À primeira vista, pode parecer estranho: num ano de pandemia, de negócios sem atividade, de layoff e de despedimentos, a remuneração bruta mensal média (um conceito que abrange subsídios e prémios) em Portugal subiu 2,9% face a 2019 (para 1.314 euros), um ritmo que até foi superior ao que aconteceu nos anos anteriores. Como? Este comportamento não é novo — é, aliás, “normal em recessões” — e até já era expectável, segundo os economistas ouvidos pelo Observador. E há várias razões que ajudam a explicá-lo.
Uma delas é apontada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) quando, no destaque sobre a evolução dos salários, distingue o aumento da remuneração bruta total no setor público (subiu 1,1% em dezembro de 2020 face a período homólogo) e no privado (cresceu 3,7%). Segundo o INE, o crescimento das remunerações foi muito superior no setor privado porque “foi influenciado pela diminuição do número de trabalhadores deste setor com remunerações abaixo da média“. Por outras palavras, como o aumento de 2,9% se trata de um valor médio, e uma vez que da base populacional são excluídos trabalhadores com salários mais baixos, a média salarial sobe.
Em ano de pandemia, o salário médio em Portugal subiu 2,9% para 1.314 euros
Pedro Portugal, economista do Banco de Portugal e professor na Nova School of Business and Economics, explica ao Observador que esta subida da remuneração média “acontece quase sempre em recessões” devido ao chamado “efeito de recomposição” do emprego. “Acontece porque as pessoas que se separam dos seus postos de trabalho [em momentos de recessão, como o que se vive] tendem a ter empregos mais frágeis, com remunerações mais baixas, com menos qualificações”, afirma.
Num artigo publicado, em 2012, no “American Economic Journal”, em conjunto com Anabela Carneiro e Paulo Guimarães, também economistas, Pedro Portugal analisou o comportamento cíclico dos salários em recessões anteriores, até 2007. Para essa análise, os autores tiveram em conta as mudanças na composição da força de trabalho ao longo do ciclo económico. E, na altura, já concluíam: “Se os postos de trabalho menos produtivos e mais mal pagos são mais propensos a serem destruídos numa recessão (tal como os trabalhadores menos qualificados são mais propensos a serem dispensados durante uma crise), eles vão representar uma menor proporção do emprego em recessões do que numa expansão económica“.
A antiguidade vs. novos contratados
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Da mesma forma, os economistas atestaram que os salários dos recém-contratados tendem a ser mais sensíveis ao ciclo económico do que os ordenados dos trabalhadores que já estavam na empresa há mais tempo. “Um aumento de um ponto percentual na taxa de desemprego diminui os salários de trabalhadores recém-contratos num determinado cargo na empresa em cerca de 2,5% e em 2,2% para os trabalhadores que já estavam no mesmo cargo.”
Os estudos sobre recessões anteriores, nomeadamente na última crise financeira, e na atual, também concluem que os trabalhadores com contratos a prazo “perdem os seus empregos desproporcionalmente” e são os primeiros a ser afetados, acrescenta Pedro Portugal.
“Last in, First Out” e o efeito de recomposição
João Cerejeira, economista e investigador na Universidade do Minho, concorda que este comportamento do salário médio era expectável. “Numa fase inicial das crises”, como aconteceu na anterior, as empresas seguem um critério que é o ‘Last In, First Out’ (LIFO): os últimos a entrar na empresa são os primeiros a sair. Tendencialmente, são os trabalhadores com contratos mais precários, os mais jovens, com menor experiência — e, lá está, menor salário. Este efeito pode ter sido agravado porque as empresas que estão em layoff não podem despedir nos 60 dias após a data em que a empresa deixou de beneficiar do regime, mas podem optar por não renovar contratos a prazo.
Porém, se a crise se prolongar, é muito provável que o efeito do aumento do salário médio se inverta. Na “fase de recuperação” da última crise financeira, os salários médios começaram a descer porque, nessa altura, passaram a ser afetados os trabalhadores com maior antiguidade e, à partida, salários mais altos. “Por um lado, houve um conjunto de despedimentos coletivos, reestruturação de empresas que afetaram os trabalhadores com antiguidade mais elevada, e que acabaram por ser substituídos por novas contratações com salários inferiores aos praticados na empresa, fazendo descer a média salarial”, explica o investigador.
É isso que vai acontecer nos próximos meses? “É cedo para dizer, depende da fase de recuperação em que estejamos. Ainda não percebemos em que ponto estamos”, acrescenta. A vacina e as dúvidas sobre a sua eficácia perante as novas variantes só aumentam a incerteza.
Mas se o emprego diminuiu em profissões que pagavam abaixo da média, como referiu o INE, também aumentou em profissões “que já pagavam mais do que a média”, aponta João Cerejeira. Os dados do instituto ajudam a perceber a questão.
De facto, entre 2019 e 2020, as empresas viram o número de trabalhadores diminuir em cerca de 44 mil (os dados do INE têm como base as remunerações declaradas à Segurança Social e as contribuições para a Caixa Geral de Aposentações, num universo de 4,1 milhões de trabalhadores por conta de outrem). Foi o setor do turismo (“Alojamento, restauração e similares”) o que mais viu o emprego cair em termos percentuais (8,8%), mas também o que, a seguir ao setor agrícola, pagou pior aos trabalhadores (em média, 830 euros mensais). Com os despedimentos no setor, os trabalhadores dispensados deixaram de contribuir para a média salarial, que assim aumenta.
Entre os mais afetados estão também as “atividades administrativas e dos serviços de apoio”, onde se incluem, por exemplo, agências de viagens. Neste setor, o número de trabalhadores caiu 8,1% e, segundo cálculos do Observador, o montante total de ordenados pagos desceu 2,7%.
No extremo oposto, foi nas “atividades de informação e de comunicação“, precisamente uma das que tem maior média salarial (2.063 euros mensais), que a percentagem de pessoas empregadas mais aumentou (6%) e em que o volume de salários pagos mais subiu — 10,3%, ou seja, mais 24 milhões de euros. Segue-se a construção, que não parou durante a pandemia, e que viu o emprego crescer 4,4% e o total de ordenados pagos aumentar quase 7%.
Os números mostram, assim, o “efeito de recomposição”. “Tivemos uma alteração da composição do emprego a favor de ocupações com níveis salariais mais elevados. O emprego cresceu em profissões que já pagavam mais do que a média e diminuiu em profissões que pagavam abaixo da média”, sintetiza João Cerejeira. Se alguns setores foram fortemente afetados pela pandemia, outros continuaram a sua atividade sem grandes disrupções, em muitos casos em teletrabalho, ou até viram o volume de trabalho subir — como no caso das entregas ao domicílio, lembra Pedro Portugal.
Empresas que estiveram em layoff foram as que perderam mais postos de trabalho
O INE traça ainda uma distinção entre as empresas que estiveram, pelo menos uma vez, em layoff ou em que os trabalhadores recorreram ao apoio à família, e as que nunca foram abrangidas pelo regime. Se no caso das empresas “não layoff”, o número de trabalhadores se manteve estável até fevereiro de 2020, começou a diminuir em março (0,5% face a período homólogo) e em junho observou a maior queda (3,2%). Porém, nos dois últimos meses do ano já recuperou (0,2% e 1,9%, respetivamente).
Por outro lado, as “empresas layoff” viram o número de trabalhadores subir mais do que 5% até março, tendo começado a cair a partir de junho (2,3%), tendência que se manteve nos meses seguintes (por exemplo, em setembro caiu 3,1% e em dezembro 4,8%). As empresas que recorreram a este regime de apoio ao pagamento de salários estão, assim, a contribuir mais para a perda do emprego do que as restantes — o que, como vimos, pode estar relacionado com o facto de ter chegado ao fim o período durante o qual não podiam despedir.
Esta evolução também não espanta João Cerejeira, já que, antes do confinamento, o acesso ao layoff, estava dependente de uma elevada quebra de faturação (40% no layoff simplificado, 25% no seu sucedâneo — o apoio à retoma progressiva). “Podiam aceder as empresas dos setores fechados por imposição legal e os que foram mais afetados em termos de volume de vendas. À partida, são as empresas onde já havia maiores quebras”, aponta.
Algumas “não serão sustentáveis” a longo prazo, “nomeadamente as que já tinham níveis de endividamento muito grandes e, agora, observaram um acréscimo ainda maior. São empresas em risco”. A forma como vão sobreviver ou não vai depender das medidas tomadas pelo Governo: “Por um lado, das condições de financiamento dessas empresas, do prolongamento, ou não, das moratórias de crédito”, mas também “da capacidade de recuperação da economia no segundo trimestre”.
Já percebemos que este primeiro trimestre vai ser de crise, mas no segundo semestre de 2021 e depois no que ano que vem, a manutenção desses postos de trabalho vai depender das medidas do Governo. Mas é preciso distinguir entre os impactos de natureza conjuntural e os de natureza mais estrutural, que ainda estamos a tentar perceber quais são: se esta questão do comércio online veio para ficar, se o digital vai continuar a crescer ao ritmo que cresceu durante este período. Ainda é cedo para percebermos a magnitude dessas implicações“.
Outras explicações para o aumento do salários médio é a atualização salarial dos contratos coletivos e o aumento do salário mínimo. Em janeiro de 2020, este último subiu 35 euros para os 635 euros, abrangendo 742 mil pessoas, o que significa 21% dos trabalhadores em Portugal, segundo dados divulgados pela ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, em dezembro. “Há dez anos, a percentagem de trabalhadores a receber o salário mínimo era baixa, 4% ou 5%. Agora, há mais de 20% a receber o salário mínimo”, refere Pedro Portugal.
Custo do trabalho também subiu — mas porque se trabalharam menos horas
Em 2020, o índice do custo do trabalho subiu 8,6%. Este índice mede a evolução trimestral dos custos do trabalho por hora trabalhada e calcula-se dividindo o custo médio por trabalhador pelo número de horas trabalhadas, por funcionário. Daí que, a contribuir para esta subida, esteja a redução do número de horas trabalhadas em Portugal.
De facto, devido à pandemia, muitas empresas tiveram de encerrar atividade total ou parcialmente por via do confinamento, de março a início de maio, ou por via do recolher obrigatório, imposto nalguns dias do final do ano. O layoff também permitiu às empresas cortar horários de trabalho, até 100%, e obter ajuda da Segurança Social para pagar salários.
Segundo o INE, os trabalhadores completaram menos 5,8% de horas de trabalho em 2020, depois de um aumento de 1,5% em 2019. A quebra foi maior no segundo trimestre do ano (12,9%), o que teve reflexo no custo do trabalho, que cresceu 14,2%. No terceiro trimestre, as horas trabalhadas apenas caíram 2,9% e nos últimos três meses do ano 3,3%.