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Inés Arrimadas foi a sucessora de Albert Rivera na liderança do partido
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Inés Arrimadas foi a sucessora de Albert Rivera na liderança do partido

PAU BARRENA/AFP/Getty Images

Inés Arrimadas foi a sucessora de Albert Rivera na liderança do partido

PAU BARRENA/AFP/Getty Images

A morte do Ciudadanos: as vidas efémeras do liberalismo espanhol

Em Espanha, o padrão parece imutável desde o século XIX: desentendimentos, egolatrias e erros iliberais impuseram a projectos políticos promissores uma vida efémera. Ensaio de Diogo Noivo.

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O centro não existe. Carece de ideias políticas próprias. Não tem convicções nem doutrinas. Não é de estranhar, portanto, que os partidos espanhóis que se posicionaram ao centro — porque é de posicionamento que falamos — viessem de campos políticos bem estabelecidos no país.

Os últimos partidos liberais nasceram à esquerda. O Unión, Progreso y Democracia (UPyD), apesar de um início promissor, estancou numa irrelevância que precipitou o desaparecimento. Pelo contrário, o Ciudadanos, emergido da insatisfação com o abandono a que foram votados muitos catalães, superou as fronteiras regionais da Catalunha para conquistar o palco político nacional. A dada altura foi até um candidato viável a segundo maior partido de Espanha e principal força da oposição, ocupando assim o lugar do Partido Popular (PP). Mas glórias passadas não garantem futuro: o Ciudadanos morreu no passado 28 de maio, data em que se celebraram eleições autonómicas e municipais. A dimensão da derrota foi de tal ordem que o partido optou por não estar nos boletins de voto das próximas legislativas, marcadas para o dia 23 de julho.

Este ensaio, o terceiro e último sobre as forças políticas em Espanha, analisa o percurso dos partidos liberais espanhóis mais recentes, mostrando como projectos políticos auspiciosos, capazes de mostrar a sua relevância e de convencer o eleitorado, acabaram numa inutilidade sem redenção.

União, Progresso e Democracia

Nas legislativas de novembro de 2011, o Unión, Progreso y Democracia (UPyD) recebeu mais de um milhão de votos. Celebrou com entusiasmo a frecha aberta no bipartidarismo, mas queixou-se do sistema eleitoral, enviesado a favor de regiões como a Catalunha e o País Basco. A queixa tinha razão de ser: o UPyD conseguiu cinco mandatos, enquanto os nacionalistas catalães da Convergència i Unió, com menos votos, sentaram 16 representantes no Congresso dos Deputados espanhol.

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"A palavra 'nacionalidades' permite o reconhecimento de várias especificidades regionais com identidades históricas, atribuindo-lhes uma autonomia muito elevada — quase plena nos casos catalão e basco —, mas sem esvaziar Espanha do conteúdo histórico que tem, bem como do seu papel de alicerce do Estado."

A comparação não foi casual. O partido fundou-se como a alternativa liberal aos males do que em Portugal conhecemos como ‘centrão’, embora a sua prioridade fosse o combate ao sectarismo social erigido pelos nacionalismos periféricos, cuja audácia se agigantava. Na sua génese estiveram importantes intelectuais de esquerda, como Fernando Savater, quase todos marcados por décadas de oposição à ETA e ao modelo de autoritarismo étnico que a organização terrorista queria impor ao País Basco e a Navarra.

[Já saiu: pode ouvir aqui o quarto episódio da série em podcast “Piratinha do Ar”. É a história do adolescente de 16 anos que em 1980 desviou um avião da TAP. E aqui tem o primeiro, o segundo e o terceiro episódios]

Rosa Díez deu a cara pelo partido. Militante socialista de longa data nascida na província basca de Biscaia, a então eurodeputada desvinculou-se do PSOE em desacordo com as reformas que José Luis Rodríguez Zapatero pretendia implementar na política territorial do país. Sob o lema ‘Espanha Plural’, o secretário-geral socialista e Presidente de Governo em funções ambicionava redesenhar os termos das autonomias regionais, sendo ambíguo quanto à espinhosa fronteira entre pluralismo e plurinacionalidade.

O assunto requer breves explicações prévias. O artigo 2º da constituição define Espanha como uma nação de “nacionalidades”. Portanto, podendo o legislador optar pela palavra nações, preferiu nacionalidades. A razão é de vínculo e de soberania. O número 1 do artigo 1º afirma que a soberania nacional — no singular, uma única soberania — reside no povo espanhol. Caso se assumisse a existência de várias nações, com vários povos, Espanha abdicaria da característica de entidade que vincula os cidadãos ao Estado, tornando-se um mero invólucro administrativo de múltiplas nações. Perderia a sua essência nacional e, sobretudo, o seu papel de alicerce do espaço comum que assegura direitos, liberdades e garantias a todos os cidadãos, independentemente do seu local de nascimento ou da sua identidade política.

Assim, a palavra “nacionalidades” permite o reconhecimento de várias especificidades regionais com identidades históricas, atribuindo-lhes uma autonomia muito elevada — quase plena nos casos catalão e basco —, mas sem esvaziar Espanha do conteúdo histórico que tem, bem como do seu papel de alicerce do Estado. Em toda a história espanhola, a formulação encontrada na constituição de 1978 é a mais generosa para os nacionalismos periféricos, desde logo se comparada com a da II República (1931), que apesar de apresentada pelos nacionalismos catalão e basco actuais como uma Arcádia perdida, apenas mencionava no seu texto a “autonomia de municípios e regiões”.

O projecto de Zapatero, bem como a forma como contemporizou com iniciativas nacionalistas, provocou irritações e temores que atravessaram o espectro político da esquerda à direita. Naturalmente, só à esquerda houve gente a sentir-se mal representada pelo partido onde militava. Na tradição da esquerda espanhola, mesmo da republicana, Espanha esteve sempre no centro da acção política. As nacionalidades regionais, merecedoras de toda a autonomia, deverão ser enquadradas numa lógica federal, que constitui o velho sonho socialista. Federal, mas nunca plurinacional.

O nicho temático de actuação do partido era, portanto, promissor. Mais, havia um espaço intermédio entre o PP e o PSOE, a que podemos chamar de centro absoluto, que poderia ajudar a formação de maiorias governativas sem ter de pagar portagem aos nacionalismos periféricos.

"O liberalismo progressista era para o UPyD um antídoto para experimentação identitária impressa por Zapatero ao socialismo. Talvez o problema estivesse numa compreensão deficiente do significado de liberalismo."

Mas a UPyD cometeu erros táticos e embrenhou-se em obstinações várias. Alimentou um psicodrama à volta de uma eventual fusão com o Ciudadanos, entretanto criado, o que abriu espaço para que a militância expressasse azedumes e vaidades na praça pública, com o correspondente dano para a reputação do partido. Ensimesmado, dedicou mais tempo a debater a concorrência do que propostas para o país. A preservação do partido — quase sempre discutida em termos existenciais, de sobrevivência — tornou-se prioritária para a direcção de Rosa Díez. Virado para dentro, o UPyD pouco oferecia aos cidadãos.

Para a irrelevância a que acabou votado contribuíram outros dois motivos. O primeiro foi ter razão antes de tempo, pecado capital em política. O sentido de urgência a propósito da ameaça existencial dos nacionalismos não foi sentido pelo eleitorado. A ascensão dos nacionalismos no Ocidente era ainda uma miragem. E dentro de Espanha, ainda que o problema existisse, não parecia assunto para grandes receios. Embora em incubação acelerada, a pulsão iliberal do separatismo catalão, que atingiu o ponto alto em 2017 com o referendo fictício à independência, era grave apenas para aqueles que, residindo na Catalunha, se encontravam submetidos às políticas de exclusão e acosso implementadas a partir das instituições regionais. Portanto, um assunto circunscrito e, para muitos, passível de ser controlado. É certo que os sinais de radicalização eram evidentes, mas pareciam mais do mesmo: há quase 40 anos que o nacionalismo catalão extremava posições de tempos a tempos para pressionar o governo espanhol de turno, sossegando após obter concessões e prebendas.

Já no País Basco o terrorismo da ETA dava os primeiros sinais de fraqueza e, também por isso, era visto por parte do eleitorado de centro como um problema de segurança pública que brotava de um punhado de fanáticos. Tratar-se-ia de uma patologia nefasta, um anacronismo que teimava em não desaparecer, mas não uma forma extrema de nacionalismo enraizada na sociedade basca. Acresce que estava em curso um processo negocial entre o governo de Zapatero e a organização terrorista. Dizia a opinião dominante, pouco inquieta com os custos e consequências dessa negociação, que era necessário dar uma oportunidade à paz. Tudo somado, os alertas da UPyD, que hoje sabemos acertados, soavam por vezes a devaneios extemporâneos.

O segundo motivo foi de lavra própria: não foi capaz de transcender a crítica a Zapatero e aos nacionalismos. Às críticas certeiras e bem fundamentadas não corresponderam propostas políticas reformistas que seduzissem os eleitores.

O liberalismo progressista era para o UPyD um antídoto para experimentação identitária impressa por Zapatero ao socialismo. Talvez o problema estivesse numa compreensão deficiente do significado de liberalismo. O ensaísta Daniel Gascón escreveu que o liberalismo é uma forma flexível de organizar as diferenças que existem nas sociedades modernas mediante uma canalização institucional democrática. Ora, o UPyD não soube mediar diferenças, entendeu o seu papel institucional com enorme rigidez, perdeu-se em algumas discussões estéreis sobre o real significado de liberalismo, a competição com o Ciudadanos pelo mesmo espaço eleitoral privilegiou o partido em detrimento dos eleitores e, por tudo isto, remeteu o indivíduo e as suas liberdades para um plano secundário. Incorreu noutra falha sinalizada por Gascón: o liberalismo é caricaturado tanto por detratores como por muitos que se dizem liberais.

Ser cidadão

No sistema de partidos catalão — como, de resto, no basco —, o eixo que opõe nacionalistas a não nacionalistas (ou ‘constitucionalistas’) é tão ou mais importante do que o eixo esquerda-direita. A posição dos partidos face ao nacionalismo autóctone constitui quase sempre a principal clivagem eleitoral. Como tal, quando o Partido Socialista da Catalunha (PSC) se deslocou para o campo do nacionalismo catalão deixou órfãos importantes segmentos do eleitorado: gente de centro-esquerda que se sentia sobretudo espanhola; gente de centro-esquerda que, sentindo-se simultaneamente espanhola e catalã, não encontra qualquer incompatibilidade entre as duas identidades nacionais; liberais de diversas tendências que, à falta de um partido alinhado com as suas convicções, depositavam o seu voto no Partido Socialista. A estes juntavam-se catalanistas desiludidos e votantes de centro-direita que há muito não encontravam no PP catalão uma casa com fundações sólidas.

Assim, em 2006, quando é fundado, o Ciudadanos posiciona-se no centro-esquerda. Fê-lo porque esse era o campo original de alguns dos seus fundadores. Mas, sobretudo, porque esse era o espaço deixado vazio pelo PSC. A Catalunha era governada há 23 anos pelos nacionalistas de centro-direita da Convergència i Unió e, após 2003, por uma tripla aliança entre o PSC, a nacionalista Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) e pelos Verdes (ex-Comunistas) da Iniciativa per Catalunya Verds. Era a primeira vez em democracia que a ERC chegava ao Executivo autonómico, cortesia dos socialistas regionais.

Segundo os politólogos Juan Rodríguez Teruel e Astrid Barrio, o Ciudadanos veio responder a uma dupla falha no mercado eleitoral. Primeiro, a hegemonia do nacionalismo catalão na vida política e social deixou desatendidos eleitores que rejeitavam os postulados nacionalistas e a ênfase colocada nas chamadas políticas identitárias. Mais tarde, na sequência de vários escândalos públicos motivados por corrupção e tráfico de influências nos dois partidos tradicionais, com particular saliência no PP de Mariano Rajoy, acentuou-se a procura do eleitorado por renovação política, transparência e regeneração democrática.

"Em 2006, quando é fundado, o Ciudadanos posiciona-se no centro-esquerda. Fê-lo porque esse era o campo original de alguns dos seus fundadores. Mas, sobretudo, porque esse era o espaço deixado vazio pelo PSC."

A UPyD nasceu pela mão de personalidades de esquerda e o Ciudadanos, ao surgir como partido regional na Catalunha, posicionou-se nesse campo. Há, porém, diferenças. Escritor e filólogo, Xavier Pericay fez questão de matizar o assunto em conversa distendida: “Entre os intelectuais que assinaram o manifesto que deu origem ao partido havia de tudo: liberais e social-democratas. E a vontade claramente fundacional de construir um projeto transversal que confrontasse, sem reservas, a hegemonia do nacionalismo, seja de direita ou de esquerda, e a conivência, ou o silêncio cúmplice, com o nacionalismo por parte dos dois grandes partidos espanhóis, PSOE e PP.”

Destacado intelectual catalão e subscritor do manifesto Ciudadanos de Catalunya, documento fundacional do Ciudadanos assinado por outras importantes personalidades catalãs como Félix de Azúa, Francesc de Carreras, Arcadi Espada e Félix Ovejero, Xavier Pericay nota que “coisa diferente é que o partido, uma vez fundado, decidira colocar-se preferencialmente no espaço ocupado pelo socialismo catalão e começasse a esquecer a transversalidade”.

Parte do erro de Rivera deveu-se a mudanças organizativas introduzidas em 2017

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Foi o que sucedeu em 2007 com a ‘emenda Carreras’, assim designada em referência ao seu autor, Francesc de Carreras, que identificava o partido com três grandes tradições da cultura política europeia contemporânea: “Liberalismo, democracia e socialismo.” O centro-esquerda deixou de ser posicional e passou a ambicionar uma dimensão ideológica. A par das convicções de quem propôs e de quem aceitou, a emenda visava responder a críticas sobre a aparente indefinição ideológica do partido. Contava já com uma agenda política vasta e clara, da educação às finanças, passando pelas políticas sociais e pelo combate ao desemprego, mas ao recusar etiquetas de esquerda e de direita ficou à mercê de ataques vários, muitas vezes primários, não por isso menos danosos.

Na primeira vez que tentou superar as fronteiras da Catalunha e lançar-se ao palco nacional, os resultados eleitorais não foram animadores. Entre 2006 e 2014, o Ciudadanos teve muita dificuldade em livrar-se da imagem de partido regional, com propósitos muito locais e, por conseguinte, desadequados para outras regiões e até para as instituições nacionais. O carácter regional foi de tal forma pesado que o partido sentiu não ter condições para se apresentar às legislativas de 2011.

Mas o contexto nacional mudou. A catadupa de escândalos de corrupção e tráfico de influências fez com que a proposta de regeneração política e transparência, até então fixada na Catalunha, passasse a ter relevância nacional. Além do mais, o crescimento da esquerda radical do Podemos, em particular o ataque desabrido à constituição democrática de 1978 e a vontade de organizar a sociedade em “colectivos” definidos em função de identidades, levou o ‘constitucionalismo’ e a defesa das liberdades individuais ao centro do debate público espanhol, favorecendo assim a agenda do Ciudadanos. Não menos importante, a agitação independentista catalã subiu de tom, o que permitiu ao partido mostrar que, como sempre dissera, a Catalunha era um problema nacional.

"Na primeira vez que tentou superar as fronteiras da Catalunha e lançar-se ao palco nacional, os resultados eleitorais não foram animadores. Entre 2006 e 2014, o Ciudadanos teve muita dificuldade em livrar-se da imagem de partido regional."

O Ciudadanos assumiu a sua vocação transversal, de força política dedicada à defesa da ordem constitucional, promotora de direitos e liberdades individuais. Captou votos nos centros esquerda e direita, nos liberais abandonados e até na abstenção. Rejeitou pactos de governo com os partidos tradicionais, dispondo-se, no entanto, a acordos de incidência parlamentar em troca da implementação de medidas que trouxessem maior lisura à vida política e que avançassem a agenda liberal. Em suma, regeneração através da estabilidade e do respeito pelas instituições. O contraste com o radicalismo do Podemos, a outra novidade partidária que acabara com o bipartidarismo, não podia ser maior.

Também por isso, na assembleia geral de 2017, decidiu-se abandonar a referência ao socialismo introduzida 10 anos antes. Pericay explicou-me a mudança: “O partido integrava o grupo liberal europeu e não o socialista, pelo que o sintagma ‘liberal progressista, democrata e constitucionalista’ estava mais em linha com a realidade”. Por outro lado, “hoje em dia, não há partido constitucionalista que não defenda o Estado Social, donde o epíteto ‘social-democrata’ pouco acrescentaria, podendo até gerar confusão”.

O que não gerava confusões nem dúvidas era que, por fim, havia uma proposta nacional válida para organizar as diferenças que existem nas sociedades modernas mediante uma canalização institucional democrática. O Ciudadanos cresceu ao ponto de, na segunda década deste século, vislumbrar a possibilidade de substituir o PP na posição de grande partido espanhol.

Esquecer os cidadãos

As legislativas de 28 de abril de 2019 fizeram do PSOE o partido mais votado. Porém, os 123 deputados socialistas ficavam a 53 da maioria absoluta. Os 57 mandatos obtidos pelo Ciudadanos resolviam o problema. Mas Albert Rivera, presidente do partido liberal, foi inflexível: no es no. Mantinha tudo o que dissera em campanha. Pedro Sánchez não era confiável, pois dera provas de ter uma relação difícil com a palavra dada, e o PSOE insistia em não se demarcar dos separatismos basco e catalão.

Subjacente a tudo isto, havia tacticismo de parte a parte. Sánchez não estava interessado em negociar porque temia que um acordo com os liberais acicatasse os partidos da esquerda radical, complicando a vida ao PSOE. Aliás, nos cálculos da política pedestre, uma eventual aliança com os radicais do Podemos podia até ser virtuosa, já que controlaria a principal ameaça ao socialismo no espaço da esquerda. Em última análise, como as sondagens não eram desfavoráveis, regressar às urnas não seria mau desfecho. Já Rivera acalentava a ideia de sorpaso ao PP, ou seja, de fazer do Ciudadanos o maior partido da oposição.

Ao não haver solução de governo, o país parecia destinado a novas eleições. Seriam as quartas legislativas em cinco anos marcados por intensas animosidades no espaço público. Os estudos de opinião sugeriam que o eleitorado, cansado da incapacidade dos partidos para criar soluções governativas, imputa a Rivera a principal responsabilidade pelo impasse. O presidente do Ciudadanos ensaiou então uma tentativa negocial de última hora, demasiado errática e desesperada para ser levada a sério. Em troca da sua anuência à formação de governo, exigiu três condições aos socialistas: o fim do acordo que o PSOE tinha em Navarra com o Bildu, coligação herdeira da organização terrorista ETA; a aplicação do artigo 155 da Constituição na Catalunha, suspendendo a autonomia naquela região em virtude do golpe separatista de 2017; e a promessa de não indultar os independentistas catalães condenados pela organização do referido golpe separatista. Sánchez despachou a proposta sem cerimónias. A rejeição, vista a esta distância, percebe-se bem porquê.

Espanha voltou às urnas em novembro de 2019 num contexto de degradação acentuada da confiança dos eleitores nos eleitos. E não foi meiga com os liberais. O Ciudadanos passou de 57 para 10 deputados, perdendo quase dois milhões e quinhentos mil votos. O PSOE também foi penalizado, embora o castigo fosse mais brando: perdeu 3 deputados e 700 mil votos.

"O que não gerava confusões nem dúvidas era que, por fim, havia uma proposta nacional válida para organizar as diferenças que existem nas sociedades modernas mediante uma canalização institucional democrática. O Ciudadanos cresceu ao ponto de, na segunda década deste século, vislumbrar a possibilidade de substituir o PP na posição de grande partido espanhol."

No entanto, o cenário era adverso para o conjunto de partidos à esquerda, que passou de 165 deputados para 158. Feitas as contas, nas eleições de abril estavam a 11 deputados da maioria absoluta e agora ficavam a 18. A perpetuação do impasse era arriscada, uma vez que novas eleições poderiam agravar esta tendência de recuo. Sem surpresa, Sánchez abraçou Pablo Iglesias e à aliança de governo entre PSOE e Podemos juntaram-se acordos de incidência parlamentar com separatistas bascos e catalães. Estava criada a geringonça espanhola, que o país vizinho apelidou ‘governo Frankenstein’.

Sánchez abraçou Iglesias numa aliança de governo entre PSOE e Podemos. Estava criada a geringonça espanhola, que o país vizinho apelidou 'governo Frankenstein'

Anadolu Agency via Getty Images

Num momento crítico para Espanha, a teimosia e o tacticismo de Rivera empurraram os socialistas para os braços de radicais e extremistas. Por falta de comparência, o Ciudadanos permitiu que se formasse o Executivo mais iliberal na história da democracia espanhola. A flexibilidade liberal esteve em parte incerta, tal como a primazia dada pelo liberalismo à salvaguarda das instituições democráticas. O partido tornou-se inútil para o seu eleitorado, que o abandonou. Seguiu-se uma sangria de quadros, muitos dos quais membros fundadores. Iniciara-se a marcha fúnebre do partido que, incapaz de se reinventar e de assumir erros, foi a enterrar no passado dia 28 de maio, na sequência de um desaire monumental nas eleições municipais e autonómicas.

Esta conclusão, sustentada pelos resultados eleitorais, não foi consensual na cúpula do partido, onde houve quem preferisse encontrar culpados em inimigos externos e internos. Contudo, entre os fundadores, não houve muitas dúvidas. Ao olhar para trás, Xavier Pericay tem um entendimento claro do sucedido e das suas consequências. “O Ciudadanos perdeu toda a credibilidade junto de grande parte do seu eleitorado quando, após as eleições legislativas de abril, não tomou a iniciativa de propor um pacto ao PSOE para impedir que a UP e todo o tipo de nacionalismos chegassem ao Governo de Espanha. Admito que o PSOE o teria rejeitado com qualquer pretexto e teríamos ido a novas eleições em novembro, mas pelo menos ninguém seria capaz de nos chamar irresponsáveis.” Acrescenta o intelectual fundador do Ciudadanos: “Tenho certeza de que os resultados teriam sido diferentes. Talvez não tivéssemos mantido os 57 deputados, mas também não teríamos caído para 10.”

Parte do erro de Rivera deveu-se a mudanças organizativas introduzidas em 2017, na assembleia que retirou o socialismo da identidade do partido, ainda que em nada dependessem dessa alteração. Proporcional ao crescimento do partido foi o crescimento de egos, que encontraram num centralismo férreo a chave para garantir o estrelato próprio e o futuro daqueles que se mostrassem leais. A capacidade de intervenção e decisão interna ficou limitada, privilegiando o líder e aqueles que com ele privavam. Mais grave, porque menos liberal, a nova estrutura favoreceu o aparecimento de caciques locais e de pessoal de aparelho partidário, vícios da velha política que o Ciudadanos se propunha regenerar.

Houve o culto a um líder deslumbrado com a idolatria. Houve também a glorificação da juventude, pandemia contemporânea cujo principal sintoma consiste em ver nos jovens — pelo simples facto de sê-lo — a panaceia para qualquer mal presente e futuro. Aqui, o erro explica-se com uma palavra castelhana infelizmente sem tradução em língua portuguesa: adanismo. Ou seja, emulando Adão, iniciar uma qualquer atividade com a convicção de que somos os primeiros a fazê-la. No fundo, a crença juvenil de que o mundo nasceu connosco.

"Num momento crítico para Espanha, a teimosia e o tacticismo de Rivera empurraram os socialistas para os braços de radicais e extremistas. Por falta de comparência, o Ciudadanos permitiu que se formasse o Executivo mais iliberal na história da democracia espanhola."

Um adanismo próprio de um partido que, até ao desaire mortal de 2019, não conhecera outro presidente além de Albert Rivera, em funções desde os 26 anos de idade. Quando destituídos de sensatez e experiência, o entusiasmo e o atrevimento tendem a converter-se numa locomotiva pueril sem rumo nem freio. Tudo isto aconteceu no Ciudadanos. Foi particularmente visível no período entre as duas legislativas celebradas em 2019: a opinião dos quadros mais velhos, entre os quais fundadores signatários do manifesto Ciudadanos de Catalunya, foi olimpicamente ignorada.

O futuro existe

Os méritos de Inés Arrimadas, sucessora de Albert Rivera na presidência do partido, são suficientes para afastar críticas. Mostrou coragem política e física enquanto liderou o partido na Catalunha e, depois, revelou o mesmo valor ao assumir a liderança nacional. Contudo, os estragos estavam feitos. Salvaguardadas as devidas distâncias, que existem, repetiu-se a história vista com a UPyD: um partido virado para dentro, incapaz de conter a saída de quadros, mais dedicado a azedumes internos do que a soluções para os cidadãos. Perdeu utilidade e não conseguiu explicar como recuperá-la.

Inés Arrimadas mostrou coragem política e física enquanto liderou o partido na Catalunha e, depois, revelou o mesmo valor ao assumir a liderança nacional

Europa Press via Getty Images

“Acho que existe espaço para o liberalismo, mas o Ciudadanos não tem condições de ocupá-lo”, disse-me Pericay. “A marca perdeu quase todo o seu valor. E como agora a prioridade é acabar, por via eleitoral, com o atual governo, o que falta é a concentração do voto do centro em torno da única formação que pode garantir o alívio imperativo, ou seja, o PP. Não há alternativa.” Intui-lhe um ‘infelizmente’ na voz. Facto é que o UPyD e, sobretudo, o Ciudadanos mostraram haver espaço para um partido liberal. “Talvez dentro de alguns anos esse espaço possa ser reocupado por algo parecido com o que foi o Ciudadanos. Veremos.” As ideias não desapareceram e os eleitores também não.

A primeira vez que o termo ‘liberal’ assumiu um significado político foi precisamente em Espanha. Mais de três centenas de homens reunidos em Cádis entre 1810 e 1814 criaram a constituição liberal de 1812, texto pioneiro cuja influência cruzou fronteiras, desde logo para o vizinho Portugal, onde inspirou a constituição de 1822. Muito aconteceu ao liberalismo desde então, mas, em Espanha, o padrão parece imutável desde o século XIX: desentendimentos, egolatrias e erros iliberais impuseram a projectos políticos promissores – e muito necessários – uma vida efémera.

Diogo Noivo é Mestre em Segurança e Defesa pela Universidade Complutense de Madrid e pelo Centro Superior de Estudios de la Defensa Nacional (CESEDEN) e licenciado em Ciência Política – ramo de Política Comparada – pela Universidade Lusíada de Lisboa. Investigador associado do Observatório Político (ISCSP — Universidade de Lisboa). É politólogo e consultor.

*O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

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