A tensão no Parlamento no fecho da sessão legislativa centrou-se em duas figuras que acabaram a rumar ao Palácio de Belém para encontros com Marcelo Rebelo de Sousa. Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República, foi para o que esperava ser um encontro breve e viu o Chefe de Estado a fazer do momento um longo almoço; André Ventura, líder do Chega, pediu para ser recebido e apresentar queixas de Augusto Santos Silva. A escalada verbal no hemiciclo, que Ventura diz que pode tomar outras proporções, não impressionou, no entanto, o Presidente da República que vê nesse confronto uma preparação de outro embate político futuro: o da sua sucessão.
Em Belém a audiência com André Ventura foi lida como parte desse “jogo” que se prepara para a época política 2025/2026, altura em que se jogam as Presidenciais. A perceção sobre esse encontro é que pouco surpreendeu o Presidente que terá visto Ventura sobretudo empenhado em “polarizar com o PS já com vista o jogo das presidenciais”, segundo conta fonte de Belém ao Observador.
De resto, essa intenção do líder do Chega terá ficado clara perante Marcelo Rebelo de Sousa depois dos dois encontros. A tese da polarização, de resto, também corre no PSD, que desconfia que Santos Silva terá intenções muito semelhantes — no PSD vai-se comentando que o presidente da Assembleia da República está a correr em pista própria e a procurar diabolizar artificialmente o Chega para insuflar as suas hipotéticas pretensões presidenciais.
A perceção do Presidente da República não andará muito longe desta, com fonte de Belém a dar a entender que não foi só o Chega que “percebeu a vantagem” deste conflito com Augusto Santos Silva: “A vantagem é recíproca e é boa para os dois“.
A concentração das duas figuras em questão em campos opostos e bem definidos desde já pode fazer os dois ganhar tempo numa batalha que ainda está longe mas que é importante para ambos — Ventura continua a precisar de afirmação eleitoral e presidenciais, por serem unipessoais, são uma excelente oportunidade; e o PS porque precisa de um dos seus em Belém, já que, se falhar a eleições em 2026, arrisca ficar 30 anos fora do Palácio de Belém (Jorge Sampaio saiu em 2006).
O pedido de audiência do Chega a Marcelo aconteceu depois de os deputados do Chega terem abandonado o hemiciclo em protesto com o que classificaram como “falta de isenção” de Santos Silva na condução dos trabalhos no plenário.
Depois de uma intervenção dura de André Ventura sobre os imigrantes, o presidente da Assembleia da República tomou a palavra para defender quem procura Portugal para viver, tendo sido aplaudido por todas as bancadas, exceto a do Chega, que saiu irritada. Depois de ter recebido Ventura em Belém, Marcelo fez algo que não é costume depois destas audiências, saindo pela Sala das Bicas onde já sabe que está a comunicação social.
Parecia que ia falar, mas quis só vincar o seu ponto de não se meter em matérias parlamentares. Questionado sobre o encontro, falou para recusar falar: “Não me pronuncio sobre problemas internos da Assembleia da República”.
Dois dias depois, e a propósito do caso que envolveu os atores brasileiros Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso num restaurante na Costa da Caparica, no distrito de Setúbal, Marcelo fez publicar um comunicado no site da Presidência da República sobre racismo e xenofobia que, apesar de aparecer no rescaldo do episódio, não tinha qualquer referência concreta a esse momento — algo que Marcelo só fez depois, quando questionado pelos jornalistas.
A carapuça daquela nota poderia servir também ao Chega, que tinha tido (mais) um discurso recente radical sobre imigrantes, no Parlamento. Em Belém, no entanto, essa intenção é descartada. Fonte próxima de Marcelo explica que aquela é “a posição de princípio” do Presidente da República sobre o tema e relativa à sociedade portuguesa “como um todo”. Não era sobre Ventura, até porque essa frente parecer ser vista por Marcelo como um combate extra-parlamentar — é “Belém 2026” que está verdadeiramente em causa.
A ameaça de batatada
À saída do encontro com Marcelo Rebelo de Sousa, André Ventura explicou que acabara de pedir a intervenção do Presidente da República para que se evitasse o escalar da tensão no Parlamento. “Disse ao Presidente da República que, ao não exercer nenhuma influência sobre o presidente da Assembleia da República, a possibilidade de um escalar de conflito físico, verbal e político é real. Ninguém quer ver no Parlamento deputados quase à batatada no hemiciclo”, notou, em jeito de alerta, o presidente do Chega.
Com Santos Silva, Marcelo falara dias antes, demoradamente. E, segundo apurou o Observador nessa altura, o assunto Chega e a tensão crescente no Parlamento também terão passado ao lado do encontro. Marcelo não se quis meter no que se passa no hemiciclo e já se vai posicionando como observador do que depois de si virá.
No Chega, o choque frontal com Augusto Santos Silva foi celebrado, como explicava aqui o Observador. “Neste caso, o Chega ganhou. Não é uma estratégia nossa, mas tivemos de reagir. Não estamos a montar um jogo, mas era impensável não responder a isto. Santos Silva é que nos pôs nesta situação”, argumentava então um alto dirigente do partido.
No mesmo artigo, André Ventura não ia tão longe. “Preferia que o Chega estivesse nas notícias pelas propostas que tem e as críticas que está a fazer, do que pelo conflito permanente com o Presidente da Assembleia da República. Isto não interessa a ninguém, prejudica a democracia, o debate político e obnubila tudo o resto”, lamentava ao Observador o líder do Chega.
Entre socialistas, apesar dos méritos que se reconhecem ao agora presidente da Assembleia da República e da expectativa que existe em torno da possível candidatura à sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa, existe quem receie, como notava aqui o Observador, que esta guerra aberta com o Chega – que, mais do que um sprint, pode transformar-se numa espécie de maratona com novas etapas diárias no Parlamento – possa vir a fazer ricochete, desgastando a imagem do próprio Santos Silva.
Augusto Santos Silva, em entrevista ao Expresso, negou ser movido por qualquer atitude persecutória em relação ao Chega. “A minha conduta como presidente da Assembleia da República não tem a ver com o partido A, B, C ou D. Tem a ver com o que os senhores deputados fazem ou dizem. Pensemos ao contrário: a Assembleia da República sairia prestigiada se o presidente passasse a não exercer as suas responsabilidades de advertência quando os discursos se tornam injuriosos e ofensivos? (…) A minha resposta é não, não a prestigia.”
Na mesma entrevista, onde voltou a não afastar uma eventual candidatura presidencial, o socialista recusou associar as posições assumidas na Assembleia da República a um eventual insuflar do Chega e de André Ventura. “Tudo o que fazemos tem custos. E eu sei quais são os custos. (…) Não consigo associar um partido a um balão“, cortou Augusto Santos Silva.