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A Conferência de Wannsee ganhou lugar no imaginário de quem se interessa pela história do século XX como o momento em que o estado nazi tomou importantes decisões visando a eliminação dos judeus nos territórios sob o domínio do III Reich e há mesmo quem tenha formado a ideia de que foi ela o ponto de partida para o Holocausto.
O historiador alemão Peter Longerich (n.1955) é um reputado especialista na história da República de Weimar e do III Reich e, em particular, do Holocausto; é autor de biografias de Adolf Hitler, Joseph Goebbels e Heinrich Himmler (ver Himmler: Um homem bom com má imprensa?), de histórias das SA (Die braunen Bataillone) e do anti-semitismo na Alemanha (Antisemitismus: Eine deutsche Geschichte) e de vários livros sobre o Holocausto, pelo que dificilmente se encontrará alguém mais abalizado para dissecar e explanar a Conferência de Wannsee e o seu enquadramento e implicações. Foi isso que fez em Wannseekonferenz: Der Weg zur Endlösung (2016), livro que chegou a Portugal pela mão da Vogais, em tradução de Pedro Carvalho e Guerra, com o título O caminho para a Solução Final: A Conferência de Wannsee e o início do Holocausto.
Uma villa com vista para o lago
A famigerada conferência teve lugar a 20 de Janeiro de 1942 no n.º 56-58 da Avenida Am Grossen Wannsee, uma imponente villa num subúrbio chique de Berlim, junto ao Grosser Wannsee, um lago formado a partir de um braço do Rio Havel. A área estava associada, desde o início do século XX ao lazer e à a elite alemã, sendo dotada de uma extensa praia de areia (onde era frequente a prática do nudismo) e instalações para desportos náuticos e sendo salpicada por casas de campo e chalets, quase sempre luxuosos e maioritariamente construídos por berlinenses abastados que ali encontravam um local de repouso plácido e convenientemente próximo dos seus afazeres e da vida social na capital.
Entre essas casas de campo está a Villa Marlier, erguida em 1914-15 pelo empresário farmacêutico Ernest Marlier, que fizera fortuna vendendo mistelas que estavam longe de produzir os benefícios para a saúde que a publicidade apregoava, os fármacos de Marlier raramente continham princípios activos e limitavam-se a combinar produtos banais e (relativamente) inócuos, o que levou as autoridades de saúde alemãs a interditar a venda de alguns deles. A sumptuosa Villa Marlier foi desenhada pelo arquitecto Paul Baumgarten, que já tinha experiência na concepção de mansões para a burguesia alemã e viria, após adesão ao NSDAP (Partido Nazi), a projectar teatros e outros edifícios públicos para o III Reich e a ser condecorado, em 1944, com a Medalha Goethe para a Arte e Ciência, por Hitler, que muito apreciava o seu estilo retrógrado, sóbrio e imponente.
Os imbróglios de Marlier com as autoridades de saúde contribuíram para agravar os seus problemas financeiros, forçando-o, em 1921, a vender a sua villa a Friedrich Minoux, que já era então um próspero homem de negócios e viria, a partir de 1923, a construir um império empresarial, distribuído pelos ramos do petróleo, carvão e geração e distribuição de electricidade. Em 1938, beneficiando da perseguição aos judeus instalada na Alemanha após a subida de Hitler ao poder, Minoux também adquiriu, por uma ínfima fracção do seu real valor, uma empresa de fabrico de pasta de papel e papel que tinha proprietários judeus. Apesar das suas simpatias pela extrema-direita e do seu financiamento ao NSDAP, em Novembro de 1940 Minoux não escapou a ser condenado a cinco anos de prisão e a pesadas multas e indemnizações devido a uma fraude de colossais proporções envolvendo a empresa de gás de Berlim. Foi a partir da prisão que Minoux negociou a venda da Villa Marlier à Stiftung Nordhav, uma fundação criada em 1939 por Reinhard Heydrich, “para estabelecer e manter centros de recriação para membros das SS e respectivas famílias” (Longerich) e, é pertinente realçá-lo, para uso próprio de Heydrich, que apreciava viver como um grande senhor.
Entre 1939 e a queda doo II Reich, a Villa Marlier foi usada regularmente para receber altas figuras dos ramos regionais das SS e da SD (Sicherheitsdienst, a divisão de informação militar das SS e do NSDAP) que se deslocavam a Berlim em trabalho ou lazer e teria hoje caído no olvido se não fosse a conferência convocada por Heydrich, que, em 31 de Julho de 1941, fora formalmente incumbido por Göring de levar a cabo a Solução Final.
O destino a dar aos judeus
Apesar de o povo germânico ter reputação de primar pelo planeamento, pela organização, pela disciplina e pelo rigor, a governação do III Reich não se pautou por estas qualidades, o que não é surpreendente, dado que elas também não estavam presentes no homem que o criou e foi seu líder incontestado durante os seus 12 anos de existência. É certo que a sanha anti-semita de Hitler era feroz, inabalável e foi veementemente expressa por escrito, logo em 1925, em Mein Kampf, onde podem encontrar-se trechos como “[O judeu] prossegue o seu caminho nefasto, até que se lhe oponha uma outra força que, em luta gigantesca, reenvie para Lúcifer o que pretende assaltar o céu” ou “A chefia do judeu na questão social manter-se-á até ao dia em que uma campanha enorme em prol do esclarecimento das massas populares se exerça […] ou até que o Estado aniquile tanto o judeu como a sua obra” (ver Mein Kampf: Quem tem medo deste best-seller?).
Porém, uma coisa são abstractas declarações de princípio, mesmo que coléricas e estridentes, outra bem diversa é a sua concretização e a verdade é que o destino preciso a dar aos judeus – os da Alemanha e Áustria e os dos territórios que o III Reich foi conquistando – foi passando por sucessivas mutações no espírito de Hitler. É sintomático da volubilidade, indisciplina e escassa conexão com a realidade típicas de Hitler que, em Junho de 1940 após a derrota da França e antes de o extermínio em massa de judeus ter começado, o Führer desse aval ao Madagaskar Projekt, proposto por Franz Rademacher (chefe de secção para os assuntos judaicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão) e que consistia em esvaziar a Europa de judeus e deportá-los para Madagáscar, então uma colónia francesa, onde seria instaurado um regime concentracionário gerido pelas SS. Na usual névoa de indefinição e incongruência que caracterizou muitos dos planos e políticas nazis, não se percebe se os judeus deportados para Madagáscar deveriam servir como reféns para dissuadir os EUA de tomarem medidas contra a Alemanha (supostamente atiçados pelos judeus americanos), ou se se pretendia que os judeus acabassem por sucumbir aos maus-tratos, às condições de vida insalubres e às doenças tropicais. Este plano previa a deportação de um milhão de judeus por ano durante quatro anos, não contabilizando, portanto, os 3.3 milhões de judeus que viviam na parte ocidental da URSS, já que a invasão deste país ainda não fora decidida à data (embora Hitler também tivesse deixado indicações de pretender fazê-lo em Mein Kampf).
[Pode ouvir aqui o quarto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio e aqui o terceiro episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África]
O Madagaskar Projekt era obviamente inviável num contexto em que os mares eram dominados pela Grã-Bretanha, pelo que requeria que esta fosse derrotada a breve trecho e a sua vasta frota mercante fosse colocada ao serviço da deportação. Ora, a Grã-Bretanha não só não se rendeu após a capitulação da França, como a Luftwaffe foi incapaz de enfraquecer a sua resistência através de bombardeamentos maciços, pelo que o plano de invasão da Grã-Bretanha (Operação Leão-Marinho) acabou por ser adiado indefinidamente em Setembro de 1940.
Perante o impasse frente à Grã-Bretanha, a atenção de Hitler desviou-se para a invasão da URSS, que foi assumida formalmente como prioridade através da Directiva 21, de 18 de Dezembro de 1940; à medida que os planos da Operação Barbarossa iam sendo detalhados e revistos, também começou a ganhar forma a alternativa de, uma vez derrotada a URSS, deportar os judeus da Europa para os confins da Sibéria, onde pereceriam em massa devido ao clima agreste e à fome.
Haveria Holocausto sem a Conferência de Wannsee?
A 29 de Novembro de 1941, quando Heydrich enviou os primeiros convites para a conferência, o extermínio em massa de judeus nos territórios dominados pelo III Reich já estava em curso, ainda que de forma errática e desconexa, uma vez que nem sequer Hitler estava certo quanto ao método, amplitude e cronologia que iria assumir a sua difusa ameaça de aniquilação.
A partir do final de 1940 os alemães começaram, como medida provisória, a concentrar os judeus polacos em guetos no Governo Geral, ou seja a parte central da Polónia (no Outono de 1939, a parte ocidental fora incorporado no Reich, a parte oriental fora ocupada pela URSS); estes guetos deveriam ser uma solução transitória, antes de uma deportação mais para leste, assim que a URSS fosse derrotada ou empurrada para lá dos Urais. Porém, o desencadear da Operação Barbarossa, em Junho de 1941, gerou mais uma alteração na política judaica do III Reich: o plano de invasão nazi não só previa a morte pela fome de milhões de soviéticos, de forma a criar espaço para a colonização alemã, como fazia do “bolchevismo judaico” o alvo de um implacável plano de extermínio, que foi colocado sob a responsabilidade de Heinrich Himmler e executado por várias forças especiais, nomeadamente os Einsatzgruppen, que seguiam na peugada das tropas regulares da Wehrmacht. Resultou daqui que “o número de judeus civis mortos [em território soviético ocupado] até ao final de 1941 ascendeu, muito provavelmente, a pelo menos 500.000”.
Enquanto os judeus soviéticos eram vítimas de fuzilamentos em massa, no Outono de 1941, os judeus expulsos do território do Reich para o Governo-Geral começaram a ser eliminados de forma “experimental”, recorrendo, consoante o local, a camiões cujos gases de escape eram canalizados para o compartimento de carga onde se amontoavam as vítimas, ou a câmaras de gás construídas empregando Zyklon B, um gás usado em fumigações, ou ao fuzilamento em massa. Embora todo este processo decorresse de forma caótica e fosse perturbado por ordens contraditórias e conflitos de competências, é inquestionável que à data da Conferência de Wannsee o Holocausto já estava em marcha.
Em Holocausto: Uma nova história, Laurence Rees desvaloriza a importância usualmente atribuída à Conferência de Wannsee, defendendo que, “longe de ser a reunião mais significativa da história do Holocausto […], foi um fórum para funcionários de segunda linha discutirem modos de implementar os desejos do seu senhor. Nenhuma das figuras-chave assistiu à reunião. Nem Himmler, nem Frank [Hans Frank, jurista-chefe da administração do Governo-Geral], nem Goebbels – nem o próprio Hitler. As decisões vitais sobre o destino dos judeus tinham sido tomadas nas semanas e meses antes da conferência”, decisões essas “que foram acumulando-se, uma atrás da outra, até ao ponto em que quem estava à mesa em Wannsee sentisse que o extermínio dos judeus era inevitável” (ver “Como serias tu em Auschwitz?”).
Longerich comunga da ideia de que o Holocausto não foi meticulosamente planeado, resultando antes de “um processo de tomada de decisões no qual Hitler […], agindo em colaboração estreita com outras partes da estrutura de poder, desenvolveu gradualmente o que fora anteriormente uma vaga intenção de aniquilar os judeus”. Porém, Longerich vê na Conferência de Wannsee um momento crucial, uma vez que revela “como o impulso para destruir com motivações ideológicas do sistema nazi foi condensado nas ordens da mais alta autoridade do regime, sob a forma de actuação do Estado”. Para Longerich, “a extrema importância do protocolo da Conferência de Wannsee não assenta apenas no facto de exibir o gritante cinismo e desdém pela humanidade por parte dos altos representantes do regime nazi. O protocolo é único porque, mais do que qualquer outro documento, demonstra com total clareza o processo de tomada de decisão que levou ao homicídio dos judeus europeus”, uma vez que as restantes decisões que conduziram ao Holocausto (e o mantiveram em curso até aos derradeiros dias de guerra), em que estiveram envolvidas, como figuras capitais, Hitler, Himmler e Göring, decorreram informalmente e sem deixar “rasto de papel”.
É curioso que Hitler, que proclamou repetidas vezes em público que a sobrevivência da Alemanha e da civilização exigia o extermínio dos judeus e sempre manifestou confiança cega na invencibilidade da Alemanha (mesmo mais tarde, quanto a guerra já corria inequivocamente a favor dos Aliados), tenha tido o cuidado de não assinar documento algum que o comprometesse com o Holocausto. Certamente que, caso Hitler não se tivesse suicidado e tivesse sido capturado e levado a julgamento em Nuremberga, a ausência de provas documentais não impediria o tribunal de dá-lo como responsável último pelo Holocausto (e por muitos outros crimes contra a humanidade cometidos em nome do III Reich). Mas dir-se-ia que, apesar de toda a sua fúria anti-semita, das suas proclamações bombásticas e histriónicas e do seu profundo desprezo pelos valores humanistas, Hitler se esforçou por não ficar formalmente associado – perante o povo alemão, o mundo e a posteridade – à mais tenebrosa das muitas infâmias que promoveu. Mesmo as criaturas mais narcísicas e destituídas de escrúpulos e empatia têm uma noção residual do que são os limites da decência aceites pela sociedade e, embora não tenham pejo em transpô-los, fingem respeitá-los – o que não atenua os seus crimes, apenas lhes soma cinismo, calculismo e hipocrisia.
O verdadeiro motivo para a conferência
Segundo Longerich, a “intenção de Heydrich ao convocar a reunião [em Wannsee] era fortalecer a sua autoridade como o homem responsável pela preparação da Solução Final”, remetendo Himmler para segundo plano e retomando a posição proeminente que lhe fora conferida por Göring a 31 de Julho de 1941. Apesar da sua influência junto de Hitler, Heydrich era, formalmente, subordinado de Himmler, pelo que foi progressivamente forçado a fazer concessões, de forma que o plano que apresentou em Wannsee já era um compromisso entre a sua ideia original de que “a Solução Final deveria ocorrer nos territórios soviéticos ocupados e [consistiria] numa combinação de trabalhos forçados que envolviam o esgotamento físico para lá de qualquer capacidade humana e assassínios planeados” (Longerich) e a realidade, posta em prática por Himmler, da deportação e aniquilação dos judeus europeus em campos de extermínio no Governo-Geral.
A lista de personalidades convocadas por Heydrich para Wannsee era, como aponta Rees na citação acima, efectivamente constituída por “funcionários de segunda linha” e omitia todas as figuras relevantes que estavam, à data, envolvidas directamente em actos de deportação e extermínio: “nenhum dos altos líderes das SS e da Polícia foi convidado para assistir; no entanto, estes eram os representantes de Himmler no terreno […], que, sob as ordens do Reichsführer SS tinham desempenhado um papel decisivo nos meses anteriores nos homicídios em massa na URSS, nas primeiras deportações e nas medidas para alargar a Solução Final ao território polaco”. A reunião de Wannsee pode ser vista como uma manobra palaciana de Heydrich para reassumir a liderança do processo de extermínio, que estava ameaçada pelo facto de “Himmler e os seus colegas há muito [terem] tornado os seus planos obsoletos graças às suas intervenções activas” – iniciativas que Heydrich “na conferência, descreveu depreciativamente como ‘soluções provisórias’” (Longerich).
Pode parecer de uma monstruosa inumanidade que altos funcionários do III Reich se digladiassem pelo “privilégio” de conduzir a aniquilação dos judeus, mas era esta a lógica maligna inerente ao regime criado por Hitler, cujas convicções inabaláveis e cujo poder absoluto coexistiam com uma enorme indisciplina mental e uma inclinação perversa para colocar diferentes instituições e departamentos no Estado nacional-socialista em competição entre si para dar cumprimento aos seus desejos. O historiador Ian Kershaw, uma autoridade na história do III Reich e autor de uma aclamada biografia de Hitler, explanou esta abordagem à governação no artigo “Working towards the Führer: Reflections on the nature of the Hitler dictatorship” (in Contemporary European History vol.2 n.º2, Julho de 1993): “Indivíduos em busca de ganhos materiais através da progressão na carreira na burocracia do partido ou do Estado, o pequeno empresário que visava afastar um rival denegrindo as suas credenciais ‘arianas’, ou cidadãos comuns ajustando contas com vizinhos através da sua denúncia à Gestapo, estavam, todos eles, de alguma forma, a ‘trabalhar para o Führer’ […] Periodicamente, Hitler dava o tom da barbárie, mediante discursos públicos inflamados de ódio que funcionavam como luz verde para actos discriminatórios contra os judeus, ou em palestras à porta fechada para líderes militares e altos funcionários nazis […] Nunca houve falta de colaboradores voluntariosos – extravasando largamente o círculo dos activistas do partido – prontos para ‘trabalhar para o Führer’ e concretizar os seus desejos”.
15 burocratas à volta de uma mesa
Longerich considera que, com a conferência de Wannsee, Heydrich pretendia, além de assumir as rédeas da Solução Final, “tornar os mais destacados representantes da burocracia do governo oficialmente cúmplices, por assim dizer, e conjuntamente responsáveis”. Os burocratas não deram mostras de qualquer sobressalto moral ou hesitação ao serem convertidos formalmente em cúmplices de um dos mais iníquos planos de sempre. Adolf Eichmann, um dos presentes, recordaria que Heydrich ficou muito agradado com a reunião, uma vez que previra encontrar resistência pela parte dos burocratas às acções desumanas que lhes eram pedidas, e, em vez disso, encontrou uma atmosfera de anuência e de zelo em cumprir a sua missão.
É muito instrutivo examinar os perfis dos 15 altos funcionários do III Reich presentes em Wannsee: sete deles eram oficiais das SS, com patentes entre major e tenente-general (o próprio Heydrich); nos funcionários com cargos civis havia quatro secretários de Estado, dois secretários de Estado adjuntos e um secretário da Chancelaria do Reich. Longerich destaca que entre eles contavam-se “dez licenciados, nove dos quais advogados, oito deles com um doutoramento”. A constituição da equipa de mangas-de-alpaca que, na retaguarda, concebeu e coordenou a logística macabra do processo de extermínio é muito similar, na sua natureza, à das lideranças das unidades especiais que, por essa altura, executavam efectivamente o genocídio judeu em território soviético: “três dos Einsatzgruppen eram comandados por doutorados – um deles, Otto Rasch, com um duplo doutoramento – e entre os 17 líderes das sub-unidades do Einsatzgruppe A, havia nove doutorados” (ver capítulo “Os Einsatzgruppen” em SS: O diabo veste de negro). Algo de similar ocorria entre as chefias de outra instituição com papel primordial no Holocausto, bem como na repressão brutal de qualquer sinal de dissensão, no Reich e na Europa ocupada: a Gestapo. Nesta, “em 1938, 95% dos chefes regionais […] tinham passado o seu exame de acesso à universidade […], 87% eram licenciados em Direito e quase metade eram doutorados. As altas patentes da Gestapo pareciam-se mais com uma sala de docentes de uma universidade do que com uma esquadra de polícia” (ver Gestapo: Bestas sanguinárias ou burocratas conscienciosos?).
Em Koba, o Terrível (2002), uma denúncia torrencial (e algo maníaca) das atrocidades praticadas às ordens de Stalin, Martin Amis comparava assim as ditaduras nazi e soviética: “O marxismo foi o produto dos intelectuais das classes médias; o nazismo foi pérfido, tablóide, reles. O marxismo fez exigências totalmente irrealistas à natureza humana; o nazismo constituiu um apelo directo a um cérebro de réptil”. Como acontece noutros trechos de Koba, o Terrível, Amis equivoca-se: sim, o nazismo foi tablóide e reles e apelava à componente crocodiliana do cérebro humano, mas contou com a adesão reflectida (mas nem por isso menos entusiástica) das classes média-alta e alta do mundo austro-germânico e teve entre os seus líderes muitos membros da elite intelectual. É possível provir de “boas famílias”, saber exprimir-se de forma articulada, possuir estudos universitários, saber usar correctamente toda a panóplia de talheres de mesa e como segurar com elegância uma flute de champanhe, ter tido lições de piano (Heydrich era um violinista competente), frequentar recitais de música de câmara, citar versos de Goethe de memória e, ao mesmo tempo, ser-se um canalha sem escrúpulos.
Passadas oito décadas sobre estes eventos terríveis, continuamos a presumir que os estudos universitários produzem automaticamente pessoas melhores – mais humanas, mais empáticas, menos autocentradas, com sentido de justiça mais apurado, dotadas de capacidade analítica e pensamento autónomo, menos susceptíveis ao “efeito de rebanho” e ao apelo das vaidades mundanas e das recompensas materiais. Não é verdade. Poderíamos pensar que os cursos de ciências “duras”, abstractas e mais desligadas das realidade humanas, como matemática, física, astronomia ou química, tenderiam a fomentar a alienação em relação à realidade humana e à vida quotidiana e levar a que se entenda um plano de extermínio étnico a uma escala colossal como nada mais do que um desafiante problema de logística. Porém, nem esta hipotética atenuante pode ser invocada em favor da elite que concebeu e zelou pela execução da Solução Final: foi gente com formação na área de Humanidades e, mais concretamente, com licenciatura ou doutoramento em Direito, que foi responsável por um acto de uma absoluta desumanidade, em desrespeito pelos mais elementares princípios do Direito e movido por um misto de preconceitos raciais irracionais e zelo burocrático.
O legado de Wannsee
A Conferência de Wannsee não produziu os resultados esperados por Heydrich, pois as deportações para Leste sofreram suspensões e atrasos devido às limitações do sistema ferroviário (o transporte de tropas, armamento, combustível, munições, mantimentos e equipamento para a Frente Leste tinha prioridade sobre a deportação de judeus) e as manobras de Himmler para que as coisas fossem feitas à sua maneira levaram a que os processos de extermínio que Heydrich designara como soluções “provisórias” acabassem por converter-se na “base da campanha de homicídios em curso” (Longerich). Longerich defende que Himmler se dedicou “a minar o plano de Heydrich” e acrescenta que só poderia tê-lo feito “em constante diálogo com Hitler”, o que dá ideia das tensões, comportamentos dúplices e correntes contrárias que sempre pautaram o topo da hierarquia do III Reich.
O cada vez mais comprometido plano de Heydrich foi definitivamente posto de lado quando o seu autor foi alvo, a 27 de Maio de 1942, de um atentado executado por membros da Resistência checa, sucumbindo aos ferimentos a 4 de Junho (ver capítulo “Reinhard Heydrich” em Assassínio selectivo: Uma história sangrenta com mais de 2500 anos). Com a morte de Heydrich, Himmler substitui-o na chefia executiva do Gabinete Central de Segurança do Reich (Reichssicherheitshauptamt ou RSHA) e ficou inteiramente livre para impor o seu plano para os judeus, com a vantagem adicional de “receber as suas instruções directamente de Hitler”, sem necessidade de, como Heydrich, “ter a autorização do marechal do Reich, Göring”.
Se a evolução dos acontecimentos acabou por diluir parcialmente a importância da Conferência de Wannsee, os homens que nela participaram esforçaram-se arduamente por apagá-la quando foram chamados a prestar contas à justiça no pós-guerra. Exibindo um padrão de comportamento que os portugueses de hoje reconhecerão nas declarações prestadas por figuras públicas envolvidas em eventos comprometedores quando são chamadas a testemunhar perante comissões parlamentares de inquérito, houve participantes que alegaram não ter estado presentes em Wannsee ou terem saído da reunião antes do seu término. Quando confrontados com as actas da reunião que atestavam a sua presença, alegaram não se lembrar de nada, ou não terem tido participação relevante. Quando confrontados com as suas intervenções – comprometedoras – registadas em acta, alegaram que estas tinham sido mal interpretadas ou retiradas de contexto. Alguns declararam não ter ouvido falar de “Solução Final” durante a conferência e os que admitiram ter ouvido tal expressão garantiram não ter percebido o que ela realmente significava. Um participante foi ao ponto de afirmar ter julgado que o tema da conferência era o realojamento dos judeus.
Um livro que desse crédito a estes cândidos testemunhos e não recorresse a outras fontes poderia intitular-se “A Conferência de Wannsee nunca existiu”. E seria certamente bem acolhido pelos negacionistas do Holocausto que hoje medram pelo mundo.
O horror gráfico
Portugal tem longa tradição de mediocridade no que toca a capas de livros, mas neste caso a editora portuguesa pode alegar em sua defesa ter-se limitado a replicar a edição da respeitável Oxford University Press. A inspiração para a dita capa é uma imagem que quase se tornou sinónimo do Holocausto: os carris ferroviários que convergem para um ponto de fuga que coincide com o “Portão da Morte” no campo de extermínio Auschwitz II-Birkenau.
Sob a designação genérica “Auschwitz” engloba-se um vasto sistema mais de 40 unidades distintas, com componentes concentracionárias, industriais e de extermínio em massa situado nas imediações da cidade polaca de Oświęcim, um local escolhido pelas boas “acessibilidades” (como hoje soi dizer-se). Embora neste complexo tenham morrido largas dezenas de milhares de prisioneiros em resultado de tortura, subnutrição, frio, exaustão, doenças, execuções sumárias e todo o tipo de maus-tratos, o extermínio “industrial”, responsável pela morte de 1.1 dos 1.3 milhões de prisioneiros enviados para Auschwitz, teve lugar apenas no campo de Auschwitz II-Birkenau, erguido a partir de Outubro de 1941 junto à aldeia polaca de Brzezinka e que foi dotado de câmaras de gás integralmente consagradas à morte em massa.
O “Portão da Morte”, captado em milhares de fotografias quase sempre no mesmo enquadramento, que enfatiza a convergência dos carris para a torre de vigia, foi construído em 1943 e a linha de caminho-de-ferro foi instalada em Maio de 1944, visando encurtar o trajecto entre os comboios e as câmaras de gás, tendo em vista a recepção de uma grande leva de judeus provenientes da Hungria (país até então poupado pelas deportações).
A capa da edição da Oxford University Press dir-se-ia obra de alunos do ensino básico, entediados e sem pingo de talento, a quem o professor de Educação Visual pediu um trabalho sobre o Holocausto: tomou-se o enquadramento da foto-padrão do “Portão da Morte”, reduziu-se o edifício a uma silhueta ao fundo, representou-se o lado esquerdo da linha de caminho-de-ferro com umas pinceladas toscas, traçou-se ao meio um ondulante borrão negro (?) e, numa alusão às decisões emanadas da Conferência de Wannsee, o lado direito da linha de caminho-de-ferro foi adornado com fragmentos de texto dactilografado, em alemão. É difícil imaginar solução mais grosseira e preguiçosa.
A capa da edição original alemã, pela Pantheon Verlag, é anódina – uma foto da moradia onde decorreu a famigerada conferência – mas ao menos é sóbria e cumpre “serviços mínimos”; o mesmo pode dizer-se da edição francesa, pela Héloïse d’Ormesson, que decalca o modelo alemão, com ligeiro reenquadramento da fotografia.
Compreende-se que a formidável quantidade de livros sobre o Holocausto publicados nos últimos anos (ver capítulo “Os necrófagos de Auschwitz” em O Holocausto visto pelo fundo de uma garrafa) tenha esgotado a imaginação dos designers gráficos, mas tal não serve de justificação para a produção de aberrações como a capa de O caminho para a Solução Final.