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No verão de 2022, nove inspetores da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) deslocaram-se a cinco hospitais para responder a uma questão que se levantava perante as dificuldades em várias unidades de saúde: “Os constrangimentos verificados no serviço de urgência externa na área da ginecologia/obstetrícia no período entre 10 e 19 de junho de 2022 resultaram de alguma deficiência no planeamento das férias dos médicos ou do incumprimento das regras aplicáveis?”.
A conclusão a que a IGAS chegou foi clara: os problemas “resultaram da existência de falhas no processo de planeamento, marcação, gozo do período de férias dos médicos que asseguram as escalas (…). Mas, o problema continua, ainda assim, a estar sobretudo na escassez de médicos para garantir a constituição das equipas, na indisponibilidade de alguns médicos para a realização do trabalho suplementar e no facto de, na maioria das entidades hospitalares inspecionadas, mais de um terço dos médicos desta especialidade terem idade igual ou superior a 50 anos”, o que lhes permite não fazer trabalho noturno. Mas, além disto, os constrangimentos estiveram também associados “à indisponibilidade, de alguns dos médicos prestadores de serviço, para integrar as escalas do serviço de urgência externa”.
O Observador teve acesso aos relatórios pormenorizados das cinco inspeções, que pintam um retrato preocupante do modo como a escassez de médicos, associada a falhas no planeamento de escalas e férias, conduziu ao caos naquela semana de junho de 2022, em que múltiplas urgências de obstetrícia estiveram encerradas, causando forte alarme social no país. No Hospital de Braga, por exemplo, cerca de um terço dos médicos da especialidade estavam de férias naqueles dias críticos — e pelo menos oito profissionais foram escalados para turnos nos seus dias de férias. No Algarve, a situação foi ainda mais grave: em alguns dias da semana mais crítica, estavam de férias quase 50% dos pediatras, o que impediu o normal funcionamento do bloco de partos. Em Almada, o Hospital Garcia de Orta foi acusado pela IGAS de “total passividade” por não ter resolvido o problema que surgiu em junho de 2022, quando um elevado número de especialistas estavam de férias em simultâneo, gozando férias que constavam de um mapa que ainda nem sequer tinha sido formalmente aprovado. Já no Barreiro, o problema não foi de gestão, mas de uma já antiga falta de médicos, agravada pelo envelhecimento da equipa (a partir dos 50 anos, os médicos podem escusar-se a certos serviços de urgências). No Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa, o problema foi outro: vários dos médicos contratados em regime de prestação de serviços, para suprir as lacunas dos quadros, simplesmente não cumpriram as horas contratualizadas.
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Os problemas não foram sempre iguais: a falta de médicos é transversal, mas as irregularidades na elaboração das escalas, a falta de comparência dos médicos contratados em regime de prestação de serviços e as confusões na marcação das férias ajudaram a criar uma situação de caos que foi aprofundada pelo facto de, naqueles dias, ter havido dois feriados junto ao fim de semana.
A inspeção da IGAS foi levada a cabo numa semana crítica que obrigou a então ministra da Saúde, Marta Temido, a reunir-se de emergência com a Autoridade Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo em virtude dos constrangimentos registados e do encerramento de vários serviços de urgência. Dias antes, uma grávida tinha perdido o bebé por não lhe ter sido prestada assistência adequada no Hospital das Caldas, que, apesar de não ter sido analisado nestas inspeções, foi alvo de uma outra inspeção na sequência desse episódio.
Julho e agosto de 2024. Os meses tradicionais de férias dos portugueses voltaram a ser também os preferidos de muitos médicos para gozarem o verão. Dois anos depois, com menos especialistas disponíveis, os hospitais têm de gerir os recursos de forma a não colocarem em causa o funcionamento dos serviços. Uma tarefa complexa, que algumas unidades de saúde continuam a não concretizar da forma mais eficaz — critica a associação que representa os administradores hospitalares — ao concentrarem as férias dos médicos em poucas semanas. No entanto, gestores, Ordem dos Médicos e diretores de serviço não têm dúvidas: o principal problema que dificulta o funcionamento das urgências hospitalares nestes meses de verão continua a ser a falta de profissionais, um fator que, aliado ao período de verão, fragiliza ainda mais o SNS.
Nove hospitais com 11 urgências encerradas este sábado, maioria na Grande Lisboa
Mas terá ou não o planeamento das férias um impacto no caos que se verifica nas urgências? Em algumas unidades continua a ter.
Que problemas foram identificados há dois anos?
Alguns dados gerais ajudam a perceber o problema. Nas cinco unidades hospitalares inspecionadas houve uma necessidade elevada de recorrer à contratação de médicos em regime de prestação de serviços, uma vez que não conseguiram elaborar as escalas com o número mínimo de médicos necessários. Em duas das unidades, estas contratações corresponderam a 58% do total de médicos no serviço de obstetrícia, detalha a IGAS.
Além disto, em três das cinco unidades hospitalares, a percentagem de especialistas em ginecologia/obstetrícia com idade igual ou acima de 50 anos (e, por isso, com a prerrogativa de requerer a dispensa de prestar trabalho no serviço de urgência durante a noite) situava-se entre 26% e 48% dos médicos deste serviço.
O Observador analisou os cinco relatórios produzidos pela IGAS na sequência das inspeções realizadas nos hospitais do Algarve (Polo de Portimão), Barreiro-Montijo, São Francisco Xavier (Lisboa), Garcia de Orta (Almada) e Braga — num total de mais de 250 páginas — para concluir que há um problema transversal a todos eles: faltam médicos. Em todos os hospitais analisados registaram-se também, com maior ou menor grau de influência no caos provocado no verão de 2022, problemas e irregularidades na marcação das férias dos profissionais e na elaboração das escalas de serviço das urgências.
Outros fatores, como o descontentamento dos médicos, as dificuldades provocadas pela localização geográfica ou o contexto daquela semana de 10 a 19 de junho de 2022 — com dois feriados nacionais muito próximos a promover o fim-de-semana prolongado —, também foram apontados como tendo contribuído para o caldo de problemas que levou à situação de caos vivida em vários hospitais nacionais, com encerramentos sucessivos de serviços de urgência externa de Ginecologia e Obstetrícia.
Esta multiplicação de problemas ficou especialmente evidente no Hospital de Braga, uma ex-PPP, que se viu forçado a encerrar o serviço de urgência de Ginecologia e Obstetrícia nos dias 12, 17 e 19 de junho — e a tê-lo a funcionar com fortes constrangimentos durante toda aquela semana.
A IGAS concluiu que os constrangimentos resultaram da “escassez de recursos médicos” para garantir as equipas de urgência, que, num hospital daquela dimensão, têm de ser compostas por cinco especialistas. Além da escassez de profissionais, houve também “falhas no planeamento, marcação e gozo de férias”, diz a IGAS.
Para o hospital poder cumprir as normas da Ordem dos Médicos para o serviço de urgência, tinha de ter um total de 35 profissionais especialistas, com disponibilidade para assegurar aquele serviço na totalidade dos horários. A realidade, porém, é bem distinta. Só entre 2021 e 2022 tinham saído oito especialistas e o quadro tinha, naquele verão, 32 médicos especialistas. Contudo, um deles encontrava-se em licença sem vencimento; três estavam dispensados do serviço de urgência por terem mais de 55 anos; sete tinham mais de 50 anos e podiam não realizar urgências no período noturno; uma médica estava de licença por gravidez de risco; outra estava em licença parental; dois tinham horário reduzido; um estava doente e outro estava em isolamento devido à Covid-19. Além disso, 14 médicos declararam-se indisponíveis para realizar trabalho suplementar além do limite de 150 horas, que já tinham ultrapassado em maio.
Feitas as contas, naquele período crítico, só havia 24 médicos disponíveis (em vez dos 35 necessários) — e muitos deles com fortes limitações horárias. Face a esta escassez, em Braga foi feito o mesmo que noutros pontos do país: recorrer aos 10 médicos internos (dois dos cinco membros da equipa podem ser internos a partir do segundo ano, caso não haja especialistas) e a médicos contratados em prestação de serviços.
A uma equipa envelhecida e desmotivada somaram-se outros problemas, nomeadamente erros na marcação de férias e na elaboração das escalas.
Relativamente às férias, a IGAS concluiu que havia 10 médicos especialistas com dias de férias marcados para aquela semana crítica, bem como cinco internos. O dia 17 de junho (sexta-feira após o feriado do Corpo de Deus) era aquele que tinha mais pessoas de férias: eram 12, incluindo oito especialistas e quatro internos. Apesar de não ter sido desrespeitada a norma interna de não estar mais de um terço dos profissionais em férias ao mesmo tempo, as escalas foram profundamente afetadas.
A IGAS identificou também várias irregularidades na elaboração das escalas, partilhadas num grupo de WhatsApp interno. As escalas são inicialmente feitas para o ano todo, com indicação de quais as equipas de médicos que terão de trabalhar em cada dia e semana, mas depois são emitidas escalas mensais com os horários de cada equipa. Olhando para as escalas de junho de 2022, a IGAS concluiu que houve várias trocas de última hora, buracos por preencher (nos dias 12, 17 e 19 de junho só havia mesmo dois médicos disponíveis) e, pior do que isso: pelo menos oito profissionais foram colocados em turnos em dias em que se encontravam de férias já aprovadas.
Todo este caldo levou a uma semana de caos nas urgências. A IGAS argumentou ainda (tal como fez noutros hospitais) que o hospital podia ter recorrido a mecanismos do Código de Trabalho para, unilateralmente, mudar as férias dos profissionais e impedir que a urgência tivesse de fechar. Mas o hospital considerou que tinha de ser “sensível ao ambiente de desmotivação e descontentamento verificado naquele serviço (…) procurando amenizar esse ambiente e evitar a saída de mais profissionais”. Recorrer a esses mecanismos legais iria gerar mais descontentamento, concluiu o hospital.
No caso do Hospital do Algarve, a situação foi parecida, embora a pior consequência da semana de caos — o encerramento da urgência de Ginecologia/Obstetrícia do Polo de Portimão entre as 21h de dia 14 de junho e as 9h de dia 20 — tenha resultado, não da falta de especialistas de Ginecologia e Obstetrícia, mas da falta de pediatras. A opção do hospital foi encerrar o Polo de Portimão e encaminhar todas as situações para o Polo de Faro.
Como explica o relatório da IGAS, aquele serviço de urgências precisa de ter três especialistas em permanência (mas o terceiro pode ser substituído por um interno em caso de falta de especialistas). No entanto, a equipa quase nunca está completa: o serviço funciona praticamente sempre com dois especialistas e, “sempre que possível, constitui equipa com os três elementos, seja o terceiro elemento interno, especialista ou médico sem especialização”. Ao mesmo tempo, são necessários dois pediatras em permanência para assegurar o Bloco de Partos, sem o qual a urgência de Ginecologia/Obstetrícia não pode funcionar.
O hospital conta com 12 médicos especialistas em Ginecologia/Obstetrícia afetos àquele serviço (incluindo um clínico geral e dois internos) e com 15 médicos afetos ao serviço na Pediatria (mas apenas 13 estão no hospital em permanência). No caso da Pediatria, dois médicos pediram dispensa das urgências por terem mais de 55 anos e duas médicas estão com redução de horário por terem filhos menores, sendo dispensadas das urgências noturnas. Este quadro tem de ser complementado com contratos de prestação de serviços que permitem ter mais 22 especialistas em Ginecologia e Obstetrícia e 12 especialistas em Pediatria.
De acordo com a IGAS, regista-se aqui um primeiro problema com estes médicos: embora tenham a obrigação contratual de informar, até ao dia 10 de cada mês, as suas eventuais restrições horárias para o mês seguinte, não o estavam a fazer. O hospital estaria a ter muita dificuldade em preencher as lacunas das escalas com estes profissionais — e alguns não fizeram uma única hora de serviço em junho de 2022.
Outro problema surgiu com os mapas de férias. No caso da Pediatria, o mapa de férias, que tem de ser aprovado até abril, ainda não tinha sido aprovado nem pelos diretores de serviço nem pelo Conselho de Administração. Se, no caso da Ginecologia/Obstetrícia esta questão foi pacífica (só três médicos tinham férias naquele período), na Pediatria foi pior: oito dos 13 médicos estavam de férias. No dia 17 de junho de 2022 chegaram a estar de férias quase 50% dos médicos do serviço, contrariando a norma interna que diz que não podem estar mais de 30% de férias em simultâneo.
O hospital percebeu que não teria cobertura de pediatras nos dias 18 e 19 de junho e, então, optou por encerrar o serviço três dias antes, para evitar transferências de grávidas e bebés internadas — o que é considerado uma boa prática.
A IGAS, contudo, desconfia do modo como as escalas foram feitas e diz não haver possibilidade de rastrear as versões anteriores do documento: teriam sido feitas com antecedência ou as lacunas estavam a ser preenchidas a cada dia? A inspeção diz ainda não ter conseguido perceber que esforços foram feitos para evitar o encerramento da unidade, nomeadamente chamando prestadores de serviços, e acusa o Conselho de Administração de não ter “proatividade suficiente para resolver este imbróglio” das férias sobrepostas. Segundo a IGAS, o hospital podia e devia ter recorrido ao Código de Trabalho para alterar as férias dos médicos por necessidade imperiosa de serviço.
O hospital, por seu turno, responde que existe um “problema crónico decorrente da falta de médicos especialistas neste periférico e carente Centro Hospitalar apesar das iniciativas gestionárias encetadas para colmatar estas lacunas”.
Uma crítica semelhante é feita ao Hospital Garcia de Orta, com a IGAS a apontar “no processo de planeamento, marcação, gozo do período de férias dos médicos que asseguram o funcionamento do serviço” e a acusar o Conselho de Administração daquele hospital de “total passividade” perante a sobreposição das férias dos profissionais. “Ao relevar o direito dos seus trabalhadores em detrimento do interesse público [o hospital] acabou por obstruir ao acesso aos cuidados de saúde” e por contribuir “para o surgimento de alarme social”, diz a IGAS.
Isto porque, naquele caso, o problema deveu-se mesmo ao modo como as férias foram marcadas, prejudicando fortemente as escalas. No período analisado (a urgência de Ginecologia/Obstetrícia enfrentou fortes constrangimentos e várias noites de encerramento entre 10 e 19 de junho de 2022), houve um “elevado número de especialistas em gozo de férias” — gozando, aliás, férias que ainda não tinham sido formalmente aprovadas, já que os mapas de férias deviam estar aprovados e afixados desde abril, mas isso ainda não tinha acontecido (algo que o hospital justificou com um ataque informático sofrido em abril).
Tal como nos restantes hospitais, o quadro de médicos do Garcia de Orta não é suficiente para fazer face às escalas — e é necessário contratar médicos em regime de prestação de serviços para preencher as lacunas. Apesar disso, a urgência de Ginecologia/Obstetrícia funcionava frequentemente com menos especialistas do que exige a Ordem dos Médicos. A IGAS aponta, por outro lado, um problema nestes contratos, que são omissos quanto à antecedência com que os médicos contratados têm de informar o hospital da sua disponibilidade para o serviço.
Com o mapa de férias por aprovar, 22 dos 29 especialistas de Ginecologia/Obstetrícia do Garcia de Orta tinham férias pedidas para o mês de junho. Só naquele período crítico 13 médicos tinham dias de férias marcados. A IGAS aponta aqui dois problemas: o mapa de férias estava ainda por aprovar e as escalas de serviço não tinham data. Ou seja: não era possível perceber quando é que o Conselho de Administração tinha tido conhecimento destas escalas, para poder usar instrumentos legais para evitar a falta de profissionais.
Isto porque os mapas de férias são aprovados pelos diretores de serviço numa delegação de competências por parte do Conselho de Administração, que mantém o poder para intervir no processo.
“Perante a evidente sobreposição de dias de férias por parte de muitos dos seus especialistas, os vários graus hierárquicos do HGO, E.P.E. demonstraram total passividade, isto é, não utilizaram os mecanismos legais, designadamente o art.º 243 do CT, de modo a garantir o normal funcionamento do serviço de urgência”, acusa a IGAS, referindo-se à norma laboral que permite à empresa alterar unilateralmente o período de férias de um trabalhador. O hospital contrapõe e diz que “ponderou” recorrer a esse mecanismo, mas que o achou “contraproducente e ineficaz, na medida em que o número de profissionais (…) é manifestamente insuficiente”. Para o hospital, recorrer a este mecanismo só iria prejudicar ainda mais o serviço no futuro.
Mas houve casos diferentes. No hospital do Barreiro-Montijo, os constrangimentos que se verificaram naquela semana de 10 a 19 de junho de 2022, e que levaram ao encerramento das urgências de Ginecologia/Obstetrícia durante vários dias, “não resultaram de falhas no planeamento, marcação, gozo e alterações do período de férias dos médicos que asseguram o funcionamento de tal urgência (…), mas antes da escassez de recursos médicos que possam garantir equipas médicas constituídas por um mínimo de três especialistas em presença física”.
A IGAS não deixa de apontar falhas no processo de planeamento das férias, já que o mapa não foi aprovado e afixado até 15 de abril. Contudo, “não se verificaram desvios significativos no gozo de férias em relação à marcação inicial” e esteve sempre garantido “o limite máximo de um terço dos efetivos em gozo de férias em simultâneo”, além de não ter havido ausências imprevistas.
O problema, diz a IGAS, é mesmo a falta de médicos. No total, há 19 médicos afetos ao serviço. Porém, há seis com idade superior a 50 anos (que podem estar fora das urgências noturnas). Além disso, há 11 especialistas em regime de prestação de serviços (mas só os que têm horas contratualizadas à semana é que trabalharam naquele período crítico, sendo que os outros não estavam disponíveis). Há também seis internos.
O hospital explicou que, apesar de muitas diligências internas e externas (que envolveram o aumento significativo do preço por hora pago aos médicos contratados), “não foi possível garantir a disponibilidade de médicos para garantir a equipa tipo preconizada pela Ordem dos Médicos”. São apontadas responsabilidades à saída de médicos, ao envelhecimento da equipa (que aumenta o número de médicos dispensados de urgências) e à falta de condições.
Segundo o hospital, para cumprir as normas da Ordem dos Médicos seriam necessários 21 efetivos a trabalhar 24 horas — o que não acontece. A equipa, dizia o hospital à data, só permite assegurar 60% das necessidades do serviço, pelo que é preciso ir buscar médicos contratados, a preços cada vez mais elevados.
Por fim, no Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa, a realidade foi ainda outra: os constrangimentos verificados de 10 a 19 de junho “não resultaram de deficiência no planeamento das férias ou do incumprimento das respetivas regras aplicáveis, mas da indisponibilidade para a realização das horas contratadas semanalmente por parte dos médicos em regime de prestação de serviços”. Além disso, há dois fatores adicionais a ter em conta, que incluem a diminuição do número de horas semanais de urgência feitos por alguns médicos do quadro (algo que o hospital disputa) e do facto de uma das médicas aposentadas contratada para a situação de crise não ter aceitado, afinal, realizar o turno pedido.
Com 23 médicos nos quadros (incluindo oito internos, dois que não fazem serviço noturno e um que não faz urgência ao fim de semana), o hospital lisboeta tem uma franca escassez de profissionais, que resolveu com a contratação de 14 médicos em regime de prestação de serviços.
No caso deste hospital, o problema não residiu propriamente na marcação das férias: o mapa foi aprovado dentro dos prazos, até abril, e a norma interna de não estarem mais de 20% dos médicos de férias ao mesmo tempo foi respeitada. Apesar disso, a IGAS aponta aqui um problema: os prestadores de serviço foram incluídos no mapa de férias, apesar de não terem direito a férias. O hospital alega que é apenas uma funcionalidade por defeito da aplicação informática.
O grande problema foi mesmo o “incumprimento das horas contratualizadas semanalmente de sete dos 14 médicos com contrato de prestação de serviço”. A IGAS foca neste problema a sua principal recomendação ao hospital, pedindo que haja formas de garantir que os médicos contratados cumprem as horas contratualizadas, incluindo com a introdução de cláusulas contratuais que obriguem os médicos a indemnizar o hospital.
A IGAS diz ter visto “inúmeros emails não respondidos pela generalidade dos profissionais contratados nestas condições, enviados pelo secretariado de direção de obstetrícia/ginecologia”. O hospital diz que existe uma grande procura de tarefeiros que leva a situações destas — e que há médicos a exercer funções em três ou mais maternidades.
Recomendações de 2022 sobre gestão das férias foram acolhidas?
Das cinco entidades hospitalares alvo de inspeção, apenas o Hospital Garcia de Orta e a Unidade Local de Saúde de Lisboa Ocidental garantem ao Observador que acataram todas as recomendações apresentadas pela IGAS. O Centro Hospitalar Barreiro-Montijo limitou-se a informar que as “escalas são organizadas em função das necessidades de funcionamento dos serviços, respeitando o direito a férias e outros períodos de descanso obrigatório”. Já as restantes unidades de saúde — o Hospital de Braga e o Centro Hospitalar Universitário do Algarve — não responderam.
A IGAS recomendou que fossem aperfeiçoados os contratos de prestação de serviços médicos. Deveriam passar a incluir “o número de horas semanais” e “cláusulas penalizadoras pelo incumprimento dos deveres contratuais”; deveria ser revista “a cláusula relativa às obrigações de comunicação de ausências previsíveis”, para que sejam avisadas atempadamente; e ainda corrigir “lapsos verificados” em contratos.
A segunda recomendação passava precisamente por melhorar a gestão das férias dos médicos. A IGAS sugeria que fossem aprovados os mapas de férias em falta referentes a esse ano de 2022; que fosse elaborado um mapa onde se indicasse o início e fim dos período de férias; e que fossem revistas as “orientações relativas ao processo de elaboração, validação e aprovação dos mapas de férias”.
Por último, a IGAS recomendava também uma melhoria da gestão das escalas médicas e do tempo de trabalho. Para isso, era sugerido que nos suportes documentais das escalas constassem “os elementos indispensáveis à verificação das datas da sua elaboração, aprovação e eventual alteração”, assim como a identificação de quem tomou cada uma destas decisões. E era ainda recomendado que os médicos cumprissem “a totalidade do número de horas semanais de trabalho no serviço de urgência”.
De acordo com os relatórios elaborados pela IGAS, cada um dos hospitais foi alvo de recomendações específicas sobre a sua realidade.
No caso do Hospital do Algarve, foram feitas quatro recomendações, das quais o hospital só implementou duas (aprovar o mapa de férias de 2022 e garantir que as escalas incluem datas de elaboração, aprovação e alteração e os nomes dos responsáveis de cada alteração). Outras duas (garantir que os médicos contratados em regime de prestação de serviço cumprem as horas contratualizadas e rever as normas internas sobre a elaboração de mapas de férias) foram assinaladas como “não implementadas” pela IGAS.
O Hospital de São Francisco Xavier cumpriu seis das sete recomendações da IGAS, que incluíam um conjunto de pedidos de esclarecimento sobre profissionais concretos, a garantia de que os médicos cumprem as horas mínimas de urgência, a revisão das orientações internas de marcação de férias e introduzir cláusulas para penalizar os contratados que não cumprem as horas contratualizadas. Por cumprir fica apenas a garantia de que os médicos contratados cumprem as horas contratualizadas.
Quanto ao Hospital Garcia de Orta, a IGAS recomendou a aprovação das férias de 2022, a melhoria das normas internas para a elaboração de mapas de férias e garantia de que as escalas passam a incluir as datas de elaboração e aprovação, bem como os nomes de quem faz alterações. Fica por cumprir uma recomendação sobre a revisão dos contratos com os médicos em regime de prestação de serviços, para que passem a incluir cláusulas específicas para fixar a antecedência com que os médicos devem informar o hospital das suas ausências previsíveis.
Já o Hospital de Braga foi alvo de quatro recomendações, no mesmo sentido dos restantes hospitais, e cumpriu a totalidade.
Quanto ao Hospital do Barreiro-Montijo, as três recomendações feitas inicialmente pela IGAS foram dadas como implementadas logo no relatório final — e incluíam correções nos contratos com dois médicos e o cumprimento das datas para afixação do plano de férias.
Então, o que falhou dois anos depois?
Questionado pelo Observador nos últimos dias, o Garcia de Orta garante que as falhas de 2022 não se repetiram este ano. Mas não detalha se, além da falta de profissionais, houve mais algum motivo na base dos constrangimentos nas urgências este verão.
Já a Unidade Local de Saúde de Lisboa Ocidental — na época denominado Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental — explica ao Observador que “os constrangimentos atuais não têm a ver com a marcação de férias, que obedece aos rácios definidos, mas com o reduzido número de recursos humanos atualmente disponíveis para a realização de escalas de urgência”. Esta unidade local de saúde acrescenta ainda que o planeamento das escalas, “um trabalho exigente, é acompanhado permanentemente pelo conselho de administração”.
No entanto, “nem todos os hospitais planeiam as férias dos médicos com o mesmo grau de eficácia e há casos em que temos evidência de poderia ser feito um trabalho melhor”, garante ao Observador o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares. Embora reconheça que “fazer escalas não é algo fácil”, Xavier Barreto afirma que “há hospitais muito semelhantes que têm resultados diferentes na gestão das férias e isso tem impacto nas escalas e na abertura dos serviços”.
O principal problema neste campo, sublinha, é a excessiva concentração das férias dos médicos em determinados períodos, nomeadamente em agosto. “Os hospitais poderiam fazer isto melhor, distribuindo mais as férias dos médicos ao longo das férias de verão“, defende Xavier Barreto, acrescentando que “é necessário olhar para os mapas de férias de junho, julho, agosto e setembro e perceber se alguns dos médicos que estão fora em agosto poderiam ter gozado férias noutro período”.
“Se a questão das férias fosse mais bem gerida, teríamos menos dias de constrangimentos nas urgências”, sublinha o responsável.
Hospitais impõem limites: apenas 30% dos médicos podem gozar férias ao mesmo tempo
Tal como acontece com todos os trabalhadores, os médicos têm até abril para sugerir, à direção do respetivo serviço, os períodos em que pretendem gozar férias. Cabe ao diretor responsável por esse serviço avaliar o pedido e conjugá-lo com os dos outros trabalhadores. “Esta é uma responsabilidade dos diretores de serviço, que acertam os horários com os médicos mas também com conselhos de administração, através da direção clínica”, explica Xavier Barreto.
A maioria das unidades hospitalares tem regras internas que estabelecem que nenhum serviço pode autorizar férias, em simultâneo, a mais de 30% dos seus profissionais — segundo fonte do Ministério da Saúde, não há nenhuma lei ou norma geral que o imponha. “Os hospitais têm de construir as equipas de forma a que não estejam fora mais de 30% dos médicos. Isso tem de ser averiguado por quem superiormente avalia as férias, que são os conselhos de administração”, diz o bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes. O que acontece nalguns casos, critica Xavier Barreto, é que os conselhos de administração dos hospitais apenas “carimbam” os mapas de férias que lhes são entregues pelos diretores de serviço, desguarnecendo a resposta nas mais diversas áreas.
Segundo disse ao Observador fonte conhecedora do caso, foi isso mesmo que aconteceu este ano com a Obstetrícia no Hospital de Santo André, em Leiria. Por falta de médicos, o serviço de urgência obstétrica encerrou no dia 2 e só voltará a abrir no dia 20 de agosto — sendo que nunca se tinha verificado um período de encerramento tão prolongado nesta unidade. “No caso de Leiria, trata-se de uma estratégia adotada pelo serviço e pela administração, que acharam que era a melhor forma de planeamento para fortalecer o resto do mês“, diz a mesma fonte, que admite que a questão em torno da organização das férias dos médicos “tem impacto” nos serviços. O Observador questionou a ULS de Leiria sobre as razões para um encerramento tão prolongado do serviço de urgência e se a concentração excessiva de férias dos médicos especialistas em agosto foi determinante para o desfecho, mas não obteve resposta.
Na região de Lisboa, um dos hospitais que têm demonstrado mais dificuldades em responder às grávidas é o Garcia de Orta, em Almada. Segundo o planeamento acordado entre os três hospitais da margem sul e a Direção Executiva do SNS, no fim de semana de 10 e 11 de agosto deveria ter sido este hospital a assegurar a resposta. Num primeiro momento, estava previsto que a urgência obstétrica nem sequer abrisse portas mas, depois de várias notícias a alertar para a falta de cobertura da península de Setúbal na área da Obstetrícia, o Garcia de Orta acabou por abrir aos doentes encaminhados pelo INEM.
“Neste fim de semana, depois de muitos esforços e contactos, conseguimos reforçar a escala, permitindo que a urgência ficasse aberta para INEM/CODU, permitindo dar resposta às verdadeiras urgências de Ginecologia e Obstetrícia”, explicou o hospital, em comunicado. Fica por esclarecer, no entanto, o que aconteceu em agosto para o hospital deixar de cumprir na totalidade o que estava acordado. Uma excessiva concentração de férias dos médicos neste período? A unidade hospitalar nega. “Os períodos de férias são organizados, com o devido planeamento, tendo em consideração as necessidades do Serviço, garantindo sempre o cumprimento de valores mínimos. Na prática, apenas podem estar de férias, em simultâneo, 25% das pessoas pertencentes a cada categoria num serviço”, adianta o Garcia de Orta.
Hospitais evitam entrar em “diálogo” com os médicos, com receio de saídas
“Quando olhamos para a Obstetrícia, vemos serviços com dimensões semelhantes mas alguns têm mais problemas que outros. Suspeito que possa também estar relacionado com a questão das férias”, diz Xavier Barreto. Mas se existem conselhos de administração que se limitam a aprovar, sem questionar, o que lhes é apresentado, também há hospitais em que os conselhos de administração analisam e discutem os mapas com os respetivos serviços, embora nem sempre sejam promovidas alterações.
“Muitos não querem promover essa mudança com receio de entrar em diálogo com o serviço“, diz Xavier Barreto. Isto é, muitas administrações têm receio de contrariar as pretensões dos médicos, com medo de verem os profissionais abandonar o hospital. Fonte da tutela sublinha que “a gestão das escalas e das férias faz parte da autonomia dos conselhos de administração” dos hospitais e que “o planeamento tem de ser feito de acordo com a disponibilidade das pessoas que ficam”. “Todos os verões há dificuldade na gestão das escalas e temos de organizar a resposta. Não há caos, há uma organização e uma resposta em rede”, afirma a mesma fonte.
Garantir os serviços a funcionar na plenitude ou arriscar desfalcar ainda mais as equipas? Um equilíbrio difícil, admite Xavier Barreto. “Tem de haver um equilíbrio, não pode ser 8 nem 80. Já ouvi pessoas a pedir para os hospitais não deixarem os médicos gozarem férias no verão, porque os hospitais não podem fechar. No dia em que decidirmos fazer isso, muitos vão abandonar o SNS. É um preço que não podemos pedir às pessoas que paguem. É impensável. Quem achar que pode gerir serviços de forma draconiana dizendo ‘os serviços não podem fechar, não vai ninguém de férias’ vai ficar sem serviço”, avisa o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, lembrando que muitos médicos têm filhos em idade escolar, cujas férias coincidem com os meses de verão.
Médicos apontam férias em família como determinantes. Ordem defende “bem-estar” dos profissionais
“Julho e agosto são os períodos em que as pessoas querem tirar mais férias. A maioria tem filhos em idade escolar. Claro que, nesta altura, há uma maior pressão dos médicos para gozarem férias e há mais profissionais de férias do que habitualmente”, sublinha Lèlita Santos, diretora do Serviço de Medicina Interna da Unidade Local de Saúde de Coimbra. “Muitas pessoas tiram férias por causa das famílias, porque é tradicionalmente uma altura de férias“, reforça Carlos Cortes. “É normal que queiram ir de férias em agosto, até por causa das férias escolares, mas as escalas devem estar garantidas. E isso cabe aos conselhos de administração das ULS”, insiste fonte da tutela.
“O bem estar dos médicos é importante, temos de proporcionar estes períodos para as pessoas descansarem e recuperarem para voltarem ao trabalho. Os profissionais não podem prescindir destes períodos de férias com a família e filhos”, diz o presidente da APAH. Para além disso, há médicos que têm relacionamentos com outros médicos, lembra. “Tudo isto complica a equação”, explica Xavier Barreto. Embora não exista uma determinação legal aplicável a todo o SNS, a maioria dos hospitais tem normas internas que limitam a um terço os profissionais que podem gozar férias em simultâneo.
“Respeitando essa percentagem, as pessoas devem poder tirar férias nas alturas que para elas são mais adequadas. É importante para a saúde e bem estar dos médicos”, defende Carlos Cortes. Embora sublinhe que esta é uma matéria de cariz sindical, o bastonário dos médicos rejeita liminarmente qualquer ideia para limitar o direito a férias dos médicos no período de verão.
“Não podemos querer tudo, obrigá-los a fazer mais horas do que aquelas que estão no seu contrato de trabalho e ainda colocar essa pressão. Os médicos são pessoas como as outras, pressão atrás de pressão só vai causar uma diminuição dos médicos no SNS. Se não damos condições para os locais de trabalho serem saudáveis e sem um ambiente de constante pressão, podemos conseguir resolver o problema nos próximos 15 dias mas o que vai acontecer é que os médicos veem o SNS cada vez menos apetecível. O caminho não é esse”, vinca Carlos Cortes.
Não são só urgências. Médicos têm de assegurar internamento e consultas
No terreno, os diretores de serviço também rejeitam qualquer medida nesse sentido e explicam que, de modo a não desguarnecer as urgências, é reduzido o apoio a outras valências asseguradas pelos médicos, como o internamento e as consultas. “O que acontece é que por vezes há menos apoio nas consultas e nas enfermarias, evidentemente que com alguma sobrecarga dos colegas que estão e que ficam com mais doentes para ver”, admite Lèlita Santos, da ULS de Coimbra.
Mais a norte, o serviço de Pediatria da Unidade Local de Saúde de Santo António reduz as camas de internamento no período de verão. “De 15 de junho a 15 de setembro, reduzimos 10 camas no internamento de pediatria, porque a procura diminui e também para permitirmos que as enfermeiras possam tirar férias”, explica Alberto Caldas Afonso, diretor do serviço.
O especialista lembra que os “profissionais têm direito a duas semanas no chamado período alto, que vai de junho a finais de setembro” e que essa é uma regra dos hospitais. O problema, critica, é quando isso não é cumprido e se concentram as férias em apenas dois meses. “Se deixarmos que as pessoas todas tirem duas semanas de férias apenas em dois meses, torna-se impossível”, realça Caldas Afonso, que explica que, enquanto responsável pelo serviço de Pediatria, dá liberdade aos médicos para se organizarem desde que “se assegurem os serviços”.
“Procuro que os médicos se entendam entre eles. Só podem ir de férias um terço dos elementos. Só podem ir três ao mesmo tempo mas imaginemos que um quarto quer ir também. Desde que garanta que existe alguém a substituí-lo, tudo bem. Total liberdade com total responsabilidade. E as pessoas organizam-se entre elas, nunca houve problemas”, garante.
Mas enquanto a norte a resposta é assegurada dentro dos mínimos aceitáveis porque, na generalidade dos casos, as equipas não têm uma elevada carência de médicos, a sul a situação é diferente. No São Francisco Xavier, as dificuldades de resposta na urgência de Obstetrícia que se sentem no verão (e que levam, em grandes períodos, a unidade de saúde a só receber grávidas encaminhadas pelo INEM), também se estendem a outros períodos do ano. “Eu tenho onze médicos, e mais de metade tem mais de 55 anos. Não podemos fazer muito mais”, lamenta Fernando Cirurgião, diretor do serviço, acrescentando que a falta de obstetras tem vindo a agudizar-se.
Obstetrícia do SFX funciona com apenas onze médicos (que têm dezenas de dias de férias por gozar)
“Sou recordista, tenho 230 dias de férias para gozar. A maior parte dos médicos tem mais de 50 dias por gozar. Claro que, nesta altura, basta que um médico não esteja para fazer diferença. É quase à vez que se gozam as férias“, explica o médico, criticando outros hospitais da região por permitirem que as equipas se ausentem nalguns fins de semana, como aconteceu em junho, para irem a congressos médicos. “É impensável eu autorizar que toda a equipa vá a um congresso”, diz.
Com uma equipa reduzida aos mínimos, a urgência obstétrica do São Francisco Xavier deixou de conseguir estar de “porta aberta” ao exterior, e oscila entre os encerramentos totais e o funcionamento condicionado às grávidas encaminhadas pelo INEM e por outros hospitais. “Ontem estive a fazer 24 horas de urgência e tivemos oito partos. Estávamos dois médicos (eu e a outra colega) e a maior parte foi cesarianas. Torna difícil que haja atendimento para a rua”, explica Fernando Cirurgião, salientando que a diminuta equipa tem ainda de garantir consultas e apoio ao internamento de Obstetrícia.
Embora os especialistas ouvidos pelo Observador admitam que a excessiva concentração de férias nos meses de verão possa continuar ter um impacto negativo nos serviços, como já tinha sido identificado pela IGAS em 2022, o problema estrutural e principal que explica o agudizar dos encerramentos de urgências hospitalares é outro: a carência de médicos, que vem em crescendo. “Nalguns casos, a questão das férias tem impacto na organização das urgências. Mas não é a causa principal, que é outra: um quadro de recursos humanos muito abaixo do que deveríamos ter, particularmente em algumas regiões e especialidades”, diz o presidente da Associação de Administradores Hospitalares.
“Dantes os médicos não tiravam férias? Sempre tiraram. Só que hoje há mais falta de médicos no SNS e qualquer aumento da afluência sobre os serviços causa mais dificuldades”, reforça o bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes.
Falta de médicos e excesso de tarefeiros também explicam problemas nas urgências
E há ainda um outro fator que pode afetar o funcionamento das urgências, ainda que os serviços garantam que as férias dos médicos do quadro fiquem bem distribuídas: os tarefeiros. Muitos serviços de urgência dependem de médicos prestadores de serviços (sem vínculo com os hospitais) para se manterem abertos. Desta forma, ficam dependentes da disponibilidade destes profissionais para poderem assegurar os cuidados à população. “Esses médicos não têm obrigatoriedades. Dá-lhes jeito irem à segunda e à terça, vão. Não lhes dá jeito à sexta e ao sábado, não vão. E têm uma remuneração muito superior à dos médicos da própria instituição, o que é altamente atrativo”, explica Alberto Caldas Afonso, sublinhando que os hospitais “deixam de controlar” o funcionamento dos serviços.
No caso da Obstetrícia, e atendendo a esta imprevisibilidade, e também à maior indisponibilidade dos médicos do quadro nos períodos de férias, a Ordem dos Médicos permite que os hospitais trabalhem com equipas abaixo dos número de elementos mínimos exigidos. “Há um plano de contingência, que foi feito pela Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos, para os casos em que não existam os recursos humanos necessários”, lembra Carlos Cortes, explicando que “é pacífica a aceitação de números inferiores aos recomendados”. “Isso foi feito o ano passado, e a Ordem dos Médicos não se opôs”.
O bastonário adianta que os números mínimos para a constituição das equipas vão ser reavaliados para todas as especialidades, uma vez que, em muitos casos, os critérios não são alterados há vários anos — no caso da Obstetrícia, desde 2018. Carlos Cortes diz que já foi questionado pelo diretor-executivo do SNS, António Gandra D’Almeida, relativamente a esta questão e que já deu instruções ao colégio de Obstetrícia da OM para emitir um parecer sobre o assunto.
Ordem permite equipas abaixo dos mínimos
A revisão em baixa do número de médicos em permanência exigidos nas urgências obstétricas (e que variam entre os dois e os seis, dependendo do nível de cuidados prestados e do tamanho do hospital) poderia ser importante para permitir que algumas urgências permanecessem abertas. Embora para hospitais com grandes carências a mudança não venha a fazer muita diferença. “Não ajuda muito, já estamos a trabalhar nos mínimos”, lamenta, resignado, Fernando Cirurgião.
A verdade é que a sangria de especialistas de Ginecologia/Obstetrícia para hospitais privados não para. De acordo com os últimos dados, do final de 2023, estavam inscritos na Ordem dos Médicos 191o médicos especialistas. No entanto, segundo dados enviados ao Observador pela Administração Central do Sistema de Saúde, apenas 760 trabalhavam no SNS no final de junho, isto é, cerca de 40%. O envelhecimento acentuado dos especialistas é outro dado que salta à vista. Mais de metade dos médicos tem mais de 60 anos.