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Ao longo de 16 páginas, três mulheres descrevem os seus casos pessoais de situações de assédio e abuso sexual de que dizem ter sido vítimas, e também de assédio moral. Descrevem também alguns casos de que foram tendo conhecimento depois de, num contexto mais reservado, terem partilhado as suas histórias. Não há nomes além dos seus, as autoras do artigo. Não se identifica, pelo menos pelo nome, o alegado autor dos abusos. Também não se identifica o local onde os abusos terão ocorrido. Mas isso não impediu o terramoto no universo académico nacional.
O artigo saiu de um circuito mais restrito, académico, e acabou por ser amplamente divulgado ao fim de poucos dias. Boaventura de Sousa Santos, um académico de Coimbra, figura incontornável da Sociologia, seria o autor dos abusos relatados pelas investigadoras — também elas vítimas diretas. Bruno Sena Martins, apresentado como “braço direito intelectual” de Boaventura, também é visado no artigo. E, segundo o Diário de Notícias, Maria Paula Meneses seria a terceira figura referida por Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom.
As reações não demoraram. Mais vítimas deram os seus testemunhos; instituições levantaram barreiras higiénicas e distanciaram-se, preventivamente, de Boaventura; outros académicos recusaram aparecer junto ao sociólogo de Coimbra; e os visados (dois dos três) pronunciaram-se sobre as acusações — para recusar as versões plasmadas no artigo e para ameaçar com processos judiciais por difamação.
Quase uma semana depois de serem divulgadas as primeiras notícias sobre o tema, o Observador resume os principais momentos e figuras do ‘caso Boaventura’.
16 páginas, três autoras e um suspeito principal: a denúncia
Primeiro, um livro escrito em inglês, publicado pela editora britânica Routledge, cujo título é Sexual Misconduct in Academia (“Conduta Sexual Imprópria na Academia”). Sem referir abertamente nomes (nem dos alegados autores de situações de assédio nem da instituição onde essas situações terão ocorrido), o artigo apresenta uma série de dados de contexto que rapidamente permitiram chegar à conclusão de que Boaventura de Sousa Santos era figura no centro daquelas denúncias e que o Centro de Estudos Sociais seria a referência institucional.
Ao longo de pouco mais de uma dezena de páginas, o artigo divulga informações que, alegadamente, ficavam confinadas às paredes da Universidade de Coimbra — quase literalmente: os vários graffiti que em diferentes momentos chegaram a ser pintados nos edifícios da instituição (por exemplo, com a mensagem “Boaventura fora. Todas sabemos”, que as autoras omitem no artigo) foram rapidamente apagados.
Depois, a notícia do Observador com a informação de que o Centro de Estudos Sociais ia abrir uma investigação às alegações apresentadas no artigo; e, poucas horas depois, a notícia avançada pelo Diário de Notícias, que dava pela primeira vez conta de que Boaventura de Sousa Santos, diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, estava entre os professores acusados de assédio sexual e moral por parte de várias estudantes.
Nas linhas do capítulo “As paredes falaram quando mais ninguém podia”, do livro publicado pela Routledge, não há nomes (nem das vítimas nem dos suspeitos), apenas referências a um “Star Professor” (Professor Estrela), mas tanto a instituição como Boaventura reconheceram a personagem traçada e vieram a público confirmá-lo (o professor, desmentindo e ameaçando com um processo crime; e o CES, avançando com a suspensão dos acusados — além de Boaventura, também o investigador Bruno Sena Martins é visado nos relatos daquele artigo. Foram ambos suspensos a pedido dos próprios).
Nesse mesmo artigo, em inglês, as informações estavam escritas como “peças” de um puzzle que se revelou fácil de montar, dadas as descrições. Foi preciso pouco tempo até que o livro começasse a circular entre alunos e professores do centro de investigação, com a conclusão óbvia de que alguns dos protagonistas frequentavam a instituição que funciona em instalações da Universidade de Coimbra.
As próprias investigadoras reconheceram que o objetivo foi “compreender como a tradição de abuso sobreviveu desde os tempos do jus primae noctis [direito da primeira noite] até os dias atuais” e abrir espaço para um debate sobre as responsabilidades das instituições nestes processos.
A “estrela”, o “aprendiz” e a “sentinela”: os acusados
Boaventura de Sousa Santos é licenciado em Direito pela Faculdade de Direito de Coimbra e doutorado em Sociologia do Direito na Universidade de Yale, nos EUA. Fundou o Centro de Investigação da Universidade de Coimbra em 1978 e tornou-se num dos maiores nomes da área da investigação na área das ciências sociais.
Em 2019, o professor catedrático abandonou a direção do CES, alegadamente devido às primeiras acusações de assédio sexual (que foram inscritas nas paredes do centro de investigação), mas manteve-se sempre como o maior nome da instituição e como seu diretor emérito.
É autor de centenas de artigos científicos nas áreas de sociologia do direito, sociologia política, epistemologia e estudos pós-coloniais, com artigos de opinião publicados com frequência em diferentes órgãos de comunicação social, não só em Portugal — entretanto, uma dessas colaborações foi suspensa, a do jornal espanhol Publico.
Aos 82 anos, está envolvido numa polémica em que é o principal suspeito de assédio sexual e moral. Já desmentiu e tomou a decisão de se “auto-afastar”.
Um dos outros dois suspeitos referidos no livro é Bruno Sena Martins, referido no artigo como o “aprendiz”. A outra será, segundo avançou este fim de semana o Diário de Notícias, Maria Paula Meneses, a “sentinela”, que até ao momento não se pronunciou publicamente sobre as alegações feitas no artigo. São descritos como exercendo o papel de “gatekeeper” no CES, alguém que teria o poder de decidir sobre o acesso a recursos ou oportunidades.
“Os papéis do aprendiz e da sentinela não se limitam à aceção tradicional do conceito de gatekeeper (…). Aqui, estes porteiros das estruturas de poder da instituição definem-se em função da inexistência de salvaguardas éticas no que respeita à orientação académica. Essas dinâmicas permitiram a essas duas pessoas desempenhar o papel de gatekeepers do poder sexual quando em certas situações a fronteira entre coação e consentimento era difícil de traçar”, pode ler-se no capítulo do livro que conta a alegada experiência com Boaventura no CES.
Bruno Sena Martins também é professor no centro de investigação e no livro é chamado de “o aprendiz”. Era, segundo as autoras, “considerado por muitos” no CES “como o braço-direito intelectual do ‘professor estrela’ e seu sucessor”. Licenciado em Antropologia e doutorado em Sociologia, e vice-presidente do Conselho Científico do CES até 2019, altura em que também Boaventura saiu, Sena Martins terá, “subido rapidamente na sombra do ‘professor estrela’ ao desempenhar papéis de relevo em projetos de investigação nacionais e internacionais, em programas de doutoramento e em corpos de gestão centrais” no contexto académico em que se moviam.
No texto que denunciou o caso é ainda referida uma mulher que completa a tríade e que é designada por “a sentinela”. De acordo com o Diário de Notícias, trata-se de Maria Paula Meneses, descrita no livro como “co-coordenadora de um programa de doutoramento, integrante em órgãos de governo, investigadora principal em vários projetos e supervisora de estudantes de doutoramento”. Não terá, segundo as autoras, tomado qualquer ação para defender uma das investigadoras alegadamente vítimas de assédio que a procuraram em busca de ajuda para lidar com a situação.
No capítulo “As paredes falaram quando mais ninguém podia” é recordado um episódio em que uma das estudantes terá pedido ajuda à “sentinela” por alegados abusos sexuais por parte de Bruno Sena Santos — o professor negou-o em declarações ao Diário de Notícias e contrapõe essa alegação com o argumento de que a situação aí descrita se tratou, afinal, de uma relação consentida.
Rejeição total, “boatos” e o processo-crime: a defesa
Boaventura Sousa Santos defendeu-se do ataque e revelou que vai avançar com um processo-crime por difamação contra as três mulheres que revelaram detalhes sobre os alegados atos de assédio sexual — mas o texto não faz uma acusação direta a nenhum dos envolvidos, pelo que, na análise de juristas ouvidos pelo Observador, não se verificam alguns dos pressupostos do crime de difamação.
Apesar de não haver qualquer referência a nomes, a cargos, à instituição nem sequer ao país em que tudo teria acontecido, o sociólogo reconheceu-se na descrição do professor-estrela, ainda que rejeite as acusações.
“Independentemente dos procedimentos internos e judiciais que o CES vier a adotar, quero informar-vos de que vou apresentar uma queixa crime por difamação contra as autoras”, esclareceu o diretor emérito do centro de investigação.
Numa carta aberta a que chamou “Diário de uma difamação”, Boaventura escreveu que considera estar em causa um “ato miserável de vingança institucional e pessoal”, garantiu que uma das autoras teve um “comportamento insolente e incorreto com o CES” e que o centro acabou por instaurar um processo disciplinar.
O professor catedrático justifica que a informação presente no livro é “caluniosa”, “anónima” e “assente em boatos”. Aos olhos do sociólogo, “não é oferecida nenhuma prova ou modo de chegar a ela”.
Investigadoras e ativistas: as vítimas
No dia em que o livro foi lançado, além das três investigadoras que assinam o artigo — a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e a norte-americana Miye Nadya Tom —, nenhuma das mulheres que assume ser vítima de assédio sexual era identificada. No texto, as autoras apresentam-se referindo a posição académica que as levou ao CES: antiga estudante internacional de doutoramento, antiga investigadora pós-doutorada e antiga estudante nacional de doutoramento.
Mas o livro teve repercussões imediatas em Portugal (e não só), o que acabou por levar algumas das vítimas a dar a cara. A deputada brasileira Bella Gonçalves confirmou que o seu caso é um dos que constam do artigo e em que são dados detalhes de alegadas situações de assédio sexual pelo investigador Boaventura de Sousa Santos.
Ainda antes de assumir a identidade publicamente, numa entrevista ao Observador, Bella Gonçalves contou que terá sido a ela que o sociólogo português acariciou o joelho prometendo que “todas as portas” do centro se abririam para caso aprofundassem a sua “relação pessoal”.
Depois de saber que Boaventura Sousa Santos tinha sido escolhido para orientar a sua investigação, a agora deputada brasileira pediu uma reunião de trabalho e o sociólogo pediu que o encontro fosse em sua casa. Foi recebida com bebidas alcoólicas, que recusou, e sofreu alegadas investidas por parte do professor. “Acho que confundiu as coisas”, terá dito. A agora deputada estadual de Minas Gerais recolheu depois os seus pertences e abandonou a casa.
O assédio sexual que diz ter sofrido naquele dia transformou-se em assédio moral no dia seguinte, durante uma reunião em que participou juntamente com o seu ex-companheiro, além de Boaventura de Sousa Santos e da professora a que as autoras do livro (e a própria denunciante) chamam de “sentinela” — desta vez, no escritório no Centro de Estudos Sociais. “Desqualificou-nos academicamente a ponto de o meu companheiro começar a chorar”, recorda a investigadora em entrevista o Observador.
Bella Gonçalves mostrou-se disponível para fazer denúncias formais sobre o caso e procurou o coordenador do curso que lhe terá dito: “Infelizmente, o Boaventura é brilhante, mas tem destas coisas.” Sobre as formalização de uma queixa, garante que não lhe foi dada qualquer abertura.
Depois, procurou professoras feministas da universidade, na esperança de que a encaminhassem para as estruturas adequadas para formalizar uma denúncia, mas encontrou novamente um beco sem saída: “Ele é assim, sabemos de outros casos, mas não sabemos o que fazer”, ter-lhe-ão dito. “A vida académica delas estava atrelada e condicionada por aquele sistema de poder”, interpreta agora na mesma entrevista.
No seguimento do mediatismo do caso, também uma indígena argentina resolveu relatar o momento em que Boaventura Sousa Santos se tentou pôr em cima dela. “Não ia deixar que me violasse, não ia deixar que abusasse de mim”, contou ao Observador pouco depois de a polémica rebentar.
Moira Millan, que é hoje uma das líderes do movimento de recuperação de terras ancestrais indígenas na Argentina, conheceu o sociólogo no Brasil e numa das vezes que foi a Lisboa acabou convidada para ir até Coimbra dar uma palestra.
Revelou ao Observador que, depois da palestra, o sociólogo a convidou para jantar (sem nunca referir que seria um encontro apenas a dois), prometeu oferecer-lhe alguns livros ao longo da conversa e no final do jantar disse-lhe que o acompanhasse a casa para recolher esses livros.
“Durante o jantar, ele bebe muito álcool, bebe muito vinho, conversamos e, em diferentes momentos, ele flirta comigo e isso incomoda-me, trato de ir pondo limites a essa situação. Quando terminamos, oferece-me uns livros e convida-me a ir à sua casa — que era muito perto deste restaurante — para buscar os livros. Vivia num edifício. Só aceitei ir buscar os livros porque ele prometeu chamar-me um táxi para eu seguir para o hotel”, recordou.
O ambiente incomodou a indígena durante todo o tempo. “Quando chegamos, ele senta-se e toma um uísque. Eu sento-me em frente a ele e ele põe-se em cima de mim. Atira-se para cima de mim, manuseia-me, quer beijar-me, eu empurro-o. Levanto-me do sofá onde estava sentada e enojo-me com a atitude. E ele vem de novo, a tentar manusear-me, beijar-me, e volto a empurrá-lo, com mais força. Ele vê uma atitude determinante em mim, porque eu estava disposta a defender-me, não ia deixar que me violasse, não ia deixar que abusasse de mim, e ia usar toda a minha força.”
Na altura, Moira Millan contou a história a várias pessoas, mas foi incentivada a manter o silêncio. Mais tarde, acabou por falar: há quatro anos, contou num programa de rádio argentino o episódio de assédio. Em junho de 2022, durante um encontro de mulheres indígenas no México, voltou a repeti-lo.
Investigação, suspensão e isolamento: as demarcações
A denúncia não tinha nomes, mas teve muitas repercussões. O próprio CES apressou-se a reagir num comunicado interno que, à medida que as horas passaram, precisou de ser repensado e deu lugar a uma nota pública no site. Ainda não havia confirmações de nomes e o centro de investigação já assegurava que estava a par dos acontecimentos e que era preciso iniciar-se uma investigação.
Não demorou até que o centro de investigação fosse mais longe: em comunicado, anunciou que Boaventura Sousa Santos e Bruno Sena Martins estavam “suspensos de todos os cargos que ocupavam” até ao apuramento das conclusões da comissão independente que o CES está a constituir para investigar o caso — a formulação foi clarificada mais tarde para esclarecer que a suspensão se materializava a pedido dos próprios visados.
O CES “demarca-se de todas as posições assumidas publicamente por Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins, nomeadamente no que respeita à intenção de avançar judicialmente contra as autoras do capítulo do livro”, pode ler-se no primeiro comunicado, embora a instituição tenha ressalvado o respeito pelo “direito de resposta individual”.
Seguiu-se o Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), que suspendeu o investigador até haver resultados das investigações às alegações de assédio sexual que têm sido apontadas.
Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais suspende Boaventura de Sousa Santos
“Perante os acontecimentos com relevância que ocorreram no CES, de que tomámos conhecimento nos últimos dias, o CLACSO reafirma a sua postura de tolerância zero e de oposição absoluta do assédio sexual e manifesta a sua solidariedade com todas as pessoas afetadas por esta forma de violência”, pode ler-se na nota enviada pelo organismo.
Também a coluna de opinião que Boaventura tinha no jornal espanhol Publico, “Espelhos Estranhos”, acabou suspensa. “Depois de conhecer estas denúncias, o Publico suspendeu a colaboração que mantinha com Sousa Santos até se concluir a investigação da universidade [de Coimbra]”, escreveu o jornal.
Jornal espanhol Publico suspende colaboração com Boaventura de Sousa Santos
Noutro âmbito, e numa tomada de posição mais pessoal que institucional, a socióloga chilena Claudia Dides cancelou a sua presença na mesa-redonda “Epistemologias do Sul”, organizada pela Feira do Livro das Ciências Sociais em que Boaventura também ia participar. A investigadora anunciou a decisão nas suas redes sociais, justificando-se com as “acusações contra o professor Boaventura de Sousa Santos”. Era a única mulher a participar naquele debate.
O episódio deu também origem a alguma desinformação. Num caso concreto, as três autoras do capítulo que lançou a polémica eram associadas a um email que começou a ser partilhado em que se apelava a que mais vítimas partilhassem as suas histórias de assédio e abuso sexual. “As autoras do capítulo criaram um email para que outras pessoas que tenham passado por situações semelhantes, e que queiram partilhar a sua história, as possam contactar”, referia esse email, onde era indicado um endereço de correio eletrónico. Ao Observador, as autoras recusaram qualquer ligação com essa iniciativa. “Temos uma gratidão imensa por todo o apoio que temos recebido de mulheres e homens de diferentes partes do globo [mas] não estamos envolvidas na criação deste email nem em nenhuma campanha de solidariedade.”
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