A posição de destaque que a edição infanto-juvenil portuguesa vem ganhando nos certames internacionais da especialidade, o número crescente de direitos autorais vendidos para outras línguas e países em todo o mundo e os prémios acumulados têm algures como contrapartida o respigo de livros para serem publicados no nosso país, onde a boa prata da casa parece tornar-se dominante. O que antes foi carência deu lugar a uma escolha qualificada, senão mesmo a uma reciprocidade comercial e a uma cumplicidade entre pares, num panorama bastante mais alargado. E o efeito de tudo isto é que o fascinante mundo da ilustração contemporânea — alavancada por novas ferramentas digitais de extrema precisão —, o design ousado que recria o objeto-livro, mais a excelência da impressão industrial nos dias de hoje (provando quão errados estavam os profetas do fim do livro físico, que também tivemos e agora se calam, bem caladinhos), estão a deixar deliciados livreiros, editores e famílias, a ponto de — pela primeira vez — assistirmos à abertura, entre nós, de lojas dedicadas diretamente aos leitores de palmo e meio. E, pelo seu lado, o Youtube transmite testemunhos de escritores e ilustradores do mundo inteiro, aproximando mais e mais quem faz de quem lê, ouve e vê.

Por essa via, além da fantasia e da imaginação à solta — a certo e bom tempo estimuladas —, certa vocação educativa para a sustentabilidade planetária e para o viver e deixar viver na diferença (de preferência sem alarde algum, seja a que pretexto for) delineia-se claramente como uma tendência consolidada para preparar as gerações futuras para o mundo perigoso que lhes vai cair em cima, ainda que em detrimento da contínua reinvenção visual dos grandes clássicos desta literatura. Já aqui comentámos Plasticus Maritimus: uma espécie invasora e Os Peixes que Fugiram da História, mas como não reparar no recente O Ponto em que Estamos, da Planeta Tangerina, um impiedoso e sarcástico libelo contra o hiperconsumismo — apontado a “todas as idades (claro)” — em que “Oceanos de promoções”, “Florestas de preços baixos”, “Arquipélagos de roupa fora de moda”, “Vulcões de sapatos por estrear”, “Cascatas de comida abandonada”, “Uma cordilheira de copos descartáveis”, são tema de desenhos? Ou em Hoje Fiz um Amigo, de Pedro Evangelho, acabado de lançar pela Araucária, de São Miguel, um conto sobre o encontro de um rapaz com um estridente cagarro (Calonectris borealis), ave migratória nos Açores que é alvo de amplas e bem sucedidas campanhas de acolhimento e proteção levadas a cabo pelos mais novos, guiados por associações ambientalistas e pelas próprias escolas de ensino primário? E a lista, que já é grande, jamais esqueceria o extraordinário Pequeno e Precioso: o Cavalo Marinho de Joana Bértholo e Mariana Malhão (2021).


Título: “Casa”
Texto e ilustrações: Carson Ellis
Tradução: João Berhan
Editor: Orfeu Negro

Páginas: 40

A Orfeu Negro, que não é uma editora exclusivamente infanto-juvenil — sequer criada de raiz por ilustradores e escritores para crianças, como Pato Lógico e Planeta Tangerina —, tem uma Coleção Mini quase toda construída com importações e alguma fidelidade a certos autores, entre os quais Carson Ellis (1975-). Casa (Home, 2015) é publicado oito anos depois do duplamente premiado Ké iz tuk? (O que é isto?, numa língua inventada para insetos), e alguma expectativa, diria, pode ser criada quanto a uma próxima tradução do belo What Is Love? (com texto de Marc Barnett, 2021) ou do inesperado In The Half Room (2020).

A norte-americana de origem canadiana vive numa quinta no Oregon, com o cantor, compositor e escritor Colin Meloy (1974-) — já fizeram cinco livros juntos — e os dois filhos de ambos a quem dedica, “com amor”, este livro que o New York Times considerou um best-seller. É precisamente com a sua casa rural — “Uma casa no campo” — que ela abre e depois fecha estes gouaches em que desdobra uma grande variedade de formas de habitar, as do nosso mundo real (em diferentes geografias: França, Eslováquia, Japão, Quénia, Noroeste americano) como as imaginárias (da caverna de Ali-Babá às lendas nórdicas, da Atlântida a uma estação noutro planeta), mas também as de animais e insetos, sem esquecer os eremitérios ou as casas em movimento (“E há quem viva com a casa às costas”), como os grandes veleiros ou os autocarros usados por músicos em digressão, numa referência muito clara às bandas de indie folk rock do marido, a primeira das quais, Tarkio, lançou um álbum precisamente intitulado Omnibus (2006).

Uma casa é, desde a página do título, um ninho, donde voa a Morning dove (rola-carpideira, Zenaida macroura) presente em 11 dos 23 desenhos deste livro, e à qual Carson Ellis ela mesma acena no último. Outros elementos são recorrentes — testando a atenção dos petizes aos pormenores dos desenhos? —, como o catavento com a sereia vendo-se ao espelho, o estandarte vermelho com as letras VH do castelo do deus nórdico e o aquário de fortaleza medieval na parede do estúdio da artista — verdadeira galeria do seu imaginário pessoal —, onde também surge o ícone eslavo pendurado na cozinha duma velha russa (babushka). Parecem, ao mesmo tempo, evocar a remota genealogia familiar desta loira de cabelos invulgarmente longos, que gosta de gorros negros com borla, meias às riscas encarnadas e brancas, chávenas de chá, cavalos e folhas de carvalho roble, abandona botas de caminhante a qualquer canto e nos exibe a sua precoce, solitária vontade de desenhar e pintar naquela que é a mais animada cena do livro, um recreio de escola. E é essa mesma criança que no fim, depois de revelada a intimidade do estúdio da artista adulta, vem acenar da janela à ave migratória e de alguma maneira também a quem a lê, perguntando “Onde é a tua casa? E onde estás tu?” — na busca da mais completa empatia com os mais pequenos, que é, afinal, o máximo objetivo desta literatura feita para encantar — e educar.

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