriquecedora para uns do que para outros (embora, quem conheça o livro, sinta, mais uma vez, que o filme fica aquém da obra literária). A história é a de Celie, muito bem interpretada tanto por Phylicia Pearl Mpasi (enquanto jovem) como por Fantasia Barrino (que toma conta da ação a partir da meia-hora de filme). Violada e espancada com frequência pelo pai, Celie vive encolhida numa existência infeliz. Conceitos simples como ambições, desejos ou vontades são inexistentes à partida.
Isso é bem mostrado pelo contraste com a irmã mais nova, Nettie (Halle Bailey e, mais tarde, Ciara), que estuda, vê e ambiciona outro mundo e não teve nenhuma dessas aspirações suprimidas desde nova por um homem, neste caso, um pai abusador. Celie é o patinho feio e a jornada prossegue nesse papel. Do pai passa para outro homem, Mister (Colman Domingo), um tipo com terras, filhos e que basicamente precisa de uma mulher em casa para limpar, cozinhar, etc. Amor? Nem por isso. Mister é um falhado, persegue-o o fantasma de Shug Avery (grande papel de Taraji P. Henson), paixoneta de outrora, mulher forte e livre, que partiu para seguir carreira nos blues e no jazz.
O centro da história de Celie está na coexistência com Mister. Bazawule introduz bem a personagem e sabe fazer perdurar a sua condição durante o segundo ato de A Cor Púrpura. Celie está presa a muitas condições mas o que mais custa ver é a perceção de como todas as perspetivas lhe foram retiradas e que, em adulta, nem considera que lhe possam pertencer. Por isso, as relações com Sofia (Danielle Brooks, nomeada para o Óscar de Melhor Atriz Secundária), a mulher de Harpo (Corey Hawkins), um dos filhos de Mister e, mais tarde, com Shug, brilham no ecrã. Seja, primeiro, pela perpetuação da condição de Celie, seja, mais tarde, quando percebe que pode ser outra pessoa, que pode ser livre.
A condição-não-condição de Celie desenvolve-se como deve ser nesta adaptação. É dura q.b. — mais do que isso e daria ao filme outra classificação e tirava o lustro do musical — e percebe-se a mensagem. O meio do filme agarra, relacionamo-nos com Celie e Nettie e queremos lutar pela protagonista, queremos percebê-la para lá da condição miserável. Por isso, o último ato do filme perceciona-se como apressado, a concretização é brusca e não se vive da mesma maneira. Não há correspondência entre os valores dos diferentes momentos do filme, o desequilíbrio instala-se e acabamos por questionar: regressamos ao livro?