Olhando para trás, é seguro — e também é fácil — afirmar que os sinais estavam todos lá e que este desfecho era previsível. Seja porque, numa entrevista à TVI, em abril de 2021, Rendeiro se assumiu como um espírito livre; seja porque terminou uma carta publicada no jornal Tal&Qual com um profético “Liberdade ou Morte”; seja, ainda, porque, na última entrevista que deu, à CNN, menos de um mês antes da detenção, refletia sobre a forma como, “em certas culturas, o suicídio é visto com nobreza”; ou porque, já depois de ser detido na África do Sul, voltava a assegurar com todas as letras: “Eu não vou regressar a Portugal.”
Os sinais estavam todos lá. E, esta sexta-feira, quando os serviços prisionais de Westville se preparavam para transferi-lo para o Tribunal de Verulam, João Rendeiro foi encontrado sem vida na cela que ocupava naquela prisão, num cenário de suicídio, diz a advogada que o defendia.
13 de maio de 2022. Oito meses depois de aterrar na África do Sul, cinco meses depois de ser detido no quarto que tinha alugado de uma mansão de um bairro distinto de Durban, na zona sudeste do país, João Rendeiro pôs termo à própria vida.
A viagem para Londres que acaba na África do Sul
A justiça portuguesa sabia que João Rendeiro ia apanhar aquele voo, a 12 de setembro do ano passado, rumo a Londres. O antigo banqueiro já tinha sido condenado a uma pena de prisão efetiva de cinco anos e oito meses pelos crimes de falsidade informática e falsificação de documento, e a sentença transitava em julgado a 17 de setembro de 2021 — cinco dias antes de sair pela última vez de Portugal.
Cinco perguntas para perceber o que se passa com os processos de Rendeiro
Saiu de Lisboa em direção ao Reino Unido, como dissera que faria, mas rapidamente voltou a mudar de localização. A 18 de setembro entrou pela primeira vez na África do Sul, mas, nesse processo, passou ainda pelo Catar. E mesmo naquele país africano esteve em constante movimento: começou por instalar-se em Joanesburgo, num hotel da cidade sul-africana. E aí cometeu o maior erro daquilo que seria o seu plano de fuga, ao apresentar o passaporte verdadeiro (foram encontrados vários no quarto em que foi detido) e acabando por alertar as autoridades portuguesas sobre onde se encontrava.
Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre João Rendeiro.
Extra. O que sabemos sobre o caso e sobre a morte de João Rendeiro?
Passaram três meses entre a chegada à África do Sul e o momento da detenção, a 11 de dezembro.
Depois de Joanesburgo, “deambulou por outros locais para dificultar a detenção”, segundo o diretor nacional da Polícia Judiciária, acabando por instalar-se na cidade de Durban, no sudeste da África do Sul. Nessa altura, a detenção já estava por dias.
Durban: o último reduto da liberdade
Durban é uma cidade de profundos contrastes sociais.
O centro é pontuado por algumas ruas e bairros de uma população carenciada, sem as mais básicas condições de habitação, nalguns casos com prédios em ruínas a servir de abrigo às dezenas de sul-africanos que dormem em tendas de campismo amontoadas.
Depois, existe Umhlanga Rocks, um bairro residencial de classe alta, com longas avenidas de mansões e palacetes que são autênticos fortes-seguros, guardados 24 horas por dia por um sistema de videovigilância e segurança privada e com passagem regular das próprias forças de segurança.
Foi naquele espécie de forte — com cercas eletrificadas nos muros que delimitavam o espaço e um apertado sistema de câmaras de vigilância interna e externa — que Rendeiro se instalou em meados de dezembro do ano passado. Conhecido entre os responsáveis daquele espaço pelo nome próprio, “João”, o antigo banqueiro alugou um quarto no primeiro andar da mansão e fazia uma “vida normal” — expressão do próprio — que lhe custaria entre três e cinco mil euros por mês.
Recusava a ideia de estar em “fuga”, mas, para comunicar com os mais próximos, recorria a sistemas de encriptação de comunicação que tornavam a deteção da sua localização virtualmente impossível. “É um grande sinal de que jamais em tempo algum pretendia entregar-se às autoridades”, disse o diretor nacional da PJ no dia da detenção de Rendeiro.
Foi naquela mansão, a partir de sala de estar posicionada diretamente em frente ao quarto onde se instalara, que deu a entrevista à CNN Portugal, a 22 de novembro — a sua última entrevista. E em que fala de forma aberta e direta sobre a ideia de suicídio.
“Do ponto de vista filosófico, tenho pensado muito numa certa semelhança [da apresentação às autoridades do seu número dois no BPP, Paulo Guichard] com o suicídio, e entendo que, em certas culturas, o suicídio é visto com nobreza. Por exemplo, os samurais suicidavam-se em defesa da honra, mas há outras interpretações em relação ao suicídio, portanto, sobre essa matéria, francamente, não é matéria que me preocupe ou que eu tenha necessidade de refletir, justificar o que quer que seja.”
Nesse momento, a mulher de João Rendeiro já tinha referido em tribunal que o antigo banqueiro se encontraria na África do Sul. Segundo a Polícia Judiciária, essa foi apenas a confirmação daquilo que as próprias autoridades já tinham concluído, após semanas a reconstituir os passos do antigo homem-forte do BPP desde aquele voo com partida de Lisboa e sem data de regresso, a 12 de setembro.
Aliás, segundo o responsável máximo da PJ, Luís Neves, a semana de 20 a 24 de novembro seria determinante para o sucesso da operação que culminaria com a detenção de Rendeiro. Em algum momento dessa semana, as autoridades portuguesas encontraram-se com “os mais altos dirigentes” sul-africanos e sensibilizaram-nos para a relevância ímpar daquele caso. “Explicámos quão graves tinham sido os crimes cometidos por esta pessoa e tivemos pronta resposta do mais alto dirigente da polícia, que nos disse que ia empregar os melhores meios para o deter, o que aconteceu hoje às 7h da manhã, na África do Sul”, explicou o diretor nacional da PJ após a detenção.
A operação surpresa
“Surpreso”, esboçando a reação de quem jamais esperaria ver irromper pelo quarto, às 5h da manhã, as autoridades sul-africanas, que tinham ido ali com a única missão de fazer cumprir os dois mandados de detenção que pendiam sobre o antigo banqueiro.
Rendeiro cuidou da sua higiene pessoal, vestiu-se, foi algemado e conduzido ao rés-do-chão daquele forte onde passara os últimos dias em liberdade. Entrou no carro e acabou por ser conduzido à esquadra de Durban North, a menos de 10 minutos de distância de carro.
Naquele sábado, a fuga chegara ao fim. Começava uma nova batalha.
A luta nos tribunais
A primeira semana logo após a detenção de Rendeiro teve uma série de contratempos. O antigo banqueiro foi presente a tribunal logo na segunda-feira para que lhe fossem aplicadas as medidas de coação. Mas, entre problemas técnicos, mudanças de sala do tribunal, transferências para outros tribunais e regresso ao Tribunal de Verulam Magistrates, feriados nacionais e pedidos de mais tempo para a defesa consultar o processo, só no final dessa semana Rendeiro ficaria a saber que teria de aguardar em prisão preventiva pelo processo de extradição emitido pelas autoridades portuguesas.
“A África do Sul não pode dar-se ao luxo de ser um lugar para fugitivos”, declarou o juiz que Rendeiro tinha pela frente. O perigo de fuga, as “fronteiras porosas” do país, a garantia do próprio banqueiro de que não voltaria a Portugal para cumprir a pena a que tinha sido condenado, a mulher que tinha ficado em Portugal e os meios que tinha à sua disposição para rumar a outras paragens — todos esses fatores contribuíram para a decisão do juiz Rajesh Parshotam.
A defesa de João Rendeiro pedia a libertação sob caução — 2.200 euros — e apresentações periódicas às autoridades policiais sul-africanas para evitar a decisão mais radical do tribunal. Sem sucesso.
“O tribunal entende que ele vai muito provavelmente fugir se for libertado”, declarou o magistrado. João Rendeiro ouviu a decisão, baixou a cabeça e, durante logo segundos, limitou-se a manter o olhar fixo no chão à sua frente. Ia ser transferido para Westville, um dos piores destinos que lhe poderiam estar reservados naquele país.
Os cinco meses no inferno sul-africano
June Marks entra em cena nessa fase. A advogada sul-africana, especialista em crimes de colarinho branco, já tinha sido contactada por João Rendeiro semanas antes (pelo menos) da detenção, mas só nessa fase irrompe como o rosto e a voz que representava o antigo banqueiro na tentativa de voltar à liberdade. Nas várias declarações que foi fazendo sobre o processo, Marks não dava sinais de querer baixar os braços.
Acreditava que o cliente tinha sido detido ilegalmente e fez uso de todos os recursos que tinha à sua disposição para que o tribunal reconhecesse isso mesmo. Ao mesmo tempo, seguiu uma estratégia de confrontação com a justiça sul-africana e portuguesa.
Em janeiro deste ano, cerca de três semanas após a detenção e ainda antes de começar o julgamento sobre o processo de extradição para Portugal, June Marks apresentou o primeiro recurso da detenção de João Rendeiro.
Ao longo de 52 pontos, distribuídos por 16 páginas, a advogada acusou o tribunal de Verulam de ceder à “pressão mediática” quando decidiu manter o antigo banqueiro em prisão preventiva, contestou a qualidade das traduções dos documentos processuais enviados por Portugal, questionou a ausência de assinaturas oficiais, acusou o juiz de ignorar as “ameaças e o perigo para a segurança” que representavam a detenção na prisão de Westville.
E o que é Westville? Internacionalmente, é apresentada como uma das mais perigosas prisões da África do Sul. No ano passado, o nome saltou para os títulos dos jornais depois de dois guardas prisionais terem sido esfaqueados. Um cenário longe de ser pontual. Sobrelotada, com graves problemas de segurança e sem acesso a cuidados de saúde para os reclusos, são recorrentes as referências à propagação de doenças sexualmente transmissíveis entre os prisioneiros. A prisão tem uma “taxa de 94% de reclusos que acabam por ser infetados com HIV/sida por via sexual após as primeiras 48 horas presos”, dizia ao Observador o especialista em Direito Internacional André Thomashausen, a viver no país há cerca de 30 anos. “Os novos reclusos normalmente são leiloados por bandos criminosos que dominam o serviço prisional. Isto é muito mau”, acrescentava o advogado.
Rendeiro. As defesas possíveis e os perigos das prisões sul-africanas
E, além de tudo isso, as ameaças diretas. Em tribunal, a advogada de Rendeiro garantiu que o seu cliente tinha sido alvo de ameaças e que corria perigo se fosse mantido naquelas instalações. “Como resultado das notícias” que estavam a ser difundidas nos órgãos de informação, “ele [João Rendeiro] está a receber ameaças de morte”, referiu a advogada, explicando que “os outros prisioneiros ouvem as notícias na rádio”.
Perante este cenário, o Observador confrontou June Marks sobre a possibilidade de João Rendeiro estar a beneficiar de um estatuto especial dentro da prisão. Estaria a pagar pela sua segurança? Ter-lhe-iam sido oferecidas condições especiais, com uma cela privada e a salvo de outros presos que pudessem pôr em risco a sua segurança?
A advogada rejeitou essa tese. “Não existem celas privadas e não há celas especiais de isolamento”, garantiu Marks. Mas, segundo o Observador apurou esta sexta-feira, era precisamente numa cela mais reservada, com lugar para três detidos, que João Rendeiro se encontrava quando decidiu pôr termo à vida.
A madrugada final
Rendeiro deveria voltar a tribunal esta sexta-feira. A agenda das sessões que era conhecida publicamente apenas previa uma audiência no dia 20 de maio e deveria servir para reavaliar as medidas de coação. Mas uma decisão da advogada de Rendeiro obrigou a uma mudança de plano: ia afastar-se do caso.
Às primeiras horas da manhã, os serviços prisionais depararam-se com o corpo de João Rendeiro, alegadamente com sinais de enforcamento. “Está uma investigação em curso e estou à espera dessas informações por parte do Ministério Público”, disse simplesmente ao Observador June Marks. A outros meios de comunicação, a advogada admitiu, no entanto, que Rendeiro teria decidido acabar com a própria vida e que, para isso, se teria enforcado. “Não conheço quaisquer detalhes”, insistia a advogada ao Observador.
June Marks foi mais explícita sobre a decisão que tomou e que se preparava para formalizar esta sexta-feira. “Eu ia pedir o afastamento do caso hoje. Tomei a decisão de me afastar. Ele [Rendeiro] não queria que eu deixasse de representá-lo, mas ele já estava sem dinheiro para pagar. Usou todo o dinheiro que tinha, e tinha recursos muito limitados. Esse dinheiro esgotou-se há quatro dias e ele morreu assim que gastou o último cêntimo que tinha”, garante a advogada ao Observador.
A porta-voz do Tribunal de Verulam, Natasha Ramkisson-Kara, confirma que, “esta semana”, a advogada informou o tribunal de que tinha tomado a decisão de se afastar do caso. “Quando soubemos que a senhora Marks ia retirar-se do caso, chamámos o senhor Rendeiro ao tribunal porque isso obrigava a que fosse nomeado um novo representante legal, que precisava de estar a par do processo já na sessão da próxima semana”, explica ao Observador.
A justiça sul-africana vai agora extinguir o processo. O corpo de Rendeiro deverá ser, entretanto, trasladado para Portugal.