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Paulo Spranger /Global Imagens

Paulo Spranger /Global Imagens

Como oito polícias atacaram seis jovens da Cova da Moura — segundo o tribunal que os condenou

Foram acusados de tortura e racismo, mas à sentença só chegaram crimes como sequestro, ofensa à integridade física e falsificação. O tribunal deu como provadas agressões violentas e abuso de poder.

Tudo começou com um sorriso. Bruno Lopes, morador do bairro do Alto da Cova da Moura, caminhava em direção ao Café do Tio quando um agente da PSP se aproximou. Julgava que Bruno se estava a estava a rir dele e dos seus colegas e abordou-o: “Estás a rir de quê? Estás-te a rir? Encosta-te aí à parede”. O jovem quase não teve tempo para seguir a ordem. Segundos depois, o polícia “desferiu-lhe, pelo menos, uma pancada na cara com tal violência” que levou a que Bruno “tivesse caído de joelhos e começado a sangrar da boca e do nariz”, lê-se na decisão do Tribunal de Sintra, conhecida esta segunda-feira e à qual o Observador teve acesso.

Segundos depois, toda a Rua do Moinho era uma confusão. Os moradores do bairro “começaram a gritar para os agentes para que parassem de bater” no jovem. Em tribunal, porém, ninguém conseguiu dizer ao certo que agente era aquele. Sabe-se apenas que era um dos sete polícias da 5ª. equipa da Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial de Alfragide, que se encontrava a realizar uma ação de patrulhamento naquela rua, naquele dia.

Os incidentes aconteceram na sequência de uma ação de patrulhamento no bairro da Cova da Moura

Gonçalo Villaverde / Global Imagens

Nenhuma das descrições feitas em tribunal foi suficientemente credível para condenar alguém por esta agressão específica. E não aconteceu apenas em relação a este momento. Foi, aliás, a dificuldade que algumas vítimas e testemunhas tiveram em descrever os agressores que fez com que o Tribunal de Sintra decidisse absolver nove dos agentes da PSP acusados no caso Cova da Moura. Os restantes oito, porém, foram condenados — oito agentes contra os quais as provas eram demasiadamente evidentes ou cujas caras ficaram gravadas na memória das vítimas, que conseguiram descrevê-los com precisão. E mesmo sem que fosse possível identificar o culpado, a agressão a Bruno Lopes foi apenas a primeira cena de uma série de ataques dados como provados pelo coletivo de juízes e que são descritos ao pormenor no acórdão que pôs um primeiro ponto final no caso.

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5 de fevereiro de 2015, início da tarde: o patrulhamento que acaba em agressão

A 5ª equipa da Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial de Alfragide chegou à Cova da Moura às 13h30, para uma ação de patrulhamento. Minutos depois, com a abordagem a um dos moradores, já a Rua do Moinho estava em alvoroço, com várias pessoas a gritarem, sem sucesso, para que fossem travadas as agressões por parte de um dos agentes — aquele que não foi possível identificar. Do outro lado da rua — oposto àquele onde Bruno Lopes estava já de joelhos no chão e a sangrar —, o agente João Nunes preparava-se para pegar na sua espingarda, carregada com projéteis de borracha de letalidade reduzida, conhecida por shotgun. Fez pontaria em direção à varanda do primeiro andar de uma casa naquela rua. Ali, a pouco mais de 10 metros do agente, encontrava-se Jailza Sousa, “que não se manifestava”, lê-se no acórdão. Acabou por ser atingida por dois disparos feitos na sua direção: um atingiu-lhe o peito; outro a coxa direita — “o que lhe causou dor, sofrimento e lesões físicas”.

João Nunes

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Condenado a quatro anos de pena suspensa por três crimes de ofensa à integridade física e um de falsificação de documento agravado.

O agente João Nunes foi, imediatamente, abordado por uma habitante, em choque, que assistiu aos disparos. “Não faz isso! Isso não se faz! Isso é abuso”, gritou Neusa Correia, antes de se ver obrigada a fugir, com a irmã que também ali se encontrava. O agente começou a persegui-la com a shotgun na mão e apontada na direção de ambas as mulheres. E voltou a disparar quando se encontrava a cerca de oito metros das duas. Uma das balas de borracha atingiu Neusa foi atingida no nariz.

Os 17 arguidos à chegada ao Tribunal de Sintra, onde o processo foi julgado

MIGUEL A. LOPES/LUSA

Naquela altura, já Bruno Lopes — o morador que primeiro foi abordado pela polícia, por causa do tal sorriso — tinha sido “detido e algemado com as mãos atrás das costas” por três polícias. Foi conduzido até ao interior da carrinha da PSP para ser transportado até à Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial, de Alfragide, para onde foi levado com os joelhos no chão da carrinha e com o rosto virado para baixo. No trajeto, que demora cerca de sete minutos, foi agredido com “bastões” — também aqui a vítima não conseguiu identificar, com certeza, quem foram os agressores.

Foram, no total, cerca de nove horas na esquadra. Segundo os juízes, durante esse período, os polícias “cada vez que passavam pelo ofendido que se encontrava sentado, desferiram-lhe pontapés, atingindo-o pelo menos no peito, causando-lhe dores, sofrimento e mal-estar físico e psicológico”.

André Silva

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Condenado a três anos e nove meses de pena suspensa por um crime de denúncia caluniosa em concurso aparente com um crime de falsificação de documento agravado, e um crime de sequestro agravado.

Foi também durante esse período que o agente André Silva preparou um auto de notícia, com a descrição dos acontecimentos que levaram à detenção de Bruno  — e que o tribunal considerou estar resumido a “factos falsos”. Por exemplo: André Silva diz que Bruno só foi abordado porque, acompanhado de cerca de uma dezena de jovens, atirou uma pedra ao carro da polícia e tentou fugir; garante que lhe deu “um pequeno toque nas pernas” para o parar; explica que Bruno sempre apresentou uma postura “bastante brusca e violenta”, tentando mesmo agredir os agentes; e que João Nunes apenas disparou tiros de borracha para o ar, “face ao grande aglomerado de indivíduos de raça negra que arremessavam várias pedras contra a viatura e elementos policiais”, lê-se no auto de notícia citado no acórdão, bem como no Relatório do Uso de Armas de Fogo, redigido pelo agente João Nunes — “que o que dele fazia constar não correspondia à verdade”, concluiu o tribunal.

André Quesado e Fábio Moura

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Condenados a dois anos e seis meses de pena suspensa por um crime sequestro agravado, cada um.

O carro da polícia não apresentava, porém, quaisquer marcas de ter sido atingido com uma pedra. Ao contrário de alguns habitantes de Cova da Moura, que ficaram com as marcas das balas de borracha no corpo. E, por isso, o tribunal considerou que André Silva escreveu factos que “bem sabia não terem sucedido”, mas também apontou o dedo a André Quesado e Fábio Moura — os agentes que o auxiliaram na detenção de Bruno e que “sabiam que não tinha cometido qualquer crime naquela ocasião e lugar e que não havia fundamento legal para proceder à sua detenção”.

Bruno Lopes foi levado, sob detenção, para a Esquadra de Alfragide. Só nove horas depois seria transferido para o Comando de Moscavide

Andre Kosters/LUSA

A segunda parte do caso Cova da Moura: as agressões à porta da esquadra de Alfragide

Eram já 22h30 do mesmo dia quando Bruno foi levado para o comando metropolitano da PSP, em Moscavide — e, depois, levado no hospital e trazido de volta. Muito antes, ainda durante a tarde, um grupo de seis pessoas tinha ido à sua procura na esquadra de Alfragide. Ali, por volta das 14h30, foram recebidos por três agentes — “Aqui vocês não vão poder entrar!” — que se apressaram a chamar os colegas que estavam no interior da esquadra: “Ó malta, venham cá!”. “Saíram para o exterior e formaram um cordão em frente da porta do respetivo edifício, enquanto ordenavam que aqueles [as seis pessoas que procuravam o detido] saíssem do local”, lê-se no acórdão.

João Nunes foi um dos que se dirigiu à rua para ver o que se passava. Empunhou novamente a sua shotgun e apontou-a na direção de Celso Lopes que, “apesar do pedido deste para que não disparasse”, foi atingido na coxa esquerda com uma bala de borracha. Segundo os juízes, o disparo foi feito ao mesmo tempo que o agente dizia: ‘Este tem que ficar’”.

Outros dois agentes “atiraram-no ao chão e colocaram-se em cima” de Celso Lopes, que gritava que “estava a ficar sem ar”. “Vais morrer mesmo”, diziam os agentes, enquanto o algemavam. Assim, manietado, o jovem foi ainda agredido com pontapés na cabeça e na cara.

Joel Machado

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Condenado a um ano e seis meses de pena efetiva por um crime de ofensa à integridade física qualificada, e um crime de sequestro agravado.

Também aqui não foi possível identificar os responsáveis por cada uma das agressões — exceptuando o disparo com balas de borracha. E Celso Lopes não foi o único alvo daquele ataque. O tribunal deu como provado que vários agentes “desferiram bastonadas, socos e pontapés nos ofendidos”, ao mesmo tempo que gritavam insultos racistas a vários membros do grupo.

Flávio Almada, aqui com a advogada que representou as vítimas no processo, foi um dos jovens agredidos dentro e fora da Esquadra de Alfragide (Paulo Spranger /Global Imagens)

Paulo Spranger /Global Imagens

Pelo menos Flávio Almada, Celso Lopes, Miguel Reis e Paulo Veiga, quatro dos moradores que foram procurar Bruno Lopes à esquadra, foram agredidos com bastonadas e obrigados a deitarem-se no chão, onde permaneceram algemados, por um período de tempo não concretamente apurado”.

Arlindo Silva

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Condenado a um ano e um mês de pena suspensa por um crime de ofensa à integridade física qualificada qualificada e um crime de injúria agravada.

A cena de pancadaria foi tal modo confusa que Rui Moniz que ali passava na rua e que em nada estava relacionado com o grupo acabou por ser também agredido. Trazia um telemóvel na mão e o agente Joel Machado, julgando que este estava a filmar os acontecimentos, acompanhado de outros três agentes, deu-lhe um murro na cara e obrigou-o a deitar-se no chão.

Já no interior da esquadra, o agente Arlindo Silva questionou a razão de Rui Moniz ter uma tala no braço. O homem respondeu-lhe que tinha “perdido capacidade motora naquele membro” por ter sofrido um AVC. Nem a explicação travou o polícia: “Então não morreste? Agora vai-te dar um que vais morrer. Ainda por cima és pretoguês!”.

Dentro da esquadra: insultados, espancados, pisados e levados a tribunal

As cinco vítimas ficaram detidas na esquadra e deitadas no chão, “por tempo não determinado”. Tempo durante o qual “agentes não identificados, ao por eles passarem, pisavam-nos intencionalmente”. Apenas Rui Moniz, o homem detido quando passava na rua no momento das agressões à porta da esquadra, não se encontrava algemado. O detido chegou mesmo a pedir ajuda a uma agente — que foi absolvida — e que “nada fez”. Um dos polícia que participaram nestes insultos e agressões, já depois das detenções, Hugo Gaspar, foi mesmo identificado e condenado por ter humilhado Rui Moniz.

Hugo Gaspar

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Condenado a dois anos de pena suspensa por um crime de injúria agravada.

Todos estes acontecimentos foram, depois, transformados em factos que “não correspondiam à verdade” num auto de notícia redigido pelo chefe da Esquadra de Alfragide, Luís Anunciação, que, “apesar saber que nenhum motivo legal existia para as detenções”, nada fez para impedi-las. “O arguido sabia que ao fabricar tal documento, agia na qualidade de agente da PSP e que com esta atuação induzia as autoridades judiciárias em erro”, lê-se no acórdão.

As vítimas estiveram várias horas detidas. O tribunal diz que os agentes sabiam que não havia fundamento legal para as detenções (Paulo Spranger /Global Imagens)

Paulo Spranger

As vítimas foram, mais tarde, transportadas para a esquadra da Damaia para serem fotografadas. De regresso a Alfragide, “foi-lhes determinado que se sentassem num banco ali existente e que permanecessem com a cara virada para o chão”. Assim ficaram até às 18h00, quando os Bombeiros da Amadora, que tinham sido chamados, os levaram até ao hospital. Por volta das 22h30, foram todos transportados para o comando metropolitano da PSP, em Moscavide, onde pernoitaram. Bruno foi presente a tribunal no dia seguinte. Os restantes tiveram de ficar mais uma noite no comando metropolitano: só foram ouvidos pelos Juiz de Instrução Criminal de Sintra dois dias depois da detenção. No mesmo tribunal onde os agentes, quatro anos depois, viriam a ser julgados e condenados.

“Nada justificava a atuação dos arguidos”. Sentença tida como histórica

Na detenção na Cova da Moura e nas violentas agressões na esquadra de Alfragide estiveram direta ou indiretamente envolvidos 17 agentes da polícia, que foram constituídos arguidos num processo que, rapidamente, misturou justiça com o tema dos direitos humanos. Em tribunal, por causa da acusação do Ministério Público, os elementos da PSP responderiam mesmo por crimes de racismo e tortura — ainda que o MP os tenha deixado cair, depois, já em alegações finais, não sendo qualquer um deles condenado por isso.

Luís Anunciação

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Condenado a cinco anos de pena suspensa por um crime de denúncia caluniosa e cinco crimes de sequestro agravado.

O caso transformou-se em escândalo — e tema, também, de debate político —, mas, no final, apenas oito foram condenados. Porquê? As vítimas e testemunhas não conseguiram identificar e distinguir com precisão os polícias que foram absolvidos totalmente ou de apenas alguns crimes. Por exemplo, uma das vítimas explicou que se recordava de ver uma placa com o nome: “A. Silva”. Mas essa placa podia corresponder ao arguido André Silva ou Arlindo Silva — que, embora tenham sido condenados por parte dos factos pelos quais respondiam, foram absolvidos por alguns crimes específicos.

Assim, apenas um dos polícias, Joel Machado, terá de cumprir prisão efetiva, de 1 ano e seis meses, uma vez que este arguido já tinha sido condenado no passado. Os restantes foram condenados a penas suspensas, em cúmulo jurídico, entre dois meses e cinco anos de prisão, pelos crimes de sequestro, de ofensa à integridade física qualificada, de falsificação de documento, de injúria e de denúncia caluniosa.

A absolvição de 9 dos agentes da PSP foi motivo de festejos com colegas já depois da leitura da sentença

Paulo Spranger / Global Imagens

Ainda assim, a sentença conhecida esta segunda-feira é tida como histórica. A juíza presidente do coletivo, Ester Pacheco, citou mesmo o Código Deontológico do Serviço Policial para alertar que se espera dos polícia que “respeitem e protejam a dignidade humana, o direito à vida, à liberdade, à segurança e demais direitos fundamentais”.

A magistrada sublinhou ainda uma agravante: “Nenhum dos ofendidos [as vítimas] havia praticado qualquer crime” e, mesmo que tivessem cometido, “nada justificava a atuação dos arguidos”. Mais: o tribunal acredita que os polícias se excederam no exercício das suas funções profissionais e que o caso Cova da Moura “consubstancia, inequivocamente, um grave abuso de autoridade“.

O tribunal condenou ainda os arguidos a pagar uma indemnização de mais de 72 mil euros às vítimas. Os seis jovens agredidos, que se constituíram assistentes no processo, pediam uma indemnização muito superior: um total de 327 mil euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, incluindo despesas relativas a tratamentos e deslocações.

O facto de a juíza ter deixado cair o crime de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes e desumanos a todos os arguidos — por considerar que os pressupostos deste crime não se encontram preenchidos —, não deixou a advogada das vítimas “totalmente” satisfeita. Isso e o facto de o coletivo também não ter dado como provado que os polícias tenham sido motivados por ódio racial.

Recebida entre abraços e lágrimas à saída da sala de audiências, Lúcia Gomes, a advogada, disse que espera que “este acórdão seja um farol para as instituições, principalmente para a PSP, para perceberem o que é que têm de fazer e como é que têm de arrumar a casa”. Depois, finalizou: “A Cova da Moura é vencedora”.

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