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Em meados de setembro, Manfred Weber, o democrata-cristão alemão que esta quarta-feira foi reeleito líder da bancada do Partido Popular Europeu (PPE), referia-se ao então chanceler austríaco Sebastian Kurz como um modelo a seguir, considerando-o o futuro dos conservadores europeus. Menos de um mês depois, Kurz demitia-se por suspeitas de corrupção e suborno, enquanto na Alemanha a coligação de 16 anos entre a União Democrata-Cristã (CDU) e a União Social-Cristã (CSU) está praticamente afastada do poder. De repente, o centro-direita europeu encontra-se perante uma crise que se desenrola, ao mesmo tempo, em Viena e Berlim.
Essa crise, com consequências e dimensões ainda incertas, tornou-se evidente nas últimas três semanas. É verdade que, na Áustria, o Partido Popular Austríaco (ÖVP), com a tomada de posse do novo chanceler, Alexander Schallenberg, continua a liderar o executivo. Mas, por outro lado, a saída inglória de Sebastian Kurz — que, conforme escreve o El País, era conhecido como o “menino prodígio”, o homem que chegou ao poder com apenas 31 de anos e era visto por alguns como um futuro líder do conservadorismo europeu — deitou por terra muitas expectativas.
Já na Alemanha, apesar de ainda estarem a decorrer as negociações para a formação do próximo governo, parece praticamente certo que os democratas-cristãos vão mesmo para a oposição, o que coincide com a saída de cena de AngelaMerkel, considerada a figura mais emblemática do centro-direita europeu.
O que poderia ser visto como um problema exclusivo de dois países rapidamente levantou questões sobre o futuro dos conservadores e democratas-cristãos na Europa. Em 2019, o PPE foi o grande vencedor das eleições europeias, e a Comissão Europeia é liderada por uma conservadora — Ursula von der Leyen, da CDU. Contudo, olhando para o Conselho Europeu, onde estão representados os chefes de Estado ou de governo dos Estados-membros, os partidos do PPE têm nove dos 27 lugares, com a agravante de que em breve poderão passar a ser oito, caso o social-democrata Olaf Scholz se torne chanceler alemão e relegue a CDU para a oposição.
“O problema ficou agora exposto, mas já tem algum tempo”, nota ao Observador Henrique Burnay, consultor em assuntos europeus, comentando a demissão de Sebastian Kurz e a derrota da CDU na Alemanha. “Subitamente, o PPE, que foi o partido que saiu em primeiro lugar das eleições europeias, que tinha o maior número de chefes de Estado e de governo no Conselho Europeu até há bem pouco tempo, apenas lidera governos em alguns países da Europa Central e de Leste.”
A “pulverização” do sistema partidário
Olhando para o mapa, além dos já referidos casos da Áustria e da Alemanha, os partidos democratas-cristãos e conservadores chefiam executivos na Grécia, Croácia, Chipre, Letónia, Roménia, Eslovénia e Eslováquia. Apesar de o PPE liderar mais governos do que os liberais (seis) e do que os sociais-democratas (outros seis), os maiores ou mais prósperos países da União Europeia — sejam eles Itália, França, Espanha, Países Baixos ou os países nórdicos (Finlândia, Suécia e Dinamarca) — têm outras cores políticas. E isso deixa o PPE numa situação complicada até às próximas eleições europeias, agendadas para 2024, além de levantar questões sobre o rumo desta família política.
Devido às singularidades de cada país e às particularidades de cada um dos partidos democratas-cristãos e conservadores, é praticamente impossível encontrar apenas uma explicação para a perda de influência destas forças políticas, sejam elas a CDU, na Alemanha, Os Republicanos, na França, ou o Força Itália, de Silvio Berlusconi, em Itália. No entanto, parece haver um denominador comum nestes países: a fragmentação do sistema partidário.
Em Itália, os democratas cristãos governaram quase meio século após o fim da II Guerra Mundial, tendo Silvio Berlusconi (que fundou o Força Itália) desempenhado o cargo de primeiro-ministro por quatro vezes, acabando por perder relevância à medida que outras forças de direita mais radical e de extrema-direita foram substituindo a direita mais tradicional. Neste momento, o governo é chefiado pelo centrista e tecnocrata Mario Draghi, com o apoio de partidos de todo o espectro político, sendo que o Força Itália não vai além dos 7% nas sondagens, enquanto o Partido Democrático, de centro-esquerda, vai conseguindo recuperar e está taco a taco, na casa dos 20%, com os dois partidos de extrema-direita: os Irmãos de Itália e a Liga.
Já em França, onde cinco das oito presidências desde o início da Quinta República (1958) foram conservadoras, o centro-direita tradicional não vence eleições nacionais desde 2007, quando Nicolas Sarkozy — condenado recentemente por crimes de corrupção — foi eleito Presidente. Com a chegada de Emmanuel Macron e do seu movimento Em Marcha, os socialistas praticamente desapareceram do mapa e os Republicanos continuam sem rumo definido, ainda a escolher um candidato — Xavier Bertrand e Michel Barnier são os favoritos — a concorrer ao Eliseu, com a possibilidade de ser novamente a extrema-direita a disputar a segunda volta com Macron.
Na Alemanha, o sistema bipartidário parece ter sido definitivamente posto de lado. Antes, a CDU e o Partido Social Democrata alemão (SPD) conseguiam, em conjunto, mais de 70% dos votos, como acontece em 2005. Mas, nas últimas legislativas, somando os votos em cada um dos partidos, democratas-cristãos e sociais-democratas não foram além dos 49%. A Alternativa para a Alemanha (AfD, de extrema-direita), o Partido Liberal Democrático e os Verdes, todos eles acima dos 10%, puseram definitivamente fim ao domínio dos dois maiores partidos e agitaram o sistema político alemão.
“A fragmentação do sistema partidário é a tendência mais comum e a única que se consegue identificar nas várias geografias”, sublinha o analista Henrique Burnay. “Não é uma tendência social-democratizante, não é uma tendência de castigar o centro-direita democrata cristão e conservador, é uma tendência de pulverização do sistema partidário”, acrescenta.
A (relativa) ascensão dos sociais-democratas e os problemas da “personalização”
A vitória do SPD e de Olaf Scholz, cerca de dois anos depois de os sociais-democratas regressarem ao poder na Dinamarca — juntando-se a outros governos europeus de centro-esquerda, como é o caso de Portugal e Espanha —, veio animar a onda vermelha na Europa, isto depois de um longo marasmo, visível sobretudo após a crise de 2008.
Contudo, as últimas vitórias sociais-democratas, seja nos países nórdicos ou na Alemanha, não foram esmagadoras e não foram alcançadas com aumentos significativos de votação. Nalguns casos, aconteceu precisamente o contrário. Na Dinamarca, por exemplo, o Partido Social Democrata venceu as eleições em 2019 com 25,9% dos votos quando, quatro anos antes, tinha obtido 26,3% — o que na altura não lhe permitiu formar governo, tarefa que coube aos liberais.
Já na Alemanha, o SPD venceu as eleições com o seu terceiero pior resultado de sempre, e o vice-chanceler e ministro das Finanças Olaf Scholz parece ter saído vencedor sobretudo por ser o candidato da continuidade, considerado muito semelhante a Merkel. Declarar o fim dos partidos democratas-cristãos e o renascimento dos sociais-democratas parece, portanto, prematuro.
“Nunca partilhei da opinião de que os partidos social-democratas não voltariam, como alguns previram, e não acho que se possa agora dizer o mesmo sobre os partidos conservadores. Mas certamente há uma crise”, diz ao Observador o analista político austríaco Thomas Hofer, da European Association of Political Consultants, identificando um dos problemas que o centro-direita europeu enfrenta neste momento: a “personalização da política”.
Nesse aspeto, importa regressar a Sebastian Kurz, que em 2017, quando tinha apenas 31 anos, chegou a chanceler da Áustria, destacando-se pela sua juventude e carisma, apresentando-se igualmente com um discurso mais musculado relativamente à imigração, um pouco em linha com o que era defendido por forças políticas mais próximas da extrema-direita. Nesse ano, de resto, ao tornar-se chanceler, Kurz abriu as portas do Executivo ao Partido da Liberdade (FPÖ), o que fez com que, à época, a Áustria se tornasse no único país da União Europeia com a extrema-direita representada no executivo. Dois anos depois, o governo cairia, Kurz vencia novamente as eleições (reforçando a votação) e coligava-se com os Verdes.
Nestes últimos quatro anos, Sebastian Kurz tornou-se uma referência para os conservadores que se situam à direita da ainda chanceler alemã Angela Merkel. Daí que muitos vissem nesta figura um potencial líder ou uma referência para os partidos que compõem o PPE. Ao ser investigado pela justiça austríaca por suspeitas de corrupção, a queda de Kurz tem impacto a nível interno, mas não só.
“Com [a saída de] Kurtz, o modelo de definição de um possível novo caminho para os conservadores foi desacreditado internacionalmente”, salienta Thomas Hofer. “Kurtz foi visto como o anti-Merkel e também foi celebrado em alguns meios de comunicação internacionais. Agora, isso certamente acabou”, acrescenta o analista.
Sem Kurz ou Merkel, centro-direita procura nova liderança
Sem Kurtz e sem Merkel, o centro-direita europeu parece viver um sentimento de orfandade. Manfred Weber já manifestou vontade de concorrer à liderança do PPE — que neste momento é chefiado pelo ex-primeiro-ministro e líder da oposição polaco Donald Tusk, que pretende abandonar o cargo para se focar na política interna da Polónia, em guerra aberta com Bruxelas. Mas, além de não ser um político consensual, dificilmente um líder de uma família política por si só conseguiria dar novo gás aos conservadores.
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Nesse sentido, outras figuras em ascensão do centro-direita europeu começam a ganhar atenção. Desde logo, o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, que conseguiu uma recuperação impressionante para o Nova Democracia, mas, ao liderar um dos países com uma das economias mais frágeis da União Europeia, perde alguma força. Os olhos do centro-direita europeu viram-se também para França, na expectativa do que possa acontecer nas eleições do próximo ano, mas também para Espanha, onde o Partido Popular (PP), impulsionado por uma vitória de Isabel Díaz Ayuso em Madrid, tem liderado, embora por uma curta margem, as sondagens, estando por isso na expectativa de vencer hipotéticas eleições antecipadas.
O ainda presidente do PPE, Donald Tusk, de resto, dirigiu-se diretamente a Pablo Casado — que considera ser a “esperança da política europeia” — no final de setembro, numa conferência em Espanha, e deixou bem claro as expectativas que tem relativamente ao líder do PP. “Ganha as próximas eleições, pelo bem do nosso partido, pelo bem de Espanha e pelo bem da Europa”, disse Tusk.
As legislativas em Espanha, contudo, só estão previstas para 2023, embora a estabilidade da coligação do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) com o Unidas Podemos, que depende do apoio de partidos independentistas, esteja sempre vulnerável a cenários de instabilidade.
Eleições antecipadas e uma vitória conservadora poderiam, por isso, mudar as perspetivas para o centro-direita europeu. “O que estamos a viver poderia mudar de um dia para o outro se Pablo Casado assumisse protagonismo”, admite o consultor Henrique Burnay. O politólogo espanhol José Ignacio Torreblanca, por seu turno, faz uma análise diferente.
“É verdade que com a saída de Merkel não há uma liderança óbvia no centro-direita europeu, mas acho que Pablo Casado ainda está muito longe de ser esse líder”, diz ao Observador o diretor do gabinete espanhol do think tank European Council on Foreign Relations (ECFR), considerando que, mesmo que o PP vencesse hipotéticas eleições, “seria muito difícil explicar lá fora” um governo com o apoio do Vox, de extrema-direita, que, a confirmar-se o que dizem as sondagens, seria a única hipótese para a formação de um governo maioritário dos conservadores, uma vez que o Ciudadanos praticamente desaparece do mapa.
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Ainda assim, José Ignacio Torreblanca considera que é “prematuro” falar numa crise profunda do centro-direita europeu, uma vez que ainda é cedo para perceber se a derrota da CDU e a saída de Merkel, na Alemanha, ou a queda de Sebastian Kurz, na Áustria, são fenómenos “pontuais ou com impacto a longo prazo”. “Por enquanto, isso faz de Ursula von der Leyen, alemã e presidente da Comissão Europeia, a única líder do centro-direita”, remata.