Os americanos fazem – ou faziam – bem os chamados filmes “de denúncia”, geralmente baseados em factos reais. Neles, um cidadão expõe, solitariamente, e por vezes arriscando o seu emprego, a reputação e a sua integridade física e da família, conspirações, casos de corrupção ou práticas ilegais e nocivas à comunidade, por parte de entidades estatais ou privadas, ou de grupos e pessoas com muito poder e influência. Um bom exemplo recente é “O Informador”, de Michael Mann (1999), com Russell Crowe num denunciante das manigâncias das grandes companhias de tabaco. Um mau exemplo é “Dark Waters — Verdade Envenenada”, de Todd Haynes (2019), em que Mark Ruffalo faz um advogado especializado em casos ligados ao meio ambiente que expõe um escândalo de poluição química.

Para levarem a água ao seu moinho, este tipo de filmes dependem da capacidade dos argumentistas e do realizador para dramatizarem as situações em jogo e exporem-nas com clareza, criarem atmosferas de tensão e expectativa, porem o espectador do lado do protagonista e da sua causa, e a partilhar a sua indignação, e evitarem o excesso de exposição, a mão de chumbo demonstrativa, o escancarar da “mensagem”, o impulso comicieiro. O citado “O Informador” consegue fazer quase tudo bem, enquanto que “Dark Waters — Verdade Envenenada”, falha em praticamente todos estes aspetos.

[Veja o “trailer” de “A Sindicalista”:]

Em França, estas fitas chamam-se “films-dossier”, e o seu mais recente representante é “A Sindicalista”, de Jean-Paul Salomé, em que Isabelle Huppert interpreta Maureen Kearney, uma sindicalista irlandesa a viver em França, e que representava a nível europeu, os trabalhadores da Areva, a grande empresa estatal francesa de energia nuclear. Em 2004, agindo com base em informações passadas por um quadro da EDF, a empresa pública de eletricidade gaulesa, ela denunciou a existência de um contrato secreto com a China, que iria desmantelar a Areva, lançar milhares de pessoas para o desemprego e transferir tecnologia para aquele país.

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[Veja uma entrevista com Isabelle Huppert e o realizador Jean-Paul Salomé:]

Kearney foi então alvo de um ataque perpetrado por estranhos em sua casa, tendo sido manietada, intimidada, agredida e violentada com um objeto. Depois da devida denúncia às autoridades, a sindicalista viu a situação virar-se contra ela, já que a polícia, após uma investigação pouco rigorosa, a transformou de vítima em acusada de fabricação para proveito próprio, com os devidos ecos nos media. Além do “dossier” da liquidação da Areva, Maureen Kearney ficou também, juntamente com o marido, a ter que provar que a agressão que tinha sofrido havia sido real, e não uma invenção para chamar a atenção do público para o grave caso que tinha entre mãos.

[Veja uma cena do filme:]

O realizador Jean-Paul Salomé, que já antes dirigiu Isabelle Huppert na comédia policial “Agente Haxe” (2020), quis fazer um “film-dossier” tão arrumadinho, tão bem explicadinho, tão laboriosamente didático, que acabou por descurar as potencialidades da história para a criação simultânea de um ambiente denso de “thriller” conspirativo-paranoico (como conseguiu o seu compatriota Yann Gozlan no infelizmente pouco visto “Caixa Negra”). “A Sindicalista” é tão abundante em informação como pobre em emoção, tão aplicado na descrição dos acontecimentos como desleixado no seu aproveitamento dramático.

Como sempre, Huppert é inatacável (veja-se a atenção dada à “coquetterie”da personagem, que nunca é apanhada vestida ou penteada com desleixo, ou com a maquilhagem descuidada) e transmite a coragem, a determinação e dedicação de Maureen Kearney, sem descomedimentos de discurso ou de interpretação. Só lhe faltou mesmo ter um Michael Mann atrás das câmaras para o filme estar ao seu nível.