Estreou ao mesmo tempo em sala e nesse luxo asiático chamado Filmin que o streamer avisado tem em casa por menos de três euros por mês, e traz a aura dos pequenos tesouros que ansiamos por desembrulhar. Prémios em Sundance e Berlim, produção do novo menino bonito do cinema sueco Ruben Ostlund (O Quadrado, Triângulo da Tristeza). Uma sinopse que o vende formidavelmente: “O filme que qualquer pessoa com uma conta de Instagram ou Tik Tok deveria ver”, “polémica, risos e uma lúcida lição de história”, “Depois deste filme, as selfies nunca mais serão as mesmas.” Mas afinal, vai-se a ver e, culpa do objeto ou da gestão de expectativas, a Máquina não é assim tão fantástica.

And the King Said, What a Fantastic Machine, no belo título original, é um documentário, ou antes, um filme-ensaio sobre a nossa obsessão com a câmara, toda a câmara – enfim, toda a que seja capaz de produzir imagem: fotográfica, televisiva, cinematográfica, webcam, live de rede social. É uma proposta ambiciosa, sobretudo tendo em conta que, em princípio, o público a que vai apelar será sempre relativamente especializado: o dos apaixonados pelo assunto. Se a consegue cumprir? Sim, mas em modo concentrado de sumo, resumo Europa-América, breve introdução a uma matéria para a qual uma série de 10 volumes talvez não chegasse.

[o trailer de “Máquina Fantástica”:]

Produção sueco-dinamarquesa realizada por Axel Danielson e Maximilien Van Aertryck, Máquina Fantástica começa na história da primeira fotografia conhecida – a rua de Joseph Nicéphore Niépce registada numa placa de estanho betumada após oito breves horas de exposição – e pelos primeiros filmes dos irmãos Lumière ou Georges Méliès, e vem até ao nosso tempo, de pessoas filmadas 24 horas por dia. Essa viagem por 200 anos de imagens é feita nuns impressionantes 88 meros minutos. Sem “especialistas”, comentadores, historiadores, cabeças falantes em geral, nem locução off a assegurar-lhe o fio narrativo. Atira-se corajosamente ao seu objeto de estudo urdindo uma imensa colagem visual, feita de fotografias, bocadinhos de filmes, programas de televisão e muitos, muitos conteúdos dessa grande internet selvagem. É obra.

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Porém, o resultado final é, talvez forçosamente, superficial. Satisfatório, mas pouco impressionante, e, na verdade, (não há outra forma de dizer isto), até um pouco deprimente. No seu melhor, “Máquina Fantástica” é um Mark Cousins meets documentário Netflix sobre a nossa adição às redes sociais. Dá-nos umas pequenas lições de fotografia, que nada trarão de novo aos minimamente iniciados na ciência; conta-nos um pouco de História, mas tão superficial que nem chegamos a saber que rei, afinal, é o do título (o inglês cuja coroação teria sido recriada para a fotografia, merecendo-lhe o comentário: “Que máquina fantástica! Até captou o que não aconteceu!”. No seu pior, gere mal a distribuição dos tempos entre assuntos, dispara em demasiadas direções e confunde o nosso fascínio com a imagem com o puro e simples desejo de fama, poder, dinheiro.

Da estranheza de alguns indígenas vendo, pela primeira vez, a sua própria imagem, aos disparos de dopamina num fã, diríamos, doente, de Star Wars, contemplando o trailer do novo filme da saga. Da gramática de Leni Riefenstahl, ao casal que se aborrece e embrutece em frente ao televisor, o que quer que esteja a dar. Dos tempos de rei da TV por cabo de Ted Turner, aos primeiros fenómenos virais (e, literalmente, acidentais) da era YouTube. Da descoberta de como é feita a ilusão dos jurados dos diferentes países no Festival da Eurovisão, aos que arriscam a vida para produzir uma imagem que gere milhões de visualizações, aos que se filmam a dormir e aos que os veem, ao fenómeno Onlyfans que – sucumbamos a uma dessas palavras da moda – “normalizou” o porno.

Cabe muita coisa em Máquina Fantástica – demasiada, diríamos. Percebemos a maior parte das suas intenções, mas muitas delas já foram antes ditas. Viajamos do espanto à estupidez em 200 anos e hora e meia de relação entre o ser humano e a câmara (mudou mais ele do que ela, desde então). Mas ficaremos sempre a dever-lhe os momentos de puro nonsense do terrorista do Estado Islâmico sempre a interromper o vídeo para recordar o guião, ou do outro mostrando como se faz uma bomba caseira, com a simpatia com que Filipa Vacondeus nos ensinaria a preparar um bacalhau com natas.

No fim, saímos esgotados, exangues, exauridos por este fresco talvez demasiado fiel a um mundo em que existem, diz-nos, absurdas 45 mil milhões de câmaras. O nosso reino por uma Zen TV ou outra coisa em que se possa ficar a ver uma ribeira correr toda a noite. Por um João César Monteiro que pendure o casaco na lente. Pelo direito a descansar os olhos em qualquer coisa que não seja feita de pixeis.