Uma sandes de leitão não tem grandes segredos. Se o bácoro for gordo e estiver bem assado, basta um pão consistente e uma folha de alface para haver magia gastronómica. Pouco mais de três minutos bastam para as mãos experientes da dona Aida prepararem dez destes acepipes, depois colocados estrategicamente numa vitrina do Bar nº 1, onde ficam a fazer olhinhos aos raros clientes que por estes dias passeiam pelo mercado da Praça de Espanha.

No fim do mês, o mercado fecha e Aida vai deixar de vender sandes de leitão. Também vai deixar de vender bicas a 55 cêntimos e bifanas com imperial às 10h30, como aconteceu algumas vezes durante a conversa com o Observador esta segunda-feira. “O resumo disto? É o fim”, atira por trás do balcão azul, a cor que marcou o topo norte da Praça de Espanha, junto ao IPO, durante mais de 30 anos. Chegou a haver mais de 200 espaços comerciais aqui abertos, agora restam 69 comerciantes desapontados e sem vontade de falar com jornalistas. “Nós mandámos mails para virem e não vieram. Agora é tarde”, comenta um vendedor que, à semelhança de muitos outros, não quer ser identificado.

A ideia de fechar este mercado já não é nova, mas a confirmação formal chegou só no início de setembro, quando a Câmara Municipal de Lisboa aprovou o pagamento de 820 mil euros em indemnizações aos comerciantes. Até ao final do dia 30 de setembro, todos eles têm de fechar portas e limpar as bancas de quaisquer vestígios da passagem por ali. Segundo Aida, que se apresenta como a mais antiga vendedora da praça, a intenção da câmara é vedar todo o espaço logo no primeiro dia de outubro. Depois, o futuro da zona já está escrito: nas palavras de Fernando Medina, presidente da autarquia, a ideia é criar “uma praça pública de qualidade”.

À semelhança de zonas como o Largo do Rato, a Praça de Espanha é uma das mais malfadadas áreas de Lisboa, dominada pelo trânsito automóvel, onde a circulação e usufruto de peões é inexistente. Por esse motivo, a praça já foi alvo de inúmeros projetos, o último dos quais, já pensado pelo menos desde 2012, prevê a eliminação de diversas faixas de rodagem e o aumento das zonas verdes. Por outro lado, e ao abrigo de uma permuta feita recentemente entre a autarquia e o Montepio e a companhia de seguros Lusitânia, estas instituições deverão construir as novas sedes naquele espaço.

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Já o futuro dos comerciantes é uma incógnita até para os próprios, que encolhem os ombros quando lhes perguntamos como vai ser a vida deles no dia 1 de outubro. Aida diz que vai bater à porta do centro de emprego e um vizinho que vende roupa estima que, como ela, serão quase 200 pessoas. A indemnização que a câmara dá, queixam-se, não vai durar muito. “Eles esquecem-se que a gente valorizou muito esta zona. Aqui não havia nada.”

Lembram-se da Feira Popular…?

Grande parte das bancas do mercado da Praça de Espanha nasceu no Martim Moniz, de onde se mudaram para aqui quando houve necessidade de remodelar aquela praça do centro da cidade. Vieram com carácter provisório. “Eles alegam que estamos aqui provisoriamente. Em que parte do mundo trabalhar 30 anos é estar provisório num sítio?”, queixa-se um vendedor, que lamenta não ter havido consenso para que o mercado fosse transferido para outro local. Diz que foi equacionada a zona do Colombo, outros falam das Galinheiras e Aida acrescenta que a autarquia lhes propôs irem para a Zona J. Na assembleia municipal desta terça-feira, o presidente da câmara afirmou que houve um “diálogo que correu francamente bem” entre a autarquia e os vendedores e lembrou que todos optaram pela indemnização em vez da transferência para outros mercados municipais.

Agora o que mais se lê nas ruas estreitas deste mercado de latão é “Liquidação Total”. Inúmeros cartazes espalhados por todo o recinto anunciam roupa a dez euros e sapatos a cinco, mas o leque de produtos que se pode aqui adquirir é vasto. Desde CD’s com os mais recentes hits da música africana, passando por rádios para carros, t-shirts da seleção, malas de viagem e cachecóis de uma miríade de clubes, há de tudo neste local, que, mais do que um mercado, é um caldeirão de culturas. Ao mesmo tempo que se ouvem os característicos ritmos do kuduro e do kizomba, podemos comprar peças de vestuário a vendedores indianos e comer a portuguesíssima sandes de leitão no bar da dona Aida.

Ela, que chegou aqui com 18 anos e aqui criou a filha, hoje doutorada. “Colonizámos esta zona, não merecíamos ser tratados desta forma”, lamenta, enquanto distribui folhas de alface e nacos de carne pelos pães, num gesto que já não se repetirá muito mais vezes. “Na volta, sabes o que vai acontecer aqui? Como foi com a Feira Popular…”