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As cinco batalhas que vão ficar nos livros de História

Um general e os seus dois anéis de Kiev, a missão secreta até à Azovstal e os tanques abandonados à volta de Kharkiv. Os detalhes dos combates históricos do primeiro ano de guerra.

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A tomada falhada de Kiev
O cerco a Mariupol
As batalhas de Severodonetsk
e Lysychansk
Reconquista de Kharkiv
A fuga russa de Kherson
A tomada falhada de Kiev
O cerco a Mariupol
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A fuga russa de Kherson

1 ano de guerra na Ucrânia

A tomada falhada de Kiev

KIEV
Chernihiv
Chernobyl
Vasylkiv
Bucha
Hostomel
Brovary
Irpin
Moschun

24 fevereiro 2022

Duas divisões russas partem em direção a Kiev, vindas do lado leste do Dnipro (estrada que vem de Chernihiv)

Cidade de Vasylkiv começa a ser bombardeada

Coluna de quatro regimentos parte da Bielorrússia para Kiev, pela margem oeste do Dnipro

Começa assalto ao aeroporto Antonov (Hostomel)

25 fevereiro 2022

Assalto em Hostomel continua

Russos tentam tomar base aérea em Vasylkiv (sul de Kiev) durante a noite. Derrotados de manhã, fogem

27 fevereiro 2022

Ataque a Bucha

Dias seguintes

Russos ocupam a cidade de Hostomel, perto do aeroporto, e aldeia de Moschun

Ucranianos travam coluna russa entre Bucha e Irpin, que desmobiliza

5 março 2022

Russos controlam Hostomel e Bucha

7 março 2022

Russos tomam de vez aeroporto de Hostomel

10 março 2022

Coluna de leste (a que veio da estrada de Chernihiv) é travada em Brovary

26 março 2022

Russos expulsos de Moschun

31 março 2022

Anunciada libertação de Chernobyl e de Bucha

Coluna leste retira

Eram 5h da manhã do dia 24 de fevereiro quando a cidade de Vasylkiv foi atingida pelos primeiros mísseis de cruzeiro. Uma localidade com apenas 36 mil habitantes, cerca de 30 quilómetros a sul de Kiev, à primeira vista não parecia o alvo militar mais relevante para a tentativa russa de conquistar a capital ucraniana. Mas Vasylkiv tem uma pequena base aérea, usada sobretudo como escola de aviação, e isso tornava-a valiosa. A estratégia do Kremlin era simples: ocupando uma base aérea, poderia depois enviar reforços por ar a fim de ocupar o resto da cidade.

Para além dos mísseis que atingiram a base aérea na primeira madrugada da invasão, por terra apareceram vários membros das forças especiais russas para ataques cirúrgicos. Nos dias seguintes, Vasylkiv tornou-se um campo de batalha. Os mísseis atingiam vários pontos da cidade, incluindo um depósito de combustível, que explodiu. No asfalto de uma estrada, escreveram a giz um sinal com dois metros de largura que dizia AZ — “A” para identificar o batalhão Alpha das Forças Especiais russas, “Z” porque é a letra que passou a simbolizar a invasão, pensam os ucranianos.

O ataque foi violento e durou dois dias. Depois de um dia de pausa para se reorganizarem, os russos voltaram ao ataque na madrugada de 25 para 26 de fevereiro. Dois agentes das forças especiais russas fizeram-se passar por polícias ucranianos e dispararam sobre soldados num checkpoint. Logo de seguida, dois aviões de transporte II-76MD russos aproximaram-se da base aérea, tentando aterrar. Cada um trazia cerca de 125 homens, prontos para continuar a invasão a Kiev. Os ucranianos, porém, conseguiram repeli-los. Ao mesmo tempo, nas ruas, registam-se os combates corpo-a-corpo — particularmente violentos na avenida Dekabrystiv. Às 7h30 da manhã do dia 26 de fevereiro, a presidente da Câmara de Vasylkiv, Natalia Balasynovych, anunciava a derrota dos russos na cidade.

A estratégia de ocupação de uma base aérea, porém, não era exclusiva para o pequeno campo de Vasylkiv. O aeroporto de Hostomel, a oeste do centro de Kiev, era um dos alvos principais do Kremlin em caso de invasão — há tanto tempo que o próprio diretor da CIA, William Burns, já havia avisado o governo ucraniano disso mesmo. A apenas 15 quilómetros da capital, era uma base essencial para trazer reforços militares, enquanto não chegavam as duas grandes colunas que a Rússia pôs em marcha em direção à capital — uma de leste, vinda da estrada de Chernihiv, com mais de 20 mil soldados; e outra de oeste, vinda da Bielorrússia (praticamente com a mesma dimensão). Depois, previam os russos, Zelensky fugiria e seria fácil impor um governo-fantoche.

Na manhã do dia 24 de fevereiro, o ataque a Hostomel começou, implacável. Primeiro com um míssil de cruzeiro disparado às 7h, que caiu perto de um apartamento na pequena localidade. Depois continuou com a chegada de 20 helicópteros de ataque Ka-52 Alligator, que dispararam diretamente para o aeroporto Antonov. “As pessoas olhavam umas para as outras, percebiam o que estava a acontecer, mas não percebiam porquê”, recordou um dos empregados do aeroporto ao Washington Post, meses mais tarde, relatando como os civis se esconderam no abrigo por baixo da cantina. Os Alligator trazem a bordo centenas de pára-quedistas russos, das tropas especiais, que aterraram e começaram de imediato a tentar tomar a infraestrutura de assalto.

Os ucranianos defendiam-se como podiam, mas o aeroporto Antonov estava desfalcado. Muitos dos militares mais experientes da zona partiram dias antes para o Donbass, para combater no conflito com os pró-russos que decorre desde 2014. Agora, ali no coração da Ucrânia, havia apenas 300 soldados para defender o aeroporto, a maioria com pouca experiência de combate. Apesar disso, não desertaram e continuaram a disparar contra os para-quedistas russos durante horas.

A tentativa russa para tomar Kiev seguia assim, em grande escala, com uma força avassaladora. Enquanto o sol nascia naquela madrugada de 24 de fevereiro e as forças especiais russas atacavam as bases aéreas de Vasylkiv e Hostomel, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, telefonou a vários líderes internacionais, avisando-os: “Começou”. Horas depois, gravava um vídeo que daria o tom para a resistência ucraniana: “Hoje peço-vos, a cada um de vocês, que se mantenham calmos. Se possível, fiquem em casa”, disse, garantindo que o exército estava a responder aos ataques. “Estamos prontos para qualquer coisa. Iremos derrotar quem quer que seja. Glória à Ucrânia!”.

A sua equipa, porém, sabia que a vitória não estava garantida. O ministro da Defesa, Oleksii Reznikov, confessaria mesmo mais tarde que a ansiedade era tanta que, nos dias seguintes, começou a ser acompanhado por um psicólogo.

Os primeiros relatos de Hostomel não eram encorajadores: os russos tomaram o controlo do aeroporto em poucas horas. “Isso era negativo para nós”, admitiu o general Oleksandr Syrsky, responsável por comandar a defesa de Kiev. “Mas, por outro lado, o fogo de artilharia [que disparávamos] em direção à pista e aos locais de desembarque atrasavam significativamente a aterragem e frustravam os planos deles”.

Os ucranianos conseguiam assim ir atrasando a chegada de reforços russos. Ao mesmo tempo, ia-se formando um fenómeno de resistência cidadã de apoio às tropas ucranianas. Na cidade de Hostomel, por exemplo, ao segundo dia da invasão já Dmytro Lysovyy estava a participar no canal de Telegram “STOP Russian War”, criado pelos serviços de informação ucranianos, como contou ao Financial Times. Como ele, muitos outros enviavam detalhes sobre as movimentações das tropas russas, ajudando a Ucrânia a travá-las. Não tardaria a que, ali em Hostomel, os soldados russos entrassem pelas casas adentro, tirando e destruindo computadores e telemóveis às pessoas.

Enquanto as tentativas para controlar Vasylkiv e Hostomel decorriam, as duas colunas de tanques a leste e oeste do rio Dnipro avançavam. Do lado ocidental, logo na madrugada do dia 24, várias brigadas vindas da Bielorrússia soltavam-se do grupo principal para entrar na zona de exclusão de Chernobyl, onde se mantém até hoje adormecido o reator que provocou um dos piores acidentes nucleares da História.

Era já de manhã quando algumas das brigadas entraram pelo noroeste, passando pela aldeia de Vilcha, e outras pelo nordeste, pela aldeia de Kamaryn. Às 14h, vários veículos pararam à porta do edifício principal da administração de Chernobyl. A zona era apenas defendida por 169 soldados da Guarda Nacional ucraniana; perante a presença de centenas de soldados russos, vestidos com fardas pretas e uma faixa branca no braço, renderam-se de imediato.

O risco de contaminação fez com que a ocupação tivesse sido negociada diretamente pelos militares russos com os cientistas que trabalhavam no local, durante três horas. Daí para a frente, o espaço foi dividido entre russos e ucranianos e assegurada uma convivência mínima. Apesar dos vários avisos dos especialistas, alguns soldados russos desafiariam a sorte: caçaram veados para comer, apesar do risco de contaminação; e cavaram trincheiras no solo radioativo.

Enquanto as brigadas de Chernobyl se mantinham numa missão cujo objetivo militar era uma incógnita, o resto da coluna vinda da Bielorrússia seguia em direção a Kiev. Ao perceber essa aproximação, a par da coluna que vinha de leste, o general ucraniano Oleksandr Syrsky desenhou um plano de defesa da capital: fazer dois anéis de defesa em torno da cidade, um exterior nos subúrbios e um interior, no centro de Kiev. O anel exterior, composto por vários soldados, começou a atacar as colunas russas com recurso a Javelins e drones Bayraktar.

Três dias depois do início da invasão, os russos conseguem as primeiras vitórias. Enquanto a luta pelo controlo pelo aeroporto Antonov continua, os militares conseguem ocupar de vez a cidade de Hostomel e avançam para a vizinha Bucha. Os combates são ferozes, mas Bucha cai para os russos. Daí, tentam avançar para Irpin. Os militares ucranianos, porém, não tencionam ceder mais um milímetro de território. “Bem-vindos ao inferno”, escrevem na betoneira que colocam a bloquear a estrada de acesso a Irpin. Depois, o comando toma a difícil decisão de rebentar a ponte de acesso entre as duas cidades, para dificultar a entrada dos tanques russos. E, à medida que os tanques russos se aproximam, os ucranianos começam a disparar contra eles.

A estratégia ucraniana funciona. Ao fim de três horas a serem atacados, os soldados russos desmobilizam.

“Os russos não estavam preparados para a guerra não-convencional. Não sabiam como lidar com uma situação de insurgência, de combate tipo guerrilha”, resumiria o especialista militar Rob Lee ao Washington Post, no balanço da batalha de Kiev.

A destruição da ponte de Irpin, combinada com os ataques à distância sem misericórdia contra a coluna russa, levaram os generais a desistir da ofensiva ocidental. E a campanha por Kiev começava a desmoronar para a Rússia. A tomada do aeroporto Antonov, em Hostomel, tardava, sendo preciso chamar os chechenos de Ramzan Kadyrov para conseguir a conquista de vez (a 7 de março).

A norte da cidade, o engenho dos ucranianos conseguiria alistar mais um aliado para travar a ofensiva russa: a natureza. Os terrenos pantanosos da região, combinados com a destruição de um dique por parte dos ucranianos para alagar a zona, travaram o avanço dos russos. O combate pela aldeia de Moschun, que havia sido ocupada logo durante a primeira semana da guerra, acentua-se ao longo do mês de março — e a água é decisiva para virar o jogo a favor dos ucranianos. No final do mês, os russos serão derrotados de vez ali, a norte de Kiev.

Com a coluna ocidental desmobilizada e as tropas a norte travadas pela água e pela ação dos militares ucranianos, chegados a 10 de março só a coluna a leste do Dnipro ainda avança decidida em direção a Kiev. Mas as táticas de guerrilha dos ucranianos funcionam. Em Brovary, a 25 quilómetros do centro da capital, a coluna de tanques e veículos militares russos cai numa emboscada. Atingidos por mísseis anti-tanque por vários lados, os soldados russos entram em pânico e decidem fugir a pé. Alguns refugiam-se na floresta, outros tentam permanecer na cidade. Vários serão feitos prisioneiros.

Os dias seguintes são de impasse para a Rússia. Começa a ser evidente que foi travada a sul, leste, oeste e norte. Ter o controlo do aeroporto de Hostomel de nada vale quando os soldados ucranianos conseguem atacar a partir de qualquer acesso a Kiev. A 25 de março, cerca de um mês depois do início da ofensiva, o Kremlin reconhece ter perdido 1.351 homens no ataque a Kiev — um número que os especialistas militares dizem, na verdade, poder ultrapassar os três mil. A NATO estima o número de mortes russas na ofensiva entre as sete mil e as dez mil. A Ucrânia fala em 20 mil baixas.

Na prática, a sua coluna de leste continua encravada, presa numa fila de trânsito interminável, que se estende por mais de 60 quilómetros. O impasse é provocado em parte pelo desconhecimento do terreno, que leva comandantes a ordenarem a veículos gigantescos que se metam por ruelas. Ao mesmo tempo, são bombardeados sem piedade pelos ucranianos. Parte dos seus soldados desertou ou rendeu-se. Não há vitória possível no horizonte, razão pela qual, a 29 de março, o Kremlin anuncia timidamente a “redução de atividade militar” na zona de Kiev. É o reconhecimento possível da derrota. Dois dias depois, os soldados da coluna de leste abandonam de vez os veículos e os militares em Chernobyl partem de vez.

O contingente que estava em Bucha também abandona a cidade. Os dias seguintes ficariam marcados pelas descobertas horrendas do que ali aconteceu durante um mês de ocupação russa. Cadáveres de civis com marcas de tortura, mãos atadas, tiros à queima-roupa. Corpos ainda no meio da rua, abandonados. Ao todo, 458 vítimas mortais encontradas naquela pequena cidade às portas de Kiev, para lá da qual os russos não conseguiram avançar.

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1 ano de guerra na Ucrânia

O cerco a Mariupol

MARIUPOL
Complexo siderúrgico de Azovstal
Porto de Mariupol
Ilyich

24 fevereiro 2022

Início do ataque a Mariupol

2 março 2022

Cidade fica completamente rodeada, início formal do cerco

5 março 2022

Avenida Mira (Avenida da Paz) bombardeada

9 março 2022

Ataque à maternidade do Hospital Nº3

12 março 2022

Russos controlam leste da cidade

16 março 2022

Ataque ao Teatro Regional de Donetsk — o ataque contra civis mais letal de toda a guerra

18 março 2022

Militares russos entram no centro da cidade

Alguns soldados ucranianos abrigam-se na Azovstal, onde já estão civis

20 março 2022

Rússia bombardeia Escola de Arte Nº 12

21 março 2022

Missão para levar munições aos soldados da Azovstal

10 abril 2022

Rússia controla praticamente toda a cidade

13 abril 2022

Soldados ucranianos abrigados na fábrica Ilyich furam cerco e juntam-se aos colegas que estão na Azovstal

16 abril 2022

Russos tomam o porto

18 abril 2022

Exército russo já controla toda a cidade, com exceção da Azovstal

16 maio 2022

Últimos soldados ucranianos na Azovstal rendem-se e saem

Há quem compare aquilo que aconteceu em Mariupol ao longo do mês de março de 2022 à batalha de Estalinegrado, onde os defensores também conseguiram aguentar durante algum tempo a defesa da cidade abrigados na zona industrial. Outros, como o próprio Volodymyr Zelensky, recorreram à comparação com a batalha de Leninegrado, onde o cerco levou os civis ao desespero do canibalismo.

As comparações com a II Guerra Mundial são a referência possível para tentar compreender ou enquadrar o que aconteceu. Mas Mariupol não será uma nova Estalinegrado ou uma nova Leninegrado; o nome Mariupol viverá por si, como sinónimo de um dos maiores horrores sobre civis produzidos durante esta guerra.

Tudo começou logo a 24 de fevereiro. Mariupol, cidade no leste da Ucrânia com ligação ao Mar de Azov, era um objetivo militar estratégico para os russos: se a cidade portuária fosse conquistada, a Rússia passaria a ter um corredor de terra em direção à Crimeia. Por isso, os bombardeamentos começaram, ferozes, logo nas primeiras horas da invasão. No dia seguinte, as tropas partem em direção à cidade, vindas de noroeste: são compostas pelo 58.º Exército, por uma brigada das forças especiais Spetsnaz e pelo Batalhão Esparta, de Donetsk. Da Crimeia partem mais soldados, que se irão juntar a estes quando o cerco for efetivado, o que não tarda: a 2 de março, a cidade já está completamente rodeada. Lá dentro, para além dos civis que não conseguiram fugir a tempo — e são muitos, numa cidade de 430 mil pessoas — há tropas ucranianas. A 10.ª Brigada de Assalto, a 56.ª Brigada Motorizada, a 36.ª Brigada Marinha, o 25.º, o 37.º e o 46.º Batalhões, a 109.º Brigada de Defesa Territorial e o famoso Regimento Azov. Tantos soldados, porém, não serão suficientes para aguentar o cerco de características medievais que durará dois meses.

Com o cerco montado, a artilharia russa ataca o centro da cidade. Nesse primeiro dia de cerco, depois de 15 horas de ataques ininterruptos, o vice-presidente da Câmara, Serhiy Orlov, já avisava a BBC de que a cidade “está perto de uma catástrofe humanitária”. A eletricidade, a água e o gás já foram cortados pelos russos. Os prédios de habitação são destruídos, uns atrás dos outros. As pessoas mantêm-se nos abrigos.

A estratégia não é nova. Foi exatamente assim que o exército russo conquistou Grozny, na Chechénia, em 1999, em apenas seis meses. Ao fim de uma semana, todas as tentativas dos funcionários municipais para repararem o fornecimento de gás foram travadas por mais bombardeamentos. “A única maneira que os civis têm agora de cozinhar é em fogueiras. As pessoas lutam pela madeira. Estão felizes por estar frio e a nevar, porque isso significa que, com a neve, têm algo para beber”, dava conta o autarca Orlov ao The Guardian.

Três dias depois do início do cerco, a 5 de março, é acordado o primeiro corredor humanitário para que mais civis possam abandonar a cidade. Mas o cessar-fogo é quebrado: enquanto os civis esperam pelo transporte, os russos bombardeiam a estrada por onde é suposto os carros saírem. O corredor falha. Nesse mesmo dia, os bombardeamentos intensificam-se sobre o centro da cidade. Ironicamente, a Avenida da Paz (Mira, em russo), um dos eixos centrais de Mariupol, é um dos principais alvos.

Nos dias seguintes, os bombardeamentos continuam. A 6 de março, a última torre de comunicações que ainda funcionava é atingida. Os civis deixam de conseguir comunicar com quem está fora da cidade, ficando assim totalmente isolados. Dois dias depois, acontece um dos ataques a Mariupol que impressiona o mundo: a maternidade do Hospital Nº3 é bombardeada.

Duas imagens ficariam cravadas na memória coletiva: a de uma grávida a ser transportada numa maca, ferida; e a de uma mulher em choque, tapada com um cobertor, com os olhos a fixar a lente do fotógrafo. A primeira mulher, Irina Kalinina, seria uma das três vítimas mortais do ataque, não resistindo ao parto provocado horas depois noutro hospital. O bebé também não sobreviveu. A segunda mulher era Marianna Vyshemirsky, que acabaria por protagonizar uma campanha de desinformação russa. Utilizando o facto de ser uma influencer ucraniana, a embaixada russa em Londres tentou usar esse facto como prova de que todo o bombardeamento não aconteceu e que tudo não passara de uma encenação dos ucranianos. Uma investigação da BBC desmentiria tais afirmações sobre Marianna, como se o testemunho dos jornalistas no local, como a equipa da Associated Press, não chegasse. Ali, foram ainda detetados 16 feridos e uma cratera gigante, a servir de prova de que foi ali deitada uma bomba com quase 500 quilos de peso.

A maternidade do Hospital Nº3 não seria a única unidade de saúde destruída em Mariupol. Segundo a BBC, sete hospitais da cidade ficaram danificados pelos bombardeamentos, três deles destruídos totalmente. Uma estratégia semelhante à que a Rússia já havia usado na Síria, atacando diretamente os hospitais.

A vida para os civis em Mariupol ia progressivamente tornando-se num inferno cada vez maior. Angela Timchenko desabafou com o The Guardian sobre a falta de água. “Digam-me, como é que posso cozer ovos em papel de alumínio? Tenho seis aqui. Os miúdos podiam ter comido o pequeno-almoço [se houvesse água]”. Nas ruas, a situação é ainda pior: “As pessoas atacam-se por causa da comida ou estragam o carro de alguém para tirar o combustível”, contava Sasha Volkov, da Cruz Vermelha, ao mesmo jornal.

A 9 de março, no mesmo dia em que a maternidade foi bombardeada, os funcionários da autarquia criaram uma vala comum para enterrar 47 pessoas. Os cemitérios ficam todos nos arredores da cidade, agora controlados pelos russos. E, com os bombardeamentos, o número de mortos não pára de aumentar. “Não conseguimos identificar todos”, admitiu o vice-presidente da Câmara.

À medida que a destruição pelos bombardeamentos se consolida, os soldados russos vão avançando cidade dentro. A 12 de março, o bairro Livoberezhnyi, na margem leste do rio Kalmius, já está controlado pelo exército russo. Ali, já quase não há prédios de pé, apenas ruínas. Dois dias mais tarde, um corredor humanitário é finalmente bem sucedido, com os russos a respeitarem o cessar-fogo. Durante 24 horas, mais de dois mil carros abandonam a cidade.

Com a evacuação terminada, a Rússia prepara-se para intensificar o ataque a Mariupol. A 15 de março, chegam reforços da 810.ª Brigada de Infantaria Naval. Combatentes chechenos vão também chegando. Os bombardeamentos continuam e, a 16 de março, há um incidente ainda mais violento e marcante do que o ataque à maternidade. O Teatro Regional de Donetsk, que estava a funcionar como abrigo para civis, é atingindo — apesar de no terreno ao lado estar escrita a palavra “Crianças” em grandes dimensões, para ser vista do ar. O número de mortos é incerto, sabendo-se apenas que está nas centenas. Inicialmente, as autoridades ucranianas falam em 300 mortes. Uma profunda investigação da Associated Press, meses depois, colocaria a estimativa nas 600 vítimas mortais.

A conquista de Mariupol pelos russos vai avançando à medida que os dias passam. Os bombardeamentos acabam por fazer os soldados ucranianos recuar de partes da cidade. A 18 de março, as tropas russas marcham pelo centro e ocupam os locais. O maior contingente de tropas ucranianas abriga-se então na Azovstal, a grande fábrica metalúrgica com um labirinto de abrigos subterrâneos onde já há muito estão civis, na maioria familiares e amigos dos trabalhadores da empresa.

Nas ruas, os civis que restam vão-se conformando às regras da nova ocupação. Nos dias seguintes, as autoridades ucranianas locais denunciam que a Rússia estará a levar a cabo uma série de deportações da população residente, enviando os ucranianos para os chamados “campos de filtragem”. Kiev afirma que 15 mil terão ido à força para a Rússia. Mas nem por isso os ataques de artilharia a Mariupol param, até porque há zonas da cidade ainda não controladas pelos russos. No dia 20 de março, uma bomba atinge a Escola de Arte Nº12, onde estavam abrigadas cerca de 400 pessoas.

Os que continuam em abrigos improvisados ou nas suas casas relatam histórias de terror, à medida que a comida, água potável e medicamentos escasseiam. Oleh, por exemplo, acabou por levar o irmão ao dentista, depois de semanas com dores num dente: “A infeção estava a espalhar-se, por isso eles tinham de fazer alguma coisa. Tiraram-lhe o dente sem anestesia. Ele gritou e gritou”, contou ao The Guardian. Nas ruas, os cadáveres amontoam-se e o risco de surtos de doenças como a cólera é cada vez maior.

Ao mesmo tempo, Kiev vai tentando ajudar à resistência como pode. A 21 de março, realiza-se uma missão quase impossível: dois helicópteros Mi-8 vão até à Azovstal, fugindo à deteção dos russos, e levam mantimentos, munições e o sistema de comunicações Starlink aos soldados que ali estão — sistema que permitirá aos soldados e civis ali presos comunicarem. Novas missões são realizadas nos dias seguintes, com 85 soldados feridos a serem resgatados de helicóptero.

Os ataques russos continuam e com sucesso: a 10 de abril, as tropas do país controlam praticamente toda a Mariupol, com exceção da Azovstal e da zona do porto da cidade, onde ainda há soldados ucranianos. Mais uma semana e dominarão a área portuária, mantendo-se a Azovstal como último reduto. Entre os civis, a situação degrada-se a tal ponto que as lojas começam a ser saqueadas.

Os últimos dias de abril e as primeiras semanas de maio serão o período em que o cerco passa a ser à fábrica Azovstal. “Que nem uma mosca consiga passar”, pede Vladimir Putin aos seus homens. Estes cumprem. Os bombardeamentos intensificam-se e dificultam a vida dos que estão refugiados na fábrica: a 27 de abril, é atingido o hospital de campo que tinha sido improvisado na Azovstal. “Isto está à beira da loucura”, lamenta o soldado Dmytro Kozatsky numa mensagem de vídeo enviada para o exterior. “Descobres que os teus amigos estão mortos, ali ao teu lado. E, por outro lado, estás a andar e regozijas, estás feliz porque sobreviveste”.

As famílias que ainda estão na Azovstal enfrentam uma situação cada vez mais precária. Os adultos comem uma refeição por dia: carne enlatada diluída em água. As crianças comem, para além disso, algumas papas de aveia ao pequeno-almoço. Mas têm fome: Natalya Babeush recordou ao The New York Times como uma das crianças deixou na sua cama um desenho de uma pizza.

As Nações Unidas começam a alertar para a gravidade da situação e tentam negociar a retirada dos civis da Azovstal. Osnat Lubrani, representante da ONU, chega à cidade e fica chocada: “A palavra ‘Dresden’ veio-me à mente”, disse, sobre a destruição que viu em Mariupol. Depois de várias negociações falhadas, entre 30 de abril e 2 de maio é finalmente possível retirar os civis. ONU, Cruz Vermelha e governos de Rússia e Ucrânia chegam a acordo e conseguem manter os corredores humanitários, retirando da Azovstal cerca de 400 civis, que são enviados para Zaporíjia.

Restam os soldados. Volodymyr Zelensky propõe-lhes a rendição, para salvarem as suas vidas, mas estes inicialmente recusam. À medida que a situação se deteriora cada vez mais ao longo das duas semanas seguintes, porém, acabam por reconsiderar. “Vocês sabem o que é amputar um membro sem anestesia? Aquilo que se vê nos filmes de Hollywood é nada comparado com aquilo que os defensores da Azovstal viram e suportaram”, afirmou o Presidente ucraniano a certa altura.

Horas depois, a rendição é finalmente anunciada. A 16 de maio, os últimos 260 soldados ucranianos saem da fábrica e entregam-se às tropas russas. Ao todo, 2.500 foram feitos prisioneiros de guerra.

Mariupol é definitivamente ocupada e gerida pela Rússia desde então. Não é certo quantos civis ainda lá vivem, nem em que condições. As Nações Unidas estimam, contudo, que pelo menos 1.348 civis (incluindo 70 crianças) terão sido mortos durante o cerco. “O verdadeiro número de mortes de civis é provavelmente maior, na ordem dos milhares”, assumiu a Comissária para os Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet. Mariupol foi arrasada, com 90% dos seus edifícios destruídos. O cerco terminou, mas quase nada nem ninguém restou depois dele. A situação, descreveu a Cruz Vermelha, é “apocalíptica”.

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1 ano de guerra na Ucrânia

As batalhas de Severodonetsk e Lysychansk

SEVERODONETSK
LYSYCHANSK
Popasna
Nyzhnje
Voevodivka
Rubizhne
Metyolkine

7 maio 2022

Ataque a escola em Bilohorivka

8 maio 2022

Popasna controlada por forças russas

9 maio 2022

Russos tomam Nyzhnje

12 maio 2022

Conquistadas Voevodivka e Rubizhne

Combates decorrem na fábrica de químicos Zorya, entre as duas localidades

15 maio 2022

Hospital de Severodonetsk é bombardeado

25 maio 2022

Colunas de norte e sul estão cada vez mais próximas

27 maio 2022

Começa o ataque direto a Severodonetsk

11 junho 2022

Bombardamento russo atinge fábrica Azot, último reduto dos soldados ucranianos

20 junho 2022

Ucrânia perde controlo de Metyolkine

25 junho 2022

Rússia controla agora totalmente Severodonetsk

1 julho 2022

Militares russos tomam refinaria de Lysychansk

2 julho 2022

Ucrânia retira soldados de Lysychansk

É difícil dizer em que exato momento começou a ofensiva para tomar as cidades quase gémeas de Severodonetsk e Lysychansk. Grande parte da região de Lugansk já era há muito dominada pelas tropas pró-russas, mas, com a tomada falhada de Kiev, o Kremlin rapidamente se reorientou para o Donbass, tentando garantir que as tropas russas dominavam o leste da Ucrânia.

Essa decisão representava um tipo de guerra muito diferente. Em vez dos combates de guerrilha urbana, o Donbass é palco de uma velha guerra de atrito, em que tanques e outros veículos militares avançam metro a metro, pelas longas planícies da região. A artilharia é ali rainha e os russos têm vantagem. A Ucrânia tem mais dificuldade em ripostar “porque é tudo plano, tudo visível”, resumiu Gustav Gressel, analista do Conselho Europeu de Relações Externas, ao Washington Post.

No início do mês de maio, porém, a ofensiva a Severodonetsk e Lysychansk começou a definir-se como peça fulcral para a Rússia controlar Lugansk e, por arrasto, se estender para o resto do Donbass. A 7 de maio, a artilharia russa atinge uma escola na aldeia de Bilohorivka, onde dezenas e dezenas de habitantes estavam abrigados. “Estávamos naquela cave há um mês”, contou Irena, de 57 anos, ao Post. “Estávamos a jantar quando aconteceu. Nem sabíamos o que nos tinha atingido.” Ao todo, cerca de 60 pessoas terão morrido.

O bombardeamento levou alguns a abandonarem a aldeia. Foi o caso de Roman, jovem de 30 anos, que perante o ataque decidiu partir para Lysychansk. “Não há lá estrada, nem casas, não resta nada, é um inferno”, disse ao Wall Street Journal. Os seus vizinhos, que estavam abrigados na cave da escola, morreram durante o ataque.

Para além dos ataques de artilharia, os tanques e outros veículos militares russos vão avançando pela região — com duas colunas a seguirem em direção a Severodonetsk, uma vinda de norte e outra de sul. No dia seguinte, a 8 de maio, as tropas russas conquistam a cidade de Popasna. A conquista da cidade é fulcral, já que Popasna fica no topo de uma colina e permite disparar dali em várias direções e a longa distância. “Depois da tomada de Popasna, o nosso exército vai resolver o problema de Lysychansk e de Severodonetsk”, previu uma fonte militar ao jornal russo Vzglyad.

A ofensiva vai avançando no terreno. A 9 de maio, é tomada a aldeia de Nyzhnje. Ao mesmo tempo, continuam os combates pelo controlo de Toshkivka, Rubizhne, Voevodivka e Bilohorivka — a aldeia onde foi atacada a escola que servia de abrigo. A 12 de maio, os russos conquistam Voevodivka e Rubizhne, esta última uma cidade de quase 60 mil habitantes. Os ucranianos tentam ir resistindo em algumas bolsas: na fábrica de químicos Zorya, por exemplo, que fica a meio caminho entre as duas localidades, a troca de tiros é intensa.

A resistência ucraniana é tal que, nesse mesmo dia, consegue levar a cabo um ataque impressionante. Destruindo a ponte flutuante que os russos tinham conseguido estabelecer perto da aldeia de Bilohorivka, sobre o rio Siverskyi Donets, destroem ainda mais de 70 tanques e veículos russos e matam cerca de mil soldados.

A Rússia reage. Três dias depois, chegam à região reforços que se juntam às duas colunas que avançam em direção a Severodonetsk, uma vinda do norte e outra do sul. Os ataques de artilharia também se intensificam, com o hospital de Severodonetsk a ser bombardeado nesse mesmo dia. “Vimos que o hospital foi atacado: não por acaso, mas deliberadamente”, afirmou o responsável ucraniano da administração militar de Lugansk, Serhiy Haidai. “E não foi um único ataque, durante mais de uma hora os orcs estavam a disparar precisamente para ali.” Se até então o hospital tinha capacidade para receber 300 pessoas, desde então passou a só poder acolher 100 doentes.

Na cidade, a situação vai-se tornando cada vez mais dramática para os civis que ainda ali estão. “Ninguém sai daqui, acordamos todos juntos e adormecemos todos juntos. Ninguém vai a lado nenhum, porque é demasiado assustador lá fora”, revelou ao Wall Street Journal uma mulher, refugiada na cave de uma funerária com outras 26 pessoas, quatro cães e um gato. A essa altura, em meados de maio, não há comunicações, eletricidade, nem abastecimento de água em toda a cidade. No dia 19, um bombardeamento particularmente violento mata 12 pessoas em Severodonetsk.

O Kremlin não desiste de Severodonetsk e Lysychansk. A 22 de maio, reforça o armamento na área, colocando veículos BMP-T Terminator na área — um desenvolvimento notado pelo Ministério da Defesa britânico, que destaca a decisão como sinal da determinação russa em conquistar as cidades.

Três dias depois, os bombardeamentos violentos em Severodonetsk provocam mais seis mortos.

Ao mesmo tempo, as colunas vindas de norte e sul vão avançando e estão cada vez mais próximas. A esta altura, há apenas 25 quilómetros a separá-las. Quando se encontrarem, Severodonetsk e Lysychansk ficarão completamente cercadas. E, dentro de Severodonetsk, os ataques continuam, implacáveis. Anthony Casey, médico norte-americano voluntário na região, contava à BBC, a 25 de maio, como a situação era grave: “Há dois dias, uma das voluntárias foi atingida enquanto ia porta a porta. Perdeu a parte inferior da perna e muito sangue antes que conseguíssemos encontrá-la.” A situação militar para os ucranianos não era melhor: “Temos muitas baixas aqui. Num momento estás a falar com um colega e no minuto a seguir ele morreu.”

O poderio da artilharia russa começa a ser evidente nas planícies do Donbass. “Em média, por cada disparo nosso eles disparam 20 a 50 tiros”, resumiu ao Ukrayinska Pravda o comandante de um batalhão ucraniano, Petro Kuzyk. “Com estes bombardeamentos em massa de artilharia, os russos conseguem avançar. Destroem as nossas posições, as nossas trincheiras, os nossos edifícios, passo a passo.”

A 27 de maio, o ataque a Severodonetsk deixa de ser apenas à distância. As unidades chechenas entram diretamente no perímetro da cidade e conseguem ocupar o hotel Myr. Têm início os combates corpo a corpo, nas ruas da cidade. Os ucranianos vão tentando travar a maré russa, mas não têm força suficiente para resistir e vão recuando progressivamente.

Uma semana e meio depois, os russos já controlam quase toda a cidade, aeroporto incluído. Os poucos militares ucranianos que ainda restam em Severodonetsk refugiam-se na zona industrial da fábrica química Azost. O cenário parece em tudo semelhante ao da Azovstal, em Mariupol: a fábrica está debaixo de fogo russo, enquanto ali soldados e civis tentam sobreviver com cada vez menos comida e medicamentos.

A 15 de junho, os russos montam um corredor humanitário para retirar da fábrica os civis que queiram sair. São todos encaminhados para Svatove, em território gerido pelos russos em Lugansk. A Ucrânia pede para que alguns possam ir para Lysychansk — ainda controlada pelas forças de Kiev —, mas o pedido é recusado. Ao mesmo tempo, os russos reforçam os ataques a Lysychansk: no dia 16, o centro da cidade é bombardeado, o que provoca a morte a um civil.

Na Azot, a situação torna-se cada vez mais periclitante. Por esta altura, a última ponte que ligava Severodonetsk a Lysychansk já foi destruída e a única estrada ainda funcional — a que vai de Lysychansk a Bakhmut, apelidada pelos ucranianos de “Estrada da Vida” — é tão frequentemente bombardeada que começa a tornar-se impossível reabastecer a cidade ou retirar os feridos.

Tudo começa a colapsar para os ucranianos. A 20 de junho, os russos conquistam a aldeia de Metyolkine, a última aldeia nos arredores de Sverodonetsk ainda gerida por Kiev. Nos dias seguintes, tomam mais aldeias a caminho de Lysychansk: Toshkivka, Myrna Dolyna, Pidlisne, Rai-Oleksandrivka e Loskutivka. A 25 de junho, conseguem quebrar a resistência ucraniana na fábrica Azot e passam oficialmente a controlar toda a Severodonetsk. Quaisquer civis que queiram sair dali, agora, só podem seguir para zonas geridas pelos russos.

Com Severodonetsk dominada, os primeiros dias de julho são usados pelas tropas russas para conquistar de vez Lysychansk, mesmo ali ao lado. Logo no dia 1, conseguem tomar a refinaria da cidade. Os civis que ainda ali estão vão sendo retirados pelas autoridades ucranianas em pequenos barcos, que atravessam o rio Siversky Donets. Mas Lysychansk está perdida. A 2 de julho, os soldados ucranianos retiram de vez — informação confirmada pelo Presidente Volodymyr Zelensky no dia seguinte. A decisão, diz, foi tomada para “salvar as vidas dos defensores ucranianos”.

Dois dias depois, a Rússia anuncia uma “pausa operacional” na sua operação no Donbass. Com Severodonetsk e Lysychansk conquistadas, o Kremlin crê ter vitória suficiente para parar e respirar.

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1 ano de guerra na Ucrânia

Reconquista de Kharkiv

KHARKIV
Pryshyb
Verbivka
Volkhiv Yar
Dementiivka
Balakliya
Kupiansk
Izyum
Borshchova
Chkalovs’ke

6 setembro 2022

Início da operação, brigadas ucranianas partem de Pryshyb para leste e conquistam Verbivka

7 setembro 2022

Ucranianos tomam Volkhiv Yar e Dementiivka

Balakliya está cercada

8 setembro 2022

Balakliya é tomada pelos ucranianos

10 setembro 2022

Militares ucranianos entram em Kupiansk

11 setembro 2022

Ucrânia toma Izyum, Borshchova e Chkalovs’ke

O centro de Kharkiv, a segunda maior cidade ucraniana, nunca foi ocupado pelos russos desde a invasão de 24 de fevereiro. Mas os arredores e todo o oblast, porém, ficaram controlados pelas tropas do Kremlin desde meados de maio. A zona parecia controlada e estável. Mas o início de setembro traria uma grande surpresa: uma contraofensiva ucraniana, veloz e imparável.

Tudo começou com uma velha tática soviética: a maskirovka, nome usado para qualquer ação militar que use o engano ou a desinformação. A 29 de agosto, Kiev anunciou uma grande ofensiva para retomar Kherson, cidade ocupada pelos russos logo em fevereiro. O Kremlin reagiu, reencaminhando para sul grande parte das suas tropas — incluindo as forças que estavam a defender a região de Kharkiv.

Oito dias depois, surgia a surpresa, numa operação desenhada pelo general Oleksandr Syrsky, o mesmo que orquestrou a defesa de Kiev. Às 3h30 da madrugada do dia 6 de setembro, parte da 25.ª Brigada de Assalto Aérea ucraniana arranca em direção às linhas russas. De manhã, a 92.ª Brigada Mecanizada também parte da aldeia de Pryshyb em direção às zonas ocupadas. Ao mesmo tempo, a artilharia ucraniana vai atacando as posições russas.

O primeiro alvo é conquistado em poucas horas: Verbivka, uma vila com cerca de três mil habitantes, que estava ocupada pelos russos desde o dia 7 de março. Os habitantes, com medo, acabam por vir receber os soldados ucranianos. E começam a contar as primeiras histórias de terror do período de ocupação. “Aqui toda a gente trabalhava na horta, mesmo debaixo de fogo. Eles até nos diziam que nós tínhamos ‘mulheres kamikaze’, mulheres que continuavam a trabalhar debaixo de fogo, porque era preciso ter batatas, para não morrer de fome”, recordou Olha, uma habitante de 62 anos, ao Hromadske.

Os relatos aos jornalistas que ali chegaram nos dias seguintes deram conta de que a esquadra de polícia foi usada como prisão e local de tortura para os residentes suspeitos de ajudarem as tropas ucranianas ou de serem particularmente leais a Kiev. Numa das paredes, o Kyiv Independent encontrou o “Pai Nosso” escrevinhado pelos detidos. Artem Larchenko, de 49 anos, foi um dos que terá sido torturado com choques elétricos.

Depois de Verbivka, a ofensiva ucraniana continua. No dia 7, os soldados tomam Volkhiv Yar, Sosnivka e Dementiivka — esta última, conhecida como “Aldeia do Diabo”, particularmente relevante para controlar os acessos à cidade de Kharkiv. Conseguem também cercar a cidade de Balakliya e, com recurso à artilharia fornecida pelo Ocidente (HIMARs, Howitzers e morteiros de 120mm), tomam-na no dia seguinte. Alguns habitantes assistem à fuga dos soldados russos, largando as armas pelo caminho.

Ali, os relatos que surgem nos dias seguintes são semelhantes aos de Verbivka. A esquadra da polícia, no centro da cidade, foi também usada como local de detenção e tortura. “As pessoas gritavam tão alto que os que viviam ali perto ouviam aqueles gritos terríveis”, contou uma habitante. “Em celas para duas pessoas, punham oito ou nove de uma vez. Monstros desumanos.”

Tomada Balakliya, a ofensiva ucraniana divide-se em duas: parte das tropas seguem em direção a Kupiansk; as restantes partem para tentar tomar Izyum. Com o avanço em direção a Kupiansk, vai encurralando as tropas russas, que têm a leste o rio Oskil e a sul floresta. A 10 de setembro, as tropas ucranianas entram em Kupiansk, ponto importante por ser local de confluência de várias linhas ferroviárias. Uma vez mais, os ucranianos encontram ali os mesmos relatos: habitantes que ouviam os gritos dos “colaboracionistas” a serem torturados. “Faziam as pessoas cantarem músicas ucranianas e depois espancavam-nas. Espancavam-nas até cantarem canções russas”, contou um dos prisioneiros, Yeugeniy Sinko, ao LA Times.

Depois de Kupiansk, esses soldados seguem para norte, em velocidade acelerada. A 11 de setembro tomam a aldeia de Chkalovs’ke. Outro contingente toma outra pequena localidade, Borshchova, a norte da cidade de Kharkiv.

Entretanto, o grupo de militares que tinha seguido para sul, em direção a Izyum, consegue tomar essa cidade. Em tempos, mais de 45 mil civis viviam em Izyum; em setembro só lá permanecem cerca de 10 mil. Os combates pelo domínio da cidade fizeram com que mais de 80% da sua infraestrutura fosse destruída. Quando os ucranianos ali chegam, a retirada russa é tão repentina que as tropas deixam vários tanques abandonados, para trás.

Os relatos de tortura que surgiram após a libertação das restantes aldeias e cidades da região de Kharkiv também se repetiram em Izyum, mas com uma intensidade ainda maior. O edifício da antiga esquadra de polícia foi ocupada pelos russos que, uma vez mais, a transformaram em local de tortura, mas não foi o único — duas escolas, um antigo hospital, uma estação de tratamento de águas, uma casa e uma fábrica também foram usadas como locais de detenção. E aqui não houve só espancamentos e choques elétricos. Afogamento simulado, posições de stress durante horas, ameaças com armas, tudo isso aconteceu ali, de acordo com os sobreviventes e com a investigação da Human Rights Watch. Há também relatos de mulheres violadas, incluindo uma que contou ao Washington Post como tudo acontecia com o marido preso numa divisão ao lado.

Para além da tortura, em Izyum foi encontrado um cenário tão chocante como o da pós-ocupação de Bucha, nos arredores de Kiev: uma vala comum com 447 corpos, muitos de mãos atadas, com membros partidos e ferimentos de arma branca. Apenas 17 eram soldados, os restantes eram civis. Pelo menos um, diz a Der Spiegel, tinha uma corda à volta do pescoço.

Com a conquista de Izyum, a Ucrânia consolida finalmente a tomada total do oblast de Kharkiv. “Uma enorme derrota”, classificaria Igor Girkin, um dos bloggers militares russos da ala mais radical na órbita do Kremlin. A Rússia ainda bombardeia o centro da cidade de Kharkiv na noite de 11 de setembro, num sinal de retaliação. Mas não há nada a fazer: a 13 de setembro, o Kremlin reconhece a retirada total da região. Ao todo, diz Volodymyr Zelensky, os ucranianos recuperaram um total de seis mil quilómetros quadrados.

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1 ano de guerra na Ucrânia

A fuga russa de Kherson

KHERSON
Pravdyne
Tomyna Balka
Arkhanhel's'ke
Myrolyubivka
Kyselivka
Vysokopillya
Novovoznesenske
Bilohirka
Sukhyi Stavok
Dudchany
Zolota Balka
Novopetrivka
Starosillya
Velyka Oleksandrivka
Davydiv Brid
Novovasylivka
Novohryhorivka
Nova Kamyanka
Tryfonivka
Chervone
Zelenyi Hai
Snihurivka
Kyselivka

29 agosto 2022

Ucrânia conquista as aldeias Pravdyne, Tomyna Balka e Arkhanhel’s’ke

10 setembro 2022

Ucranianos tomam Myrolyubivka

12 setembro 2022

Russos retiram de Kyselivka

Ucrânia conquista mais aldeias: Vysokopillya, Novovoznesenske, Bilohirka, Sukhyi Stavok

2 outubro 2022

Conquistadas Dudchany e Zolota Balka

4 outubro 2022

Ucranianos tomam Novopetrivka, Starosillya, Velyka Oleksandrivka e Davydiv Brid

12 outubro 2022

Mais conquistas ucranianas: Novovasylivka, Novohryhorivka, Nova Kamyanka, Tryfonivka e Chervone

9 novembro 2022

Ucrânia aproxima-se de Zelenyi Hai. Pelo caminho, toma 12 aldeias

Tropas russas começam a retirar de Kherson, para margem leste do rio

10 novembro 2022

Conquistadas aldeias de Snihurivka e Kyselivka

11 novembro 2022

Exército ucraniano entra no centro de Kherson

O anúncio tinha sido feito por Kiev a 29 de agosto: os ucranianos iriam levar a cabo uma ofensiva para reconquistar Kherson, cidade do sul da Ucrânia ocupada pelos russos desde o início da invasão de larga escala, a 24 de fevereiro. Na verdade, a ofensiva não foi inicialmente muito longe, já que serviu sobretudo para desviar as atenções de Kharkiv e atrair as tropas russas para sul. Mas, progressivamente, foi fazendo o seu caminho. E, depois da conquista das primeiras aldeias, ao longo de outubro e novembro ganhou ímpeto.

Logo a 29 de agosto, os ucranianos tomaram quatro aldeias: Pravdyne, Tomyna Balka e Arkhanhel’s’ke. O que encontraram foi em tudo semelhante à libertação ocorrida nas aldeias da região de Kharkiv: territórios com edifícios arrasados, infraestruturas de eletricidade, gás e água destruídas e residentes com relatos duros. “Não sei em que dia é que os russos chegaram, só sei uma coisa: ontem ou anteontem, vi um soldado ucraniano e fiquei aliviada”, confessou Svitlana Galak, residente de 43 anos de Pravdyne, à Agência France-Press.

Embora o nível de violência aqui encontrado não seja tão elevado como o vivido nas aldeias de Kharkiv, também houve civis mortos. Em Pravdyne, foram encontrados seis cadáveres, muitos com marcas de tortura, dois deles sem cabeça. Em Arkhanhel’s’ke, dois casais foram mortos por terem assistido ao saque de casas por parte dos soldados russos: “O Kolya viu-os a atirar roupas da varanda da casa ao lado. À noite, eles entraram em casa dele e mataram-no”, contou a irmã de uma das vítimas, Lena Sluzhinskaya, ao The Guardian.

Entre 10 e 12 de setembro, a ofensiva no sul avançou mais um pouco, com os ucranianos a conquistarem mais aldeias e vilas: Myrolyubivka, Novovoznesenske, Bilohirka, Sukhyi Stavok. Perante o avanço ucraniano, os próprios russos abandonam Kyselivka. A aldeia de Vysokopillya, onde as forças russas tentaram levar a cabo um referendo à integração na Federação Russa — semelhante ao de Kherson, Zaporíjia e outras regiões do Donbass — também foi tomada pelos ucranianos.

A 12 de setembro, as tropas ucranianas destroem ainda uma ponte flutuante que tinha sido colocada pelos russos sobre o rio Dniepre, perto de Nova Kakhovka. A gestão do rio viria a assumir um papel de relevo no discurso mediático sobre a ofensiva de Kherson, com russos e ucranianos a acusarem-se mutuamente de terem o plano de destruir a barragem de Kakhhovka — ação que acabaria por nunca acontecer.

Durante quase um mês não há grandes novidades em Kherson. Mas a 2 de outubro, porém, as manobras militares voltam a trazer frutos para o regime de Kiev. A ofensiva rápida avança e recaptura cerca de 2.400 quilómetros quadrados de território, incluindo as aldeias de Dudchany e Zolota Balka. Nesta última, os ucranianos fizeram um movimento de pinça, com soldados a entrarem por um lado da aldeia e tanques e veículos militares por outro, o que surpreendeu os russos. “A audácia chocou-os. Por isso fugiram”, contou um soldado ucraniano ao Washington Post.

Em Dudchany a situação foi semelhante, com os russos a fugirem, deixando para trás até armamento. Aqui, como em tantas outras aldeias, a reconquista ucraniana trouxe ao de cima as histórias de violência da ocupação. À Radio Free Europe, os residentes disseram que houve raptos de civis que nunca apareceram. Dois jovens foram também detidos por terem gritado na rua “Glória à Ucrânia!”. E os habitantes ficaram também marcados pela violência da própria guerra, como Rosaliya Kovalchuk, a residente de 72 anos que contou ao The Guardian o que viu durante a ofensiva ucraniana: “Nos ramos de uma árvore estavam penduradas as tripas de um homem. Um carro militar tinha explodido. Pelas botas e pelo uniforme, acho que era russo.”

Dois dias depois, mais localidades eram libertadas pelas tropas ucranianas, como Novopetrivka e Starosillya. Velyka Oleksandrivka, onde dos 16 mil habitantes já só restavam mil, também foi conquistada. Sem água, eletricidade, nem gás, ali restavam apenas infraestruturas destruídas e mensagens estranhas deixadas por soldados russos nas paredes: “O que quer que façamos, nunca deixaremos esta vida vivos”, dizia uma das frases encontradas pelo The New York Times.

Outro ponto importante conquistado nesse dia foi Davydiv Brid, vila numa junção estratégica para quem quer chegar a Kherson. A ocupação russa, ali, nem sequer permitia que os residentes se juntassem a conversar na rua: “Em março, dispararam sobre as pessoas que estavam ali a conversar. O colega de escola do meu irmão morreu na sequência disso”, contou uma das habitantes a um órgão ucraniano.

O avanço até Kherson vai indo assim, a conta-gotas. Os dias seguintes são novamente de paragem, até que a 12 de outubro os ucranianos anunciam mais aldeias libertadas: Novovasylivka, Novohryhorivka, Nova Kamyanka, Tryfonivka e Chervone. Depois, silêncio durante quase um mês. A 9 de novembro, os soldados ucranianos estão já perto de Zeleniy Hai, local a partir do qual estão próximos o suficiente de Kherson para fazer disparos de artilharia em direção à cidade. Pouco depois entram na localidade, que está cheia de minas.

Os russos, porém, não parecem estar dispostos a ficar para lutar. O Kremlin anuncia uma desmobilização e começa a preparar uma evacuação de Kherson, retirando mantimentos, civis e soldados através do rio Dnieper, até à margem leste. Os ucranianos, contudo, desconfiam — temem que o anúncio da retirada seja uma armadilha e que a tomada de Kherson não seja assim tão fácil.

A ofensiva de Kiev vai andando, ao passo habitual. É preciso esperar até 10 de novembro para novas conquistas: Kyselivka e Snihurivka. Mas não por haver combates intensos: os russos abandonaram simplesmente Snihurivka, uma pequena cidade agrícola, importante na região. Os residentes contam uma história já conhecida: a da esquadra da polícia ocupada e usada como local para torturar civis. “As pessoas que viviam em apartamentos altos mudavam-se para casa de familiares, noutras ruas, para não ouvir os gritos”, disse um dos habitantes ao Ukrainska Pravda.

No dia seguinte, os russos deixam um sinal claro de que estão de facto a recuar para a outra margem do Dnieper, quando destroem a ponte Antonovsky, última grande ligação entre as duas margens. Concentram-se agora do outro lado, mas isso significa que abandonaram o centro de Kherson de vez. Na prática, os ucranianos puderam assim entrar tranquilamente na cidade, tendo sido recebidos em festa por vários dos residentes.

A fuga, contudo, não terminaria sem a consequência já costumeira do pós-ocupação: os relatos da violência e destruição deixada para trás. Na fuga, os russos levaram consigo vários bens — chegando até a roubar os ossos de Grigory Potemkin, amante de Catarina, a Grande, que estava enterrado numa cripta da cidade. E com a sua saída começaram a emergir os testemunhos da violência, coação e tortura. Como o de Vitaly, coronel da polícia que desapareceu em março, cujo corpo apareceu a boiar no Dnieper em maio. A mulher, que tinha fugido da cidade, nem sequer regressou a Kherson para o funeral. “Era demasiado perigoso”, lamentou.

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