Quando, na quinta-feira, Marcelo Rebelo de Sousa falar ao país para anunciar a data das próximas legislativas, as placas tectónicas do planeta PSD vão, necessariamente, colidir. Se o Presidente da República marcar eleições para meados de janeiro, hipoteca, muito provavelmente, as hipóteses de Paulo Rangel. Se Marcelo atirar as eleições para o final de janeiro, como parece ser essa a sua intenção, esvaziará parte da argumentação de Rui Rio, que ainda vai lutando pelo adiamento das diretas no PSD. Aconteça o que acontecer, a decisão do Presidente nunca terá um efeito neutro — e pode virar definitivamente o jogo social-democrata.
No domingo, quando falou aos jornalistas pela primeira vez desde o chumbo do Orçamento do Estado e foi confrontado com as várias referências recentes de Rui Rio à urgência de antecipar as legislativas, Marcelo deixou um recado claro a Rui Rio. “Sinto-me pressionado ao longo do mandato legitimamente em várias circunstâncias por quem pretende uma coisa ou outra. O problema não é estar pressionado, porque a função de quem pressiona é pressionar, é estar acima das pressões“.
É fácil antecipar o alcance das palavras do Chefe de Estado. Nos últimos dias, a direção do PSD tem pressionado Marcelo a marcar eleições o quanto antes, de preferência até 16 de janeiro. Na passada quinta-feira, o Observador dava conta de como Rio estava em rota de colisão com o Presidente da República e de como a direção do PSD temia aquilo a que chamava um frete a Paulo Rangel.
Na sexta-feira, em entrevista à SIC, Rio foi mais longe do que nunca e disse claramente que se Marcelo marcasse eleições para o final de janeiro, ao arrepio de tudo o que dissera publicamente, seria a prova provada de que estaria a escolher o lado de Paulo Rangel. De resto, o líder do PSD não tem deixado esquecer as declarações iniciais de Marcelo, que sempre defendeu, mesmo quando o chumbo do Orçamento era uma hipótese meramente académica, eleições antecipadas o mais cedo o possível — e o mais cedo possível não é favorável ao calendário de Rangel.
Os dois, Marcelo e Rio, estiveram juntos em Belém, no sábado, num encontro relâmpago — apesar de ser o líder do maior partido da oposição, a audiência com o presidente do PSD foi a mais rápida do dia e o ambiente no interior da sala foi descrito ao Observador como tendo sido “tenso“.
Dois dias depois, Isabel Meirelles, vice-presidente do PSD, acusava Marcelo de ter disparado um “projétil a partir de Belém”, colocando em toda a sua carga o ingrediente mais nocivo do ser humano, o ódio, o ódio visceral a Rui Rio”. Acontece que, tal como o Observador escreveu, o Presidente da República não estará particularmente convencido com os argumentos da direção do PSD. Marcelo, aliás, estará mais inclinado a marcar eleições a 30 de janeiro ou, no limite, a 6 de fevereiro. Uma como outra data não servem os propósitos estratégicos de Rui Rio — e podem inclinar de forma decisiva a balança social-democrata.
Como o calendário de Marcelo pode implodir estratégia de Rio
Há um dado inequívoco: quanto mais curto for o calendário nacional, mais força interna terá Rui Rio para anular a téorica vantagem de Paulo Rangel junto das estruturas do partido. De resto, numa semana que será decisiva para o futuro do PSD, o líder social-democrata vai jogando em vários tabuleiros.
Primeiro: se Marcelo marcar eleições para 16 de janeiro, mais argumentos terá Rui Rio para tentar convencer os conselheiros nacionais a adiarem as eleições diretas no partido. Quando o chumbo do Orçamento do Estado era ainda um cenário hipotético, a direção do PSD tentou suspender as diretas no partido, mas acabou derrotada de forma expressiva no Conselho Nacional. Se Marcelo escolher a data sugerida pela direção do PSD (e por outros seis partidos, incluindo o PS), a pressão sobre os conselheiros nacionais do PSD para que invertam as suas posições iniciais vai ser muito maior.
A esta distância, no entanto, não é previsível que os equilíbrios internos do Conselho Nacional do PSD se tenham alterado a favor de Rui Rio. Mas, quando entrar na reunião do órgão máximo do partido entre congressos, no sábado, o líder social-democrata já saberá a data escolhida por Marcelo.
Se lhe for favorável, Rio fará de tudo para dramatizar e tentar forçar mais uma vez o adiamento das eleições internas — de resto, esta segunda-feira, a direção social-democrata enviou uma carta aos militantes do partido, a que o Observador teve acesso, para defender, mais uma vez, uma reflexão sobre o adiamento das internas. E este foi só o começo de uma semana de alta tensão no partido.
Em segundo lugar, e mesmo que não consiga maioria no Conselho Nacional para adiar as diretas, se as eleições legislativas forem até 16 de janeiro, Rio ficará com uma vantagem decisiva face a Rangel. Como o Observador já foi explicando, se as legislativas forem nessa data, e de acordo com a lei eleitoral, o PSD teria de entregar as listas de candidatos a deputados até 6 de dezembro, dois dias depois das diretas do partido, agendadas para 4 de dezembro.
Por outras palavras: com eleições legislativas a 16 de janeiro, Paulo Rangel não teria manifestamente oportunidade de conduzir o processo eleitoral, o que poderia enfraquecer de forma determinante a sua candidatura à liderança do PSD.
Em terceiro lugar, além da mera mercearia partidária (quem está com quem, quem controla ou não as listas de deputados), o presidente do PSD vai jogando com outro fator: o da estabilidade. Rio está há quatro anos à frente do partido, já foi testado em várias eleições, já enfrentou uma vez António Costa, tem equipa pronta e programa preparado para ir a votos. Com um calendário mais curto, o líder social-democrata tenderá a piscar o olho aos militantes mais conservadores: para quê arriscar numa solução nunca experimentada (Paulo Rangel), se há uma aposta segura chamada Rui Rio? A direção social-democrata entende que a resposta favorece o incumbente.
Ora, a confirmarem-se as intenções de Marcelo de atirar as eleições legislativas para o fim do mês, a direção de Rui Rio perderá força nestas três frentes. Os conselheiros nacionais (que já antes estavam com Rangel) não deverão mudar de lado ao ponto de o adiamento das eleições diretas ser aprovado; Rangel, vencendo as diretas, ficará em condições para conduzir o processo eleitoral e escolher os candidatos a deputados; e a teórica falta de preparação do eurodeputado poderá ser um fator menos preponderante quando os militantes sociais-democratas forem chamados a escolher o próximo líder do PSD.
Baralhando e dando de novo: se a falta de tempo é o maior aliado de Rui Rio para segurar a liderança do PSD, é Marcelo Rebelo de Sousa quem tem o cronómetro na mão. Quanto mais tarde marcar eleições legislativas, menos força terá a narrativa que Rui Rio construiu para neutralizar a candidatura de Paulo Rangel.
Lobo Xavier, Marques Mendes e Louçã dão força a Rangel
Depois do encontro com Marcelo Rebelo de Sousa, que o deixou sob fogo cerrado, Rangel apostou noutra estratégia e apareceu publicamente (e como voz isolada) a pedir eleições a 20 ou a 27 de fevereiro. Datas muito para lá do que o Presidente da República definiu como razoável para ir a votos.
Percebe-se porquê: se o Presidente da República escolher o 30 de janeiro, Rangel poderá sempre dizer que também ele joga num calendário que não lhe é favorável, afastando a ideia de estar a ser favorecido por Marcelo Rebelo de Sousa e de estar a jogar num campo inclinado a seu favor — apesar de colher a simpatia das maiores estruturas do partido, Rangel não teria nada a ganhar em ir a votos com a suspeita de ter recebido um empurrão do Presidente da República.
Ainda assim, e esse é outro dado inequívoco, o eurodeputado só tem vantagens em ter legislativas mais tarde. Se as eleições forem a 30 de janeiro, e de acordo com a lei eleitoral, o partido só precisaria de entregar as listas de candidatos a deputados a 20 de dezembro.
No Conselho Nacional marcado para sábado, em Aveiro, as tropas de Rangel tudo farão para aprovar a antecipação do Congresso do PSD, que reconhece formalmente o líder do partido, para 17, 18 e 19 de dezembro — mais do que a tempo de preparar tudo para umas legislativas a partir do final de janeiro. Conseguidos os dois objetivos, o tempo deixaria de ser um adversário.
Curiosamente, e de acordo com uma notícia do Expresso nunca desmentida, foi Marcelo Rebelo de Sousa, no tal encontro a dois em Belém, quem sugeriu a Paulo Rangel que, no passado, o congresso do PSD já foi antecipado para se adaptar à realidade política — precisamente, o que viria a propor o eurodeputado.
Seja como for, Marcelo terá sempre de explicar o porquê do recuo face aos seus planos de sempre. Apesar da vontade maioritária dos partidos de irem a votos já a 16 de janeiro — apenas IL e PAN defenderam o 30 de janeiro, não lhe faltarão argumentos de peso: o processo legislativo que falta concluir (incluindo a despenalização da eutanásia, outro irritante entre Rio, Rangel e Marcelo), os exemplos anteriores (em circunstâncias idênticas, Jorge Sampaio deu quase dois meses aos partidos para irem a jogo) ou as opiniões de vários conselheiros de Estado que já defenderam publicamente a data de 30 de janeiro, como Luís Marques Mendes, António Lobo Xavier ou Francisco Louçã, aos quais se poderão juntar Aníbal Cavaco Silva e Francisco Pinto Balsemão, figuras do PSD que têm dado sinais de desgaste em relação a Rui Rio.
No fim do dia, Marcelo Rebelo de Sousa poderá até usar o argumento de que é preciso garantir todos os partidos estão em condições semelhantes de ir a votos nas próximas legislativas — e que essas condições só estarão verdadeiramente reunidas se as respetivas situações internas estiverem clarificadas. E isso aplica-se também ao CDS.
A corrida contra o tempo de Melo
A estratégia que Rui Rio tem em mente já foi aplicada com sucesso por Francisco Rodrigues dos Santos no CDS. Com uma diferença substancial: ao contrário do social-democrata, o líder democrata-cristão tem de facto a maioria no seu Conselho Nacional, o que permitiu que conseguisse votar e adiar as eleições internas no partido.
Contas feitas, Nuno Melo não tem, neste momento, condições para disputar a liderança do CDS até às próximas legislativas. O eurodeputado entregou um pedido de impugnação no tribunal do partido que, atendendo ao que aconteceu na sexta-feira, voltará a dar razão a Melo e declarar nulo o adiamento do Congresso do CDS, inicialmente agendado para 27 e 28 de novembro.
Ainda assim, e mesmo assumindo que o Conselho Nacional de Jurisdição do CDS dá razão à queixa do eurodeputado, entre a análise do pedido de impugnação, a necessidade do contraditório, a redação de um parecer e os possíveis recursos para o Tribunal Constitucional, o tempo corre sempre a favor de Francisco Rodrigues dos Santos.
No limite, e imaginando que Melo vence mais uma batalha no tribunal do partido, a atual direção do CDS poderia sempre convocar um novo Conselho Nacional e voltar a aprovar o adiamento das eleições internas para depois das legislativas — uma possibilidade que Filipe Anacoreta Correia, presidente da Mesa do Conselho Nacional, chegou a admitir publicamente na noite de sexta-feira. Nada indica que o desfecho fosse diferente.
Existe, no entanto, o fator Marcelo. Se o Presidente da República atirar as eleições internas para mais tarde, Nuno Melo terá ainda margem (mesmo que reduzida) para reagir. A pressão pública criada pelos acontecimentos dos últimos dias, a intervenção de figuras como Paulo Portas, Assunção Cristas e Lobo Xavier, as saídas de quadros como Adolfo Mesquita Nunes e António Pires de Lima, poderiam, em teoria, alterar as dinâmicas internas do CDS a favor de Melo e forçar Rodrigues dos Santos a ir a votos. Continua, ainda assim, a ser uma equação com muitos fatores imponderáveis.