Já passaram três anos e meio desde que um grupo de jovens moçambicanos, inspirado por ideais extremistas propagados nas madrassas (escolas corânicas) no norte de Moçambique, atacou três esquadras da polícia em Mocímboa da Praia. Desde então, os ataques têm sido cada vez mais violentos, à medida que a sofisticação da insurgência jihadista em Cabo Delgado cresce e a possibilidade de uma internacionalização do conflito ganha força, numa região rica em recursos naturais, mas onde a maioria do povo vive na miséria.
O ataque a Palma na semana passada, que causou a morte de dezenas de pessoas e levou a que milhares tivessem de fugir das suas casas, teve a particularidade de, pela primeira vez desde o início da insurgência, ter causado a morte de cidadãos estrangeiros, o que levou a que aumentasse a atenção da comunidade internacional sobre o drama que se vive no norte de Moçambique.
No entanto, desde outubro de 2017 que um grupo que se intitula como Al-Shabab (a juventude, em árabe) atormenta a população de Cabo Delgado com a sua barbárie, pautada por ataques contra populações indefesas, com recurso a pilhagens, decapitações e violações, deixando exposta a dificuldade sentida pelas forças de segurança moçambicanas para travar a onda de violência. Sobre o Al-Shabab, contudo, sabe-se muito pouco e os objetivos do grupo jihadista que tem espalhado o terror na região permanecem uma incógnita.
“O grupo não tem sido vocal em relação às suas exigências. A única indicação que temos é que querem derrubar o governo moçambicano e impor a sharia (lei islâmica). São objetivos muito semelhantes aos do Daesh”, sublinha ao Observador o analista Martin Ewi, do Instituto de Estudos de Segurança (ISS), com sede em Pretória, na África do Sul, que se tem dedicado ao estudo do extremismo islâmico no continente africano.
Estado Islâmico reivindica controlo da vila de Palma em Moçambique
Tal como outros ataques perpetrados pelo Al-Shabab — cujo nome completo é Ahlu Sunnah Wa-Jama (ASWJ), aparentemente sem ligações ao Al-Shabab que opera na Somália —, o ataque a Palma acabou por ser reivindicado pelo Daesh, organização terrorista à escala mundial a que os insurgentes de Cabo Delgado juraram fidelidade em 2018 e cujas bandeiras já apareceram nos vídeos que mostram as ações violentas do grupo.
Duas semanas antes do ataque a Palma, os Estados Unidos tinham designado o braço do Daesh em Moçambique — alegadamente liderado por Abu Yasir Hassan, de quem não se sabe praticamente nada, a não ser que é natural da Tanzânia — como uma organização terrorista, o que veio dar mais força à tese que aponta para a relação entre os insurgentes de Cabo Delgado e o grupo jihadista que chegou a controlar um território superior ao tamanho do Reino Unido no Iraque e na Síria.
No entanto, a influência que o Daesh assume em Cabo Delgado não é clara, e é também encarada como uma forma de propaganda, apesar de não poder ser desvalorizada. “Dizer que não existe ligação com o Daesh é manifestamente errado, mas é diferente dizer que têm ligações ou que fazem parte do Daesh”, afirma ao Observador Alexandre Raymakers, analista sénior para África da Verisk Maplecroft, uma empresa de consultadoria estratégica com sede no Reino Unido.
Nesse sentido, assegura Raymakers, “existem definitivamente comunicações entre as lideranças do ASWJ e do Daesh”. Isto apesar de o especialista acreditar que as “operações do dia a dia” são coordenadas pelos insurgentes moçambicanos.
Financiamento através do tráfico de rubis, madeira e droga
A ligação ao Daesh, de resto, parece ter sido um ponto de viragem no modo de atuação do grupo que até 2020 agiu sobretudo na sombra, atacando aldeias remotas na província de Cabo Delgado. Mas, no verão desse ano, naquela que foi considerada uma das principais conquistas para o grupo, os jihadistas conseguiram, após várias tentativas falhadas, capturar o porto de Mocímboa da Praia e assumir o controlo da vila, uma realidade que se mantém atualmente.
Desde então, o Al-Shabab tem vindo a crescer substancialmente e os analistas estimam que sejam mais de três mil os militantes a combaterem em seu nome, maioritariamente moçambicanos da província de Cabo Delgado, mas também combatentes oriundos de países como a Tanzânia ou a Somália, focos de atividade jihadista em África, onde já existem redes há vários anos.
Esse crescimento exponencial tem levantado muitas questões sobre as formas de financiamento dos insurgentes jihadistas em Cabo Delgado, assim como sobre a origem das armas usadas pelos seus militantes para combaterem as forças de segurança moçambicanas e atormentarem civis.
Ataques em Moçambique. Deslocados enganam a fome com folhas de feijão e sal
Existe um consenso entre os analistas de que a principal fonte de financiamento dos jihadistas, além das pilhagens nas comunidades locais, provém, sobretudo, da sua ligação ao tráfico internacional a partir da costa moçambicana, beneficiando da ativade económica ilegal muito vincada na região. O tráfico de pedras preciosas, como rubis, o comércio ilegal de madeira, a venda de marfim e, principalmente, o tráfico de droga, particularmente heroína, parecem constituir uma parte importante das receitas que permitem ao grupo terrorista continuar a crescer.
Quanto ao armamento, uma parte significativa tem sido conquistada na sequência dos ataques contra as forças de segurança. Há também suspeitas de que cheguem armas a Cabo Delgado através da fronteira com a Tanzânia, mas também por mar, provenientes do Médio Oriente — em novembro do ano passado, por exemplo, o Ministério Público moçambicano acusou 12 iranianos de fornecerem armas e munições aos insurgentes após encontrar uma embarcação carregada de armas na baía de Pemba. Mas, apesar de as armas poderem chegar de outros países, convém sublinhar que ainda não existem provas concretas, pelo que, nesta fase, são mais as dúvidas do que as certezas.
Frustração deixou jovens expostos a pessoas “com interesses obscuros”
Apesar de a situação em Cabo Delgado assumir proporções de um conflito com implicações internacionais, na sua origem, reitera o politólogo Adriano Nuvunga, está uma “dimensão doméstica” que remete para a situação socioeconómica daquela província no norte de Moçambique onde, apesar da riqueza em termos de recursos naturais, a pobreza é enorme e a população vive em condições muito precárias, o que levou a um sentimento de “falta de esperança” entre os mais jovens, deixando-os mais expostos à radicalização.
“Cabo Delgado é uma das mais ricas províncias de Moçambique, mas tem os mais pobres indicadores socioeconómicos e de desenvolvimento humano, com um nível de analfabetismo e sentimento de marginalização da população diante de um modelo de extrativismo dos recursos minerais baseado nas elites”, explica ao Observador o também diretor do Centro para a Democracia e Desenvolvimento (CDD), uma organização da sociedade civil moçambicana.
Com o início dos projetos de exploração de gás natural liquefeito em Afungi, na província de Cabo Delgado, particularmente o megaprojeto da multinacional francesa Total, o maior no continente africano, com um investimento superior a 20 mil milhões de euros, a esperança da população era que os lucros acabassem por melhorar a vida das comunidades locais, no entanto, a perceção é que apenas as elites estão a beneficiar com a exploração dos recursos naturais da província, enquanto a maioria dos jovens permanece condenada ao desemprego e à pobreza.
“Há uma frustração de expectativas de gente local que esperava tirar a barriga da miséria, particularmente a juventude”, acrescenta Adriano Nuvunga, notando que “os jovens moçambicanos estão insatisfeitos e por isso são facilmente mobilizados por pessoas com interesses obscuros”.
A este sentimento de marginalização acresce a violência exercida sobre a população de Cabo Delgado, não só às mãos dos insurgentes jihadistas, mas também por parte das forças de segurança governamentais e de empresas de segurança privada contratadas pelo governo moçambicano para combater os terroristas, denuncia um relatório da Amnistia Internacional divulgado no início de março.
“Em Cabo Delgado, as pessoas não confiam no governo, que, em certa medida, culpa as populações por viverem lado a lado com os insurgentes. O contrato social foi rasgado em Moçambique e é preciso repará-lo”, frisa o analista Martin Ewi, defendendo a necessidade de uma resposta abrangente, que vá além da via militar, para responder aos anseios da população de Cabo Delgado, nomeadamente através do diálogo e de uma possível “amnistia” para os jovens que abandonem a insurgência.
Governo moçambicano está a “subestimar” e não cede
Até ao momento, para enfrentar a insurgência armada no norte de Moçambique — que já causou a morte de pelo menos 2,600 pessoas, além de mais de 700 mil deslocados, sendo que metade são crianças, de acordo com a Unicef—, o governo da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), do presidente Filipe Nyusi, tem contado sobretudo com o apoio de grupos de mercenários, nomeadamente do Dyck Advisory Group, um grupo paramilitar sul-africano contratado para combater os jihadistas.
No entanto, o apoio dos mercenários às forças de segurança moçambicanas não tem sido suficiente para enfrentar o Al-Shabab que, tal como outros grupos semelhantes no continente africano, tem nas táticas de guerrilha o seu modus operandi, o que tem levado a apelos para que Nyusi aceite apoio internacional.
Este apelo, aliás, ganhou ainda mais força após o ataque a Palma na semana passada, quando os jihadistas demonstraram enorme sofisticação e disciplina de combate, fazendo vários ataques simultâneos, desde emboscadas a estrangeiros que fugiam de um hotel até ataques com metralhadoras e morteiros para impedir a chegada das forças de segurança.
Ataques em Moçambique. Situação humanitária em Palma é “extremamente preocupante”, diz ONU
Na sequência deste ataque, a multinacional Total, que se preparava para retomar o megaprojecto de gás liquefeito em Afungi, voltou a suspender as suas atividades, um rude golpe para o governo moçambicano que planeia começar a exportar gás natural de Cabo Delgado no próximo ano. Nesse sentido, segundo o analista Alexandre Raymakers, a tomada da vila de Palma pelos jihadistas veio “mudar o jogo”.
“Um dos motivos que tinha levado a Total a recomeçar os trabalhos foi a garantia por parte de Maputo de um perímetro de segurança de 25 quilómetros à volta do megaprojeto, incluindo Palma. Por isso, a perda de Palma foi humilhante”, sublinha o analista, notando que, apesar do risco em torno dos projetos de exploração de gás liquefeito, “a narrativa e as declarações que chegam de Maputo não indicam que vá haver uma mudança estratégica significativa nesta fase”.
Oficialmente, o presidente moçambicano não pediu ajuda internacional para enfrentar o Al-Shabab, tendo mesmo afirmado que o ataque a Palma “não foi maior do que tantos outros”, defendendo a estratégia que tem seguido até agora.
“O governo vai continuar a dizer que tem condições para repelir esta insurgência e vai continuar, creio, a contar com os atuais mercenários que são uma clara violação à lei internacional e ao próprio instrumento da União Africana e da constituição de Moçambique”, lamenta o politólogo Adriano Nuvunga, considerando que a “resistência do governo a aceitar apoio internacional mostra que está a subestimar” o Al-Shabab.
Palma foi “ponto de viragem” e são esperados ataques semelhantes no futuro
Apesar da intransigência de Maputo em receber mais apoio exterior, as forças especiais norte-americanas já começaram a treinar os militares moçambicanos, e o governo português, que garante que está a ser preparada uma missão de apoio a Moçambique por parte da União Europeia, também vai enviar forças especiais para dar formação aos moçambicanos.
Esta estratégia, considera Alexandre Raymakers, da Verisk Maplecrof, mostra que Maputo “quer uma solução rápida de segurança” para o conflito, no entanto, “tal não vai funcionar”, uma vez que um “treino que leve a mudanças tangíveis demora muitos meses”, e a situação no terreno exige uma resposta mais abrangente.
“Nenhum país consegue combater o terrorismo sozinho. Nyusi tem falado em soberania, mas o pensamento em Maputo precisa de uma reflexão mais profunda, para perceber que soberania não significa agir sozinho”, acrescenta o analista Martin Ewi, do ISS, defendendo a necessidade de um apoio da União Africana e da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral.
A possibilidade de uma intervenção estrangeira em Moçambique, no entanto, tem levado a alguns alertas por parte dos analistas, que avisam que tal poderá ter consequência não só para o país, como para a região. O historiador francês Michel Cahen, em declarações à Lusa, frisou os interesses de França em Cabo Delgado — a Total é uma multinacional francesa — e alertou que uma intervenção militar poderia transformar Moçambique num “novo Mali”, onde milhares de soldados franceses morreram nos últimos anos a combater grupos terroristas.
Enquanto prossegue o debate sobre os contornos de uma possível intervenção estrangeira, as forças de segurança moçambicanas continuam a tentar reconquistar Palma, uma vila que se encontra praticamente deserta, com alguns focos de resistência jihadista, e esperam ainda conseguir tirar Mocímboa da Praia do controlo do Al-Shabab. A eficácia nessas operações militares, além da capacidade para garantir a segurança no resto da província, pode ser determinante para o futuro do conflito, daí que Raymakers diga que “a bola está do lado de Maputo”.
Ataques em Moçambique. Milhares com dificuldades em sobreviver à fuga de Palma
No entanto, o que as ofensivas dos últimos meses mostram é que a insurgência está longe de chegar ao fim, numa altura em que a insegurança na província de Cabo Delgado é cada vez maior, inclusive em Pemba, capital provincial e destino de milhares de moçambicanos que fugiram da violência do Al-Shabab.
Tendo em conta o pouco que sabe sobre os objetivos concretos do grupo, é difícil prever os próximos ataques. Contudo, conforme sublinha o analista Martin Ewi, o ataque a Palma marca um “ponto de viragem” na insurgência jihadista em Moçambique, agora debaixo da atenção da comunidade internacional, que até então tinha vindo a ignorar a gravidade do problema em Cabo Delgado.
“Nos próximos tempos, vamos assistir a mais ataques semelhantes”, teme Ewi, apontando para a cobertura mediática que o ataque a Palma teve a nível internacional, devido ao ataque a estrangeiros, o que pode incentivar os jihadistas a intensificarem as atrocidades: “Ao atacarem um hotel com estrangeiros, viram que houve um clamor internacional. Por isso, vão fazê-lo novamente”.