A compra de um dos principais grupos de media em Portugal por outro dos principais grupos de media do país poderá ser uma dor de cabeça em termos de concorrência. Se a compra da Media Capital pela Cofina avançar, TVI24 e CMTV (dois dos principais canais do cabo) passarão a ser detidos pela mesma empresa, que juntará sob o mesmo tecto o jornal mais vendido do país, várias das rádios mais escutadas e ainda um dos três grandes da televisão generalista.
O grupo de Paulo Fernandes confirmou a meio de agosto as negociações exclusivas com os espanhóis da Prisa, que se estenderam durante 30 dias, embora sem avançar valores concretos no domínio público. O que é certo é que no ano passado a Altice desistiu da compra da Media Capital — o valor do negócio rondava os 440 milhões de euros — precisamente por causa dos entraves impostos pela Autoridade da Concorrência. Agora, com uma eventual compra a ter implicações quer a nível da concorrência direta quer a nível da relação entre a produção e a distribuição dos conteúdos, a AdC terá em mãos a tarefa de analisar os riscos da operação para os consumidores e para o mercado da comunicação social. Aqui ficam quatro perguntas e respostas que ajudam a perceber as implicações do processo.
Quem vai comprar o quê?
Uma sucessão de comunicados enviados à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários em agosto trouxe a confirmação oficial: a Cofina (empresa dona do Correio da Manhã, da revista Sábado, do Record, do Jornal de Negócios e de mais um conjunto de revistas) estava em negociações exclusivas com a empresa espanhola Prisa, que, através da empresa Vertix, detém 94,69% do grupo Media Capital (dono da TVI, da Rádio Comercial, da M80 e de outras rádios e plataformas digitais).
Trata-se de um negócio que levanta múltiplas questões em termos de concorrência de mercado, que terão de ser analisadas pela Autoridade da Concorrência (AdC) — que dará ou não luz verde ao negócio. Fora desta análise ficam as questões editoriais resultantes da possível fusão ou integração de meios jornalísticos, que terão de ser analisadas pela Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC).
Na mesma altura, a Cofina confirmou à CMVM — cumprindo o dever de avisar o mercado para as eventuais alterações estruturais que possam ocorrer no meio — que estava a negociar a possível compra da Media Capital à Prisa. A informação, que já circulava há dias nos bastidores e que tinha sido divulgada a 14 de agosto pelo Expresso, foi depois confirmada pela Prisa. Em resultado da nova informação no mercado, a CMVM suspendeu a negociação das ações de ambas as empresas.
Dois dias depois, a Cofina acrescentou à CMVM detalhes sobre as negociações exclusivas: iriam durar 30 dias e, se no fim resultasse efetivamente uma compra, seria lançada uma OPA sobre as restantes ações da Media Capital (aqueles 5,31% que a Prisa não detém). Pouco depois, já desfeitas as incertezas sobre o processo negocial, a CMVM levantou a suspensão da negociação das ações quer da Cofina quer da Media Capital.
Uma empresa pode ser dona de dois canais de televisão concorrentes?
Resposta simples: pode. Resposta complexa: pode, mas depende dos detalhes da operação. É aí que entra a avaliação da Autoridade da Concorrência, que terá como missão analisar os vários problemas que podem surgir na sequência do negócio. Como explica ao Observador o advogado Pedro Marques Bom, ex-diretor-geral de investigação da Autoridade da Concorrência e atualmente sócio coordenador da área de Direito Europeu e da Concorrência na firma de advogados Cuatrecasas, a AdC tem a missão de fazer “futurologia” sobre o negócio, tentando “antecipar o efeito no mercado da compra de B por A”.
“No caso de haver dúvidas sobre se a operação é má para os consumidores, as Autoridades da Concorrência não podem assumir o risco. A lei diz que se a operação for suscetível de levar a entraves, como o aumento do custo para o consumidor ou a redução da quantidade e qualidade dos serviços em causa, a AdC deve opôr-se ao negócio. Porque, depois de estar concluída a operação, não há nada a fazer caso se verifiquem os problemas”, explica Pedro Marques Bom.
O antigo responsável da AdC assume que esta operação “vai colocar desafios em termos de análise”. O primeiro passo será a identificação das sobreposições de atividade entre a Cofina e a Media Capital. O caso mais flagrante será no serviço de televisão: as duas empresas têm canais de televisão de grande relevância no panorama nacional.
Em primeiro lugar, explica Pedro Marques Bom, é necessário entender que existem dois mercados separados em termos de televisão: o free-to-air (ou seja, os canais em sinal aberto, que dependem essencialmente dos anunciantes); e o pay-TV (os canais que apenas são acessíveis através de assinaturas de serviços de televisão por cabo ou satélite). Se o prisma da análise for o dos mercados separados, então existe uma concorrência clara entre a CMTV e a TVI24, dois canais portugueses com grande enfoque na informação disponíveis nos serviços pagos de televisão.
Porém, alerta Pedro Marques Bom, a taxa de penetração dos serviços de televisão paga é muito elevada em Portugal. De acordo com dados da ANACOM, no final do ano passado, 85,9 em cada 100 famílias clássicas portuguesas tinham serviços de televisão por subscrição nas suas casas — e isto introduz na equação a TVI generalista. Para a maioria dos utilizadores, os canais generalistas são concorrentes com os do cabo e estão à distância de uma “fração de segundo”. Para grande parte dos portugueses, basta um clique no comando para alternar entre os clássicos RTP1, SIC e TVI e a CMTV.
Resta a questão: se a TVI, a TVI24 e a CMTV passarem a ser do mesmo dono, isso vai ter um impacto positivo ou negativo nos portugueses? É preciso perceber então quais são os problemas concretos de um negócio como este.
Quais são os problemas que podem surgir?
Há dois tipos de efeitos a que a AdC irá estar atenta: os efeitos horizontais (decorrentes da aquisição de um concorrente por outro concorrente) e os efeitos verticais (decorrentes da aquisição de um distribuidor por um fornecedor). Numa operação tradicional, apenas se verificariam efeitos de um tipo. Neste caso, considera Pedro Marques Bom, é expectável que se identifiquem problemas dos dois âmbitos.
No que toca aos efeitos horizontais, há a questão evidente da coexistência da CMTV e da TVI24 enquanto concorrentes diretos na televisão paga e detidos pela mesma empresa — e também da TVI generalista, se alargado o âmbito da análise. Relativamente aos efeitos verticais, destacam-se duas questões: a publicidade e a distribuição dos canais.
A maioria da publicidade nos media é gerida através de agências de meios: agências que são contratadas por determinada marca ou empresa que pretende anunciar nos media e que depois trabalha com uma carteira de meios de comunicação social, pelos quais difunde os anúncios. Será necessário “perceber se em resultado desta operação a entidade que ficar com a CMTV e a TVI24 fica com uma posição ainda mais forte relativamente à venda de espaço publicitário”, explica Pedro Marques Bom.
No que toca à distribuição dos canais, a CMTV e a TVI24 são difundidos pelos serviços de televisão paga como a MEO, a NOS, a Vodafone, a Nowo, entre outros. Estes operadores pagam aos canais para os terem nas suas grelhas. A agregação da TVI24 e da CMTV significa que os operadores terão de pagar à mesma empresa pelos dois canais — que são considerados essenciais para as suas grelhas. Isto poderá dar à Cofina uma vantagem negocial que leve a um aumento dos custos dos canais? Se sim, será que esse aumento dos custos poderá representar uma subida dos preços cobrados aos consumidores? É esta possibilidade que a AdC terá de analisar.
Na ótica de Pedro Marques Bom, o contrapoder negocial dos operadores poderá mitigar este problema. É que a NOS, a MEO ou a Vodafone precisam dos canais nas suas plataformas para poderem vender as subscrições, mas a Cofina também precisa de ter os canais nas plataformas para ter espectadores.
Há ainda um terceiro problema vertical, adverte o advogado: a questão da Plural, produtora de conteúdos da TVI e uma das maiores produtoras de telenovelas do país. A CMTV também já emitiu telenovelas portuguesas, pelo que haverá uma “integração vertical entre um dos principais canais do pay-TV e uma das maiores produtoras de televisão” — a cujos efeitos a AdC também terá de prestar atenção.
“A Cofina passa a ter uma posição que lhe permita aumentar os custos de acesso a esses canais pelos operadores, que podem fazer refletir isso no consumidor? A AdC vai ter de perceber se há uma redução da liberdade de escolha que pode levar a um agravamento dos custos para o consumidor”, resume Pedro Marques Bom, acrescentando que o tema da publicidade “vai estar sempre presente” e será necessário perceber até que ponto a fusão vai “alavancar a posição da Cofina na publicidade”.
Que soluções e compromissos podem permitir o negócio?
Depois de identificar todos os potenciais problemas que poderão surgir em resultado da operação de fusão, a Autoridade da Concorrência aprovará ou não o negócio, com base nos compromissos que a Cofina assumir para contrariar os eventuais efeitos negativos da operação. Pedro Marques Bom, ex-diretor de investigação da Autoridade da Concorrência, explica que a nível europeu as diversas autoridades da concorrência têm estado “menos disponíveis para aceitar compromissos comportamentais”, privilegiando “compromissos estruturais”.
O que quer isto dizer? Que não vai bastar à Cofina prometer que não aumenta os preços ou que não restringe o acesso aos canais. Por dois motivos: por um lado, a criação de mecanismos de monitorização do cumprimento dos compromissos implica uma despesa adicional para a Autoridade da Concorrência; por outro lado, em caso de incumprimento, tirando a eventual sanção, não há como reverter o mal que já foi feito.
Por isso, “se a AdC chegar à conclusão de que as sobreposições são graves e podem justificar um impedimento da operação, o remédio mais adequado será o desinvestimento num dos meios”. Ou seja, a AdC “pode dizer que para a Cofina poder realizar a compra terá de alienar um dos canais, a CMTV ou a TVI24”. A venda da CMTV a uma outra empresa é, como adiantou o Observador, uma das hipóteses em estudo dentro do grupo.
Na análise de Pedro Marques Bom, a operação não deverá ser impedida, mas há “um cenário exigente de análise”. “Acho que ainda estamos longe de perceber se efetivamente a operação vai levar à conclusão por problemas graves ou se até pode ser pró-competitiva em certos aspetos”, explica, sublinhando que “em qualquer concentração há ganhos de eficiência, as empresas procuram tornar-se melhores, mais eficientes e mais competitivos”.
“O teste legal já não é aquele antigo da dominância. Já não se proíbem concentrações que levem a um reforço da posição dominante, mas às que possam levar a um aumento de preços, redução de qualidade e redução da quantidade. Nos dias que correm, se calhar teremos de olhar para outras variáveis. Vamos falar muito de pluralismo e de liberdade de escolha”, antecipa.
As negociações entre a Cofina e a Prisa deverão estar concluídas até ao início de setembro. Será por essa altura, quando houver uma proposta concreta em cima da mesa, que a Autoridade da Concorrência vai analisar a operação.