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Marta Temido considera que um eventual apoio de partidos e Governos com as características do húngaro e do italiano a uma eventual candidatura de António Costa ao Conselho Europeu comporta “riscos”, nomeadamente condicionamentos nos processos de decisão que derivam desses apoios, e exige vigilância. Ainda assim, a socialista confia na independência de Costa, fé que não deposita no apelo de Ursula von Der Leyen pela extrema-direita. “Von der Leyen não está em risco de ser capturada; está disponível para ser capturada.”
Em entrevista ao Observador, a cabeça de lista do PS às europeias reconhece que teria “muitas dúvidas” em aprovar o Pacto para as Migrações e Asilo, que tantas críticas tem merecido nesta campanha e que foi aprovado também com os votos dos socialistas. Apesar de tudo, a antiga ministra reafirma as críticas a todos os que querem construir muros e aponta mesmo o dedo a Pedro Sánchez, espanhol e histórico aliado do PS. “Evidentemente que não concordamos com o muro em Marrocos. Lá por o governo ser socialista, isso não quer dizer que nós achemos que tudo o que faz é bem feito.”
Temido recuperou ainda uma crítica que tem feito à Aliança Democrática e ao Partido Popular Europeu sobre o facto de o aborto não ter sido incluída na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, sugerindo que a direita quer impor uma agenda de retrocesso. Confrontada com o exemplo de governo socialista de Malta, o Estado-membro com legislação mais restritiva sobre o aborto, a antiga ministra demarca-se e assume que o papel da UE deve passar por “obrigar os Estados-membros a adequar a legislação” em matéria de direitos humanos, como será, para Marta Temido, o aborto.
A socialista fala ainda de Israel e sobre o reconhecimento do Estado da Palestina, assumindo que a posição do Estado português — que tem insistido numa solução encontrada no quadro multilateral — também tem riscos. “Se permanecermos, como até agora, agarrados à ideia de uma voz única, vamos permanecer numa inação”, alerta.
Quanto à Ucrânia, Marta Temido reitera que deve haver um “apoio irrenunciável e incondicional a Kiev”, mas coloca para lá dos limites o envio de tropas para a Ucrânia. Nesse aspeto, a socialista, que já no passado se tinha mostrado desconfortável com o discurso recente de Gouveia e Melo a esse propósito, não fecha a porta a um apoio a uma eventual candidatura presidencial do almirante. “Depende do projeto. Acreditem ou não, nunca falei de política com Gouveia Melo”, diz.
[Veja aqui na íntegra a entrevista a Marta Temido]
“A direita tradicional está a aderir às ideias da direita radical”
Francisco Assis, que é número dois da sua lista e é um dos dirigentes mais experientes e respeitados do PS, afirmou recentemente que é “um crime” associar a direita moderada à extrema-direita. Concorda com ele?
A qualificação, claramente que sim. Em termos daquilo que é a associação, acho que estamos também ambos de acordo. É um risco não identificarmos aquilo que são alguns dos riscos que advêm dessa associação. E nós conhecemo-los bem.
[Já saiu o segundo episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio.]
Não. No fundo, o que Francisco Assis diz é que não há essa associação.
Não, não. Quando confrontamos a direita tradicional com a direita radical, podemos ver o ponto de amarração na direita tradicional ou na direita radical. E aquilo que nós temos visto — e esse é que é o risco — é que a direita tradicional se desloca para aderir às ideias da direita radical.
Não é isso que Francisco Assis diz — diz que o PS não deve confundir os adversários e que os outros “não são todos iguais”.
E estamos completamente de acordo. Repare, ainda muito recentemente disse isso: o meu inimigo é a direita radical. Não é, por exemplo, nesta eleição concreta, Sebastião Bugalho. Estamos, portanto, de acordo.
“Von der Leyen, quando esteve melhor, foi quando seguiu a influência dos socialistas”
No vosso manifesto pode ler-se que “há uma falta de vontade política da direita moderada de se distinguir e distanciar da extrema-direita e que o PPE, a família política onde se integram o PSD e o CDS, já deu a entender que o não à extrema-direita pode afinal ser, uma expressão em inglês, um ‘why not’ ou ‘um yes please’”. Portanto, tem estado sucessivamente na sua campanha a colar a direita tradicional à extrema-direita quando Francisco Assis acha que isso não deve ser feito.
Não somos nós que colamos a direita tradicional à extrema-direita. Muito pelo contrário. A ideia da nossa campanha é vincular a direita tradicional, concretamente aquilo que é o Partido Popular Europeu e a atual presidente da Comissão e Spitzenkandidaten pelo PPE, a fazer entendimentos e a aderir ao projeto político dos socialistas europeus. O que temos assistido, e esse é o risco, é a uma maior aproximação, a uma deslocação da força face a uma direita radical, extremista, e que utiliza o discurso de ódio para fazer a sua campanha.
Tem falado muito desse perigo da atual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, de se aliar à direita radical, para conseguir o segundo mandato, mas von der Leyen disse, ainda esta semana, expressamente, que só aceitará trabalhar com partidos que sejam pró-NATO, pró-União Europeia, pró-Ucrânia e pró-Estado de Direito. Estas garantias não são suficientes?
Não, não são suficientes. Há dimensões nesses partidos que têm a ver com os direitos individuais, que têm a ver com os direitos das mulheres, com as minorias, que estão bastante postos em causa por aquilo que são posições, por exemplo, do modelo italiano. É algo que nos preocupa bastante.
Ainda em março, António Costa disse o seguinte: “Ursula von der Leyen fez um excelente mandato, ao longo dos últimos cinco anos. Foi com esta comissão que demos passos muito importantes. Só tenho a dizer bem”. Não concordo então com António Costa?
Concordo. A questão é que a senhora Ursula von der Leyen, quando esteve melhor, foi quando seguiu a influência dos socialistas europeus.
Não por vontade própria, portanto.
Era isso que estava exatamente a pretender dizer, referindo que não havia nenhuma contradição entre posições. O risco é o de o PPE se deslocar daquilo que são as suas posições mais tradicionais para posições mais extremistas.
Mas compreende que é difícil acreditar que tudo o que aconteceu de bom foi por responsabilidade dos socialistas europeus e tudo o que aconteceu de mau foi por responsabilidade do PPE e da própria Ursula von der Leyen, quando António Costa faz este elogio rasgadíssimo à Presidente da Comissão Europeia.
Compreendo, mas dou-lhe dois ou três exemplos. A questão da mutualização da dívida…
.. que António Costa também dava como exemplo dos méritos da presidência de Ursula von der Leyen.
Mas a mutualização da dívida, é bem sabido, foi algo de que o PPE sempre se demarcou.
Não Ursula von Der Leyen. Pelo menos, fazendo fé no que disse António Costa.
As declarações mais recentes de Von der Leyen mostram hesitação relativamente a este tema da mutualização da dívida. Há alguma oscilação, mas não em relação ao passado. O Next Generation EU é um assunto arrumado. A Comissão Europeia teve apenas um papel de elaboração de um regulamento. Não foi a Comissão que teve essa iniciativa — foi o Parlamento Europeu. Houve um processo que foi trabalhado também com o apoio do Ecofin, onde estava na altura Mário Centeno. Houve depois trabalho entre o Conselho Europeu e, no fundo, também os Parlamentos nacionais.
Portanto, os méritos foram de todos, menos do PPE.
Não, não é isso que estou a dizer. Só que temos de ter a noção daquilo que são as posições históricas do PPE relativamente a esta matéria. E temos de ter a noção do atual enquadramento. Se tivesse havido uma verdadeira adesão a este princípio de que em determinadas situações é necessário que haja investimento e que o investimento é uma arma de alavancagem de sustentabilidade e de melhor emprego. Se tivesse havido esse caminho, não haveria apenas a abertura que agora existe: utilizar a mutualização da dívida no contexto da defesa.
Feita essa análise a Ursula von Der Leyen, não há a possibilidade de os socialistas europeus repetirem o apoio à recandidatura?
Depende daquilo que seja a política de alianças proposta pelo PPE. E depende daquilo que seja o projeto político que o PPE entende poder vir a defender. No anterior mandato europeu foi possível encontrar consensos, haver entendimentos em matérias como o projeto social europeu. Ursula von Der Leyen assumiu esses compromissos e cumpriu-os.
Num cenário em que os socialistas europeus são necessários para impedir, por exemplo, que os conservadores façam parte da solução, que decisão terão? Vão pôr-se fora da solução?
Depende do projeto político apresentado. É um caminho relativamente ao qual tenho esperança. Não tenho certezas e não se pode assinar uma carta em branco.
“Devemos obrigar Malta a adequar a legislação sobre o aborto”
Quando apresentou a candidatura, disse o seguinte: “Não faltam exemplos de que a AD e a sua família europeia representam uma agenda de retrocessos, chegando até a dar como exemplo o não reconhecimento do aborto como direito na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Sabrá certamente que Malta, liderada por um governo socialista, é o único país da União Europeia em que o aborto é ilegal. Então, é justo dizer que na família europeia do PS também há agendas que representam o retrocesso?
É verdade que há partidos socialistas em determinados Estados-membros que têm agendas com as quais nós não nos identificamos. Qual é a diferença? A diferença é que nós, socialistas portugueses, estamos alinhados com os socialistas europeus e não temos nenhum ponto de fricção, nem nenhuma divisão relativamente àquilo que é o programa dos socialistas europeus. Coisa diferente daquilo que acontece com outras forças políticas, onde até pode haver alinhamento entre partidos nacionais, mas há distanciamento nas perspetivas relativamente àquilo que são os programas.
A AD não tem a questão do aborto no seu programa. Aliás, foi tema da campanha eleitoral para as legislativas e Luís Montenegro reafirmou várias vezes que não havia qualquer vontade de alterar o que quer que fosse na legislação. Daí a pergunta: faz sentido fazer esta colagem entre a AD e o que defendem alguns partidos do PPE?
Tive a oportunidade de ouvir, ainda muito recentemente, o senhor primeiro-ministro, num debate na Assembleia da República, a justificar a não inclusão do aborto como Direito Fundamental.
É uma discussão jurídica. Não tem que ver com a vontade de restringir o direito das mulheres ao aborto. Luís Montenegro não tem ou não defende qualquer tipo de obstáculo ou qualquer alteração à lei do aborto.
É interessante que agora tudo aquilo que tem política por trás é uma discussão jurídica. A liberdade de expressão também é uma discussão jurídica. A AD quer incluir outros direitos, nomeadamente o direito à Habitação, na Carta de Direitos Fundamentais. Portanto, se vale para uma coisa, se é importante para uma coisa, a nossa pergunta é: porque é que não é importante para outra? Nós queremos fazer esse caminho porque, relativamente aos direitos sexuais e reprodutivos, a partir do momento em que isso constar da Carta, vai inibir os Estados-membros de fazerem retrocessos. Exatamente como aquilo que refere em Malta.
Então querem forçar Malta a mudar a lei do aborto?
Não, não queremos forçar. Queremos alinhar por um patamar europeu relativo ao respeito por determinados direitos. É uma questão de alinhamento em relação a determinados valores, nos quais, uma vez mais, o PS está em linha com a família socialista europeia.
Portanto, acha que o governo socialista de Malta não tem legitimidade para aplicar e manter uma lei restritiva do aborto?
Legitimidade, tem. Mas devolvo a pergunta: acha que o direito à Habitação, a partir do momento em que constasse da Carta, restringiria a ação de algum governo, de algum Estado-membro?
Mas a colocação do aborto na Carta de Direitos Fundamentais não é para ter um efeito prático?
Claro que sim.
E qual seria o efeito prático em Malta?
Exatamente esse: obrigar o Estado-membro a adequar a sua legislação.
Portanto, a União Europeia deve forçar Malta…
… não é forçar, é impor um limite de respeito pelos direitos humanos.
Impor. Não é forçar, é impor.
Certo. Como deve impor o respeito pelo Estado de Direito Democrático. Ou não?
Bom, o governo socialista de Malta, que faz parte da sua família, é que acha que não.
Há, dentro de todas as famílias, entendimentos diferentes de alguns partidos. A questão é se nós, socialistas portugueses, estamos alinhados ou não com a nossa família. O que estou a dizer é: estamos. O mesmo não se pode dizer relativamente a outras forças políticas
Apoio de Orbán e Meloni a Costa? “Há nesses apoios riscos de captura”
Em relação a uma eventual candidatura de António Costa à presidência do Conselho Europeu, considera imprescindível que o caso judicial esteja concluído ou arquivado?
Não me parece que isso seja possível. A Justiça tem os seus tempos.
Não lhe parece que seja possível que esteja arquivado até lá?
Não. A Justiça tem os seus tempos e a Terra move-se, inevitavelmente.
A Comissária Elisa Ferreira, por exemplo, dizia recentemente que é um obstáculo mais colocado pelo próprio António Costa do que por alguém em Bruxelas. Concorda com essa ideia?
Naturalmente. Não me parece que isso seja um obstáculo. As pessoas têm direito de decidir, de se autolimitarem. Se o próprio considerar que está limitado, sim. Quanto à avaliação de outros, claramente que não.
Tem sido muito dura em relação à Hungria de Viktor Orbán. António Costa deve rejeitar o apoio de Orbán ou de Giorgia Meloni caso seja candidato?
Há nesses apoios riscos de captura. Inevitavelmente. Mas será uma discussão política que terá de ser tida pelos próprios.
Que risco de captura é que vê?
Condicionamentos nos processos de decisão que derivam da obtenção de determinados apoios.
António Costa ficaria refém dos interesses de Meloni e Orbán?
António Costa tem experiência suficiente e não precisa dos nossos conselhos relativamente à forma como se negociariam esses apoios.
Acha possível, portanto, que aceitasse o acordo desde que colocasse algumas linhas vermelhas?
Naturalmente.
No seu manifesto eleitoral defende o seguinte: “Aperfeiçoar a aplicação do regime de condicionalidade no desembolso de fundos, sempre que esteja em causa o cumprimento de padrões essenciais do Estado de Direito. Precisará seguramente pensar, por exemplo, na Hungria de Viktor Orbán”. António Costa chegou a dizer que era perigoso “inventarem-se critérios”, palavras do próprio, para aplicação de fundos, que depois desses critérios poderiam vir outros mais, que poderiam prejudicar outros países. Discorda do antigo primeiro-ministro?
Limito-me a observar a realidade. E a realidade é que mostra que esse critério foi importante exatamente para pressionar a Hungria, pelo menos até a um determinado momento.
António Costa estava enganado quando fez essa avaliação?
Tendencialmente, sim. Até alinharia com a objeção de princípio, mas verificamos que o caso prático da Hungria trouxe alguma utilidade a esse critério.
Estaria António Costa nessa altura já capturado por esta vontade de manter boas relações com Viktor Orbán?
Não me parece. O risco que António Costa sinalizava era mais um risco de associação entre dois aspetos que nos repugnaria fazer depender um do outro: questões financeiras e direitos humanos.
Ursula von der Leyen não conseguirá negociar com os partidos da direita radical sem ficar capturada, mas António Costa já consegue?
É diferente. Von der Leyen não está em risco de ser capturada; está disponível para ser capturada.
Ainda em janeiro deste ano, quando se discutia o bloqueio da Hungria ao novo quadro plurianual e a ajuda à Ucrânia, António Costa dizia que era um erro perder a paciência com Orbán. Não corremos aqui o risco de ficar a pensar que o PS tem um discurso dúplice nesta matéria, em que dentro de Portugal é muito duro e lá fora, como vimos com António Costa, é muito pragmático a lidar com países iliberais?
Temos de lidar com os Estados-membros em função das escolhas políticas dos respetivos governos, com grande pragmatismo. Coisa diferente é a nossa própria escolha em termos das nossas famílias políticas, dos representantes relativamente aos quais temos uma palavra a dizer. O povo húngaro fez a sua escolha. Temos de lidar naturalmente com os representantes que o povo húngaro escolheu. Não confundo as duas dimensões.
Já disse que o seu adversário não é Sebastião Bugalho, é o Chega. Prefere que a AD ganhe se isso significar que o Chega tem uma votação mais baixa?
Não creio que isso resolvesse os problemas dos portugueses e do projeto europeu.
Mas é mais importante o Chega ter uma votação baixa?
São as duas coisas importantes. Não me repugna que a AD cresça à custa do Chega. Penso que isso é positivo para a democracia. Não deixo de reconhecer que isso pode ser um risco para o PS ficar à frente nas próximas eleições. Mas para isso nós batemo-nos todos os dias. A nossa resposta nunca será dizer que é indiferente votar na AD ou votar no Chega. A nossa resposta é dizer que se o voto for no PS, o projeto social fica mais bem defendido.
“Reconhecimento da Palestina? Se continuarmos agarrados à ideia de voz única, vamos permanecer na inação”
Acha bem que o Tribunal Penal Internacional imita mandados de captura contra o primeiro-ministro e ministro da Defesa de Israel? Concorda com essa opção?
Avaliar as decisões de tribunais, sejam eles nacionais ou outros, é sempre complexo. Mas entendo que quando estão em causa crimes de guerra eles devem ser investigados e punidos, quem quer que sejam os seus autores.
Entende que está a ser conduzido um genocídio na faixa de Gaza, como alega, por exemplo, Catarina Martins?
Teríamos aqui uma discussão jurídica sobre se o tipo de atos que está a ser praticado preenche o requisito de desejo de eliminar um povo ou não, para averiguarmos se cabe no tipo de genocídio. Mais do que a classificação jurídica, o que está em causa é que estamos perante uma tragédia humanitária, relativamente à qual a única posição correta é a posição do secretário-geral das Nações Unidas: apelar incessantemente a um cessar-fogo imediato, à entrada de ajuda humanitária e ao respeito pelo direito internacional humanitário. Isso é o mais relevante neste momento.
A União Europeia tem sido acusada de não estar a fazer o suficiente para pressionar Israel. Deveria aplicar sanções a Telavive?
Não creio que haja capacidade da UE de ter uma opinião única relativamente a esse tema. É uma hipótese. Tem sido difícil encontrar uma voz única na UE, apesar dos esforços do alto representante, para sequer avançar no reconhecimento da Palestina como Estado. Todos comungam do desejo de que haja uma solução de dois estados, mas tem sido difícil avançar a uma só voz relativamente ao passo seguinte. Isso tem levado a que alguns países caminhem isoladamente. Isso, de alguma forma, mostra a dificuldade de termos uma posição comum num tema que seria ainda mais complexo, o da suspensão do acordo comercial ou da aplicação de sanções. É um processo que se deve fazer e que está em andamento, como todos parecem reconhecer quando dizem que está em evolução.
Houve esta semana vários países — Espanha, Irlanda e Noruega — que decidiram reconhecer o Estado da Palestina. Juntaram-se Polónia, Bulgária, Roménia, Hungria, Chequia, Eslováquia, Suécia e Chipre. Disse numa entrevista ao Público que haveria vantagens em reconhecer já o Estado da Palestina. Quais são elas?
Se permanecermos, como até agora, agarrados à ideia de uma voz única, vamos permanecer numa inação. Porque as conversas que têm sido tidas mostram que há países que estão muito retraídos relativamente a essa opção, que não a farão.
E Portugal está demasiado retraído?
Não, não está. Não posso falar pelo governo português.
Estamos a perguntar pela sua avaliação da ação do governo português.
Só posso falar daquilo que sei e de afirmações públicas quer do anterior governo, quer deste governo. O anterior Ministro dos Negócios Estrangeiros chegou a afirmar no Parlamento que havia trabalho que estava a ser feito, entre Portugal e outros países – designadamente esses que agora referiu que decidiram avançar, no sentido de uma eventual posição fronteira. E depois tivemos eleições…
Acha que, se o PS ainda fosse governo, avançaria já para o reconhecimento do Estado da Palestina?
Imagino que sim. Não se pode dizer isso com segurança. É muito fácil falar de “ses”, mas admito que sim, porque sabemos que a situação se degrada de dia para dia, e que aqueles que gostaríamos que fizessem este caminho connosco parecem estar parados, mas só se essa situação tivesse acontecido é que se poderia ter a certeza. É fácil falar em abstrato, não é?
Ainda assim, quando era primeiro-ministro, António Costa afirmou que um dos pressupostos do reconhecimento do Estado da Palestina era o extermínio do Hamas. Essa condição não está cumprida. O Hamas estaria a ser beneficiado?
É evidente que esse é o outro lado da moeda, por isso é que dizia que isto é um problema muito complexo em que governo e partidos de oposição terão de trabalhar em conjunto para avaliar essas dimensões. Esse tema poderá ser uma das condições que quem está com uma posição mais recuada invoca.
Mas para percebermos a posição da Marta Temido: isso é essencial ou não antes de avançar para o reconhecimento do Estado da Palestina?
É muito importante.
Então as vantagens de que falou, de reconhecer já esse Estado, já não são suficientes.
Mas por isso é que eu dizia que é uma decisão difícil. Não podemos ignorar completamente que há um risco de a Palestina ser capturada por outras forças, por outros países mais extremistas e, portanto, compreendo essas palavras, mas essas palavras foram ditas há quantos meses?
Há algum tempo, mas o Hamas continua a controlar uma parte do território. Seria entregar um Estado a um grupo terrorista.
Bem sei. Mas o que é facto é que o senhor Netanyahu continua a dizer que não vai sair da sua posição. E Israel continua a ter problemas internamente.
Espanha avançou e tem liderado a tentativa de criar um movimento na UE para o reconhecimento do Estado palestiniano. A vice-presidente do governo espanhol, que é também ministra do Trabalho, falou sobre o reconhecimento esta semana e defendeu uma Palestina livre “do rio até ao mar”. Concorda?
Esse é o outro aspeto relevante: a dimensão dos Estados. A solução de falarmos a uma só voz e de negociarmos as fronteiras era uma solução mais ponderada, mais equilibrada. Mas nem sempre podemos ter as melhores soluções. Essa visão não me parece que seja possível.
No fundo seria o fim do Estado de Israel, não é?
Isso não é possível. Se partimos do princípio que queremos dois Estados, obviamente não podemos assumir que há um que vence o outro.
“Sánchez esteve mal por não se opor aos muros em Marrocos”
Já reconheceu que na aplicação do Pacto das Migrações pode haver um risco de violação de princípios fundamentais. Porque é que os socialistas europeus aprovaram o documento se há esse risco? Se fosse eurodeputada, tinha votado a favor?
É uma boa pergunta. Teria tido muitas dúvidas. Mas penso que no final teria votado a favor. Tive já oportunidade de falar com alguns dos eurodeputados socialistas que votaram contra. Compreendo perfeitamente as reservas e os riscos de algumas das soluções. No final da avaliação, quando verificamos que a prioridade de Wilders, nos Países Baixos, é incitar uma luta para que o Pacto não seja aplicado, [significa que] algumas vantagens o Pacto tem. E sabíamos que ele as tinha. O mecanismo da solidariedade é uma vantagem, e o facto de ser obrigatório também. Já a flexibilidade nesse mecanismo de obrigatoriedade, de solidariedade entre os Estados Membros para a responsabilização pelo acolhimento de migrantes, já pode ser mal utilizada, porque há abertura para que os Estados entre si façam apenas compensações financeiras. Isso privilegiaria os países mais ricos. Outra vantagem significativa é o mecanismo de vigilância e escrutínio dos direitos fundamentais dos requerentes de asilo ou dos requerentes de entrada. Em contraponto, sabemos que esse mecanismo só opera no momento em que se inicia o processo de triagem e há ali um hiato temporal em que poderá não estar a funcionar. Por isso dizemos que não seria o nosso pacto, mas, na sua implementação, vamos estar muito atentos, tentando minimizar os riscos.
É um mal menor?
É um mal menor. Foi o pacto possível face a famílias com perspetivas muitíssimo diferentes.
Tem sido muito crítica sobre o que pode vir a acontecer no futuro em termos de fronteiras e disse o seguinte: “Não somos nós que dizemos que a construção de infraestruturas para fechar as fronteiras da União Europeia são a solução para o problema das migrações. Mas há quem o diga. Há quem diga que a única diferença entre a AD e o PPE é que uns entendem que essas fronteiras devem ser construídas com o dinheiro europeu e outros não”. Uma das fronteiras da União Europeia separa Espanha de Marrocos. Tanto quanto sabemos, o governo socialista que lidera Espanha há oito anos nunca se opôs àqueles muros.
Mal.
No seu entender, não devia existir aquela infraestrutura.
Evidentemente que não. Lá por o governo ser socialista, isso não quer dizer que nós achemos que tudo o que faz é bem feito ou tudo o que aceita resolve as situações. A nossa perspetiva sobre esse tema é muito clara: infraestruturas físicas não resolvem o problema. Somos confrontados com imagens de pessoas que tentam passar o muro frequentemente. É a prova de que não é por aí.
Qual seria a alternativa?
Canais regulares e seguros de migração, gestão de migrações, uma abordagem solidária e realista. Sabemos que não podemos acolher todos aqueles que queiram vir viver para a Europa. Isso tem um impacto, queremos que as pessoas sejam bem integradas e, portanto, tem de haver as duas perspetivas combinadas. Solidariedade, mas também realismo.
Que razões é que encontra para que a Pedro Sánchez, um socialista e aliado de António Costa, não lhe tenham ocorrido outras soluções que não o muro?
Terá de lhe perguntar a ele. Mas não somos os espanhóis, apesar de tudo. É interessante verificar que este é um tema onde os vários partidos socialistas dos vários Estados-membros têm opiniões que não são exatamente coincidentes.
Apoio a Gouveia e Melo? “Depende do projeto”
Mostrou algum desconforto em relação às declarações de Gouveia Melo sobre a possibilidade de termos de morrer pela Europa. Arrepende-se de ter feito parte de um governo que promoveu politicamente um militar?
Pessoalmente, não tenho qualquer arrependimento. Nenhum português entenderia que estivéssemos arrependidos daquilo que foi o trabalho do vice-almirante Gouveia Melo no processo de vacinação. Não há dúvida nenhuma de que o senhor vice-almirante tem uma leitura militar e eu tenho uma leitura civil.
A questão é quando se confundem o papel civil e militar.
Não se confundem. Pelo menos, da minha parte, nunca houve confusão.
E da parte do vice-almirante Gouveia Melo, acha que há essa confusão?
Não creio. Compreendo que a posição dele como militar seja que estamos disponíveis para servir a nossa pátria até o limite. Tem a ver com os valores das forças armadas. Se calhar ninguém perdoaria que ele não dissesse isso. Agora, entendo que o poder político tem de escrutinar aquilo que é intervenção militar.
Votaria nele se fosse candidato presidencial?
Depende do projeto, não o conheço. Acreditem ou não, nunca falei de política com o senhor vice-almirante Gouveia Melo. Tínhamos demasiados temas.
Mas assistiu à ação dele e ele até falou várias vezes sobre a democracia, o sistema político publicamente. Portanto, deve ter alguma noção das posições dele.
Tenho alguma noção, mas não é suficiente para me poder pronunciar.
O facto de ser um militar não faz com que afaste a uma hipótese de chegar a um cargo como a presidência da República?
Não me agrada especialmente, mas também não me inibe em absoluto.
Não é um fator de exclusão, que seja um militar em Belém?
Mas também não é um fator de preferência.
Tem mostrado reservas em relação ao envio de militares para a Ucrânia. Isto quer dizer que o apoio irrenunciável e incondicional da Kiev, como o PS escreve no seu manifesto, afinal tem limites?
Os limites que nos devem impedir de nos colocarmos à beira de uma terceira guerra mundial. Não penso que isso ajudasse à solução. Iria apenas escalar o conflito.
Portanto, o envio de militares deve ser excluído.
Na nossa perspectiva, sim.
Seja a curto prazo ou a longo prazo, não deve ser uma opção?
A curto prazo e a longo prazo, o problema é o mesmo: o envio de militares leva a que a Europa entre em guerra contra a Rússia. E isso coloca todo o globo numa situação insustentável.
E admite alguma solução para a paz que implique perda de território da Ucrânia para a Rússia?
Só a Ucrânia pode definir as suas condições de paz. Não me parece que haja qualquer vantagem em serem terceiros a decidir.
Mas acredita que a UE tem tido um papel suficiente de mediação? Há muitas vozes, sobretudo da esquerda, que acreditam que não tem tentado encontrar os tais caminhos de paz.
A UE tem feito todos os esforços no sentido de apoiar a Ucrânia. Ser uma voz de intermediação entre a Ucrânia e a Rússia é difícil. Porque, indubitavelmente, a UE está de um dos lados do conflito. E, portanto, dificilmente, por muito que nós gostássemos, a Rússia nos reconheceria como mediador desse processo.
“É possível governar sem Orçamento aprovado”
Recentemente, e por duas vezes, Marcelo Rebelo de Sousa veio apelar a que não se chumbasse o orçamento do Estado para 2025, muito por causa dos fundos comunitários. Todos sabemos que Pedro Nuno Santos já disse que era quase impossível. Marta Temido concorda. Não há aqui um risco de irresponsabilidade caso seja chumbado o orçamento?
Chumbar um orçamento é um ato de grande responsabilidade. Estava num governo que se confrontou com o chumbo de um orçamento na Assembleia da República e sabemos todos bem o que é que isso nos custou.
Na altura, o primeiro-ministro disse que esse chumbo era uma irresponsabilidade.
Essa é uma decisão extrema. Todavia, não podemos levar a que um partido, cujos eleitores também têm de ser protegidos, apoie um projeto político no qual não se revê de todo em todo. Na execução de fundos, será incapacidade minha, mas não estou a ver o que é que uma coisa tem a ver com a outra. As questões do PRR, neste momento, são questões que têm a ver com a execução. Ou seja, qual seria a ligação?
O ponto será que a aplicação de fundos tem sempre ligada a uma contrapartida financeira portuguesa que tem que estar prevista no orçamento do Estado para se gastar.
É possível governar, compreendendo toda a dificuldade, mas é possível governar sem orçamento aprovado. A governança fica por duodécimos. Pode ser apresentada uma nova proposta. Portanto, não é um bateu na trave e não há caminho em frente. Há alternativas.
Mas, enquanto eurodeputada, sentir-se-á à vontade para explicar em Bruxelas que um governo eleito há poucos meses não consegue ter um orçamento aprovado, e que isso pode, lá está, atrasar a aplicação dos fundos, na opinião do Presidente da República?
Opiniões são uma coisa, factos são outra. Nós temos de executar o PRR nos tempos que estão previstos, porque sabemos bem que há um conjunto de dificuldades operacionais. A nossa comissária, Elisa Ferreira, tem sublinhado isso relativamente a uma hipotética, mas muitíssimo distante, a negociação de prazos suplementares. Não quereria ver o nosso país nessa situação. Contudo, os europeus estão bastante habituados, bastante mais do que nós, a situações de instabilidade.
Alargamento à Ucrânia: “As nossas políticas comuns têm de ter as adaptações necessárias”
Em relação ao alargamento da UE, tivemos protagonistas como António Costa a avisar repetidamente para o perigo de se criarem falsas expectativas à Ucrânia. Catarina Martins também já se referiu a isso mesmo, dizendo que a UE estava a enganar de forma abjeta Kiev. Admite que a UE esteja a criar falsas expectativas à Ucrânia?
Não, até face aos desenvolvimentos desta semana, que anunciam que estará em vias de ser aprovado o quadro de negociação e a conferência intergovernamental para fazer avançar o processo de negociação. Estamos perante um avanço dos trabalhos.
A crítica de Catarina Martins mais a ver com a partilha de fundos europeus, a resistência de França, por exemplo, a alterações à PAC.
É evidente que a entrada da Ucrânia, pela sua dimensão e pelas suas características na UE, não é equiparável à entrada de um Estado Membro com uma dimensão mais pequenina, como os Estados dos Balcãs. Contudo, a UE desde o princípio que tem sido construída com a sua capacidade de absorver outros Estados. Se esse raciocínio tivesse presidido ao grupo inicial de seis países, não seríamos a UE que somos hoje. Ao mesmo tempo que a Ucrânia faz o seu processo de reformas, temos de garantir que as nossas regras, o nosso orçamento, as nossas políticas comuns tenham as adaptações necessárias.
“Temo-nos sempre batido pela estabilidade dos ciclos democráticos”
Já disse que recusa leituras nacionais destas eleições, mas no dia da apresentação do manifesto do PS foi Pedro Nuno Santos quem disse que o partido vai ganhar a Europa para logo a seguir ganhar Portugal. Houve um excesso de entusiasmo de Pedro Nuno Santos nisto?
Depende da perspetiva com que sejam lidas essas palavras. Eu li-as no sentido de que, sempre que nós ganhamos maior força, ficamos com maior força dentro do próprio país. Não mais do que isso. Sem subtexto, sempre que há uma vitória, há um reforço do partido.
Mas não vê aqui a vontade de ter eleições legislativas mais cedo?
Temo-nos sempre batido pela estabilidade dos ciclos democráticos.
Era bom que este governo durasse a legislatura inteira?
Depende do que é que o governo queira fazer com o país.
Imagino que o PS seja sempre contra qualquer Governo que não tenha o PS. Mas a consequência disso não pode ser a de querer que esse governo caia logo para o PS voltar para o poder, não é?
Mas não é isso que está em causa. O que constatamos é que há um conjunto de medidas que o atual governo está a implementar, que são medidas que não são originariamente suas. Congratulamo-nos com esses aspetos.
Então, o Governo está no bom caminho? Está a começar a negociar e a ouvir e falar com o PS? Sente isso?
O que sinto, francamente, é que o governo está a tentar ir a todas. Ou seja, implementar o seu programa, mas ao mesmo tempo ir buscar medidas que nunca lhe passaram pela cabeça, para conquistar espaço. É uma estratégia compreensível.
Mas isso para o PS é bom. Se o governo aplicar medidas que foram defendidas pelo PS, o PS deve estar de acordo.
Nas suas propostas, completamente. Mas há medidas que estão a ser postas em cima da mesa que têm efeitos colaterais, e que nós não apoiamos. O pacote anunciado sobre IMT, por exemplo, é um tema muito controverso na medida em que há um segmento, provavelmente os que mais necessitam, que não poderá beneficiar nada dessa medida. Para nós, a justiça fiscal é um valor em si próprio. Há um comportamento um pouco surpreendente do Governo, de tentar jogar a bola em todas as direções. Há muitas medidas que têm sido anunciadas que que dependem da Assembleia da República. E o Governo tenta apresentá-las como se a paternidade fosse sua. Mas são os deputados que têm que as analisar e votar. E, portanto, não enganemos ninguém.