O “brilharete” já era esperado, o Instituto Nacional de Estatística (INE) só veio quantificá-lo: em 2023, as receitas que o Estado conseguiu obter, incluindo pela via fiscal, terão superado as despesas em mais de 3 mil milhões de euros, colocando o excedente nos 1,2% do PIB. É o valor mais alto da democracia, o que dá uma folga a Luís Montenegro, mas com limites e cautelas. As contas estão mais “certas” e o excedente é positivo, mas não é perfeito, não dá para tudo e pode colidir com “surpresas adversas” ao virar da esquina.
O supéravite histórico divulgado esta segunda-feira é melhor do que previa o Governo em outubro, de 0,8% em contabilidade nacional (a que interessa a Bruxelas), e uma viragem completa face aos 0,9% de défice que previu um ano antes, quando preparou o Orçamento do Estado para 2023. Os 1,2% de saldo positivo resultam de uma receita que cresceu acima (9%) da despesa (5,2%), à boleia sobretudo das receitas fiscal e contributiva.
Por exemplo, os impostos sobre o rendimento e o património escalaram 10,7% face a 2022, enquanto as receitas com contribuições sociais subiram 10,4%. Por outro lado, a despesa ficou 438 milhões de euros abaixo do estimado, segundo frisa o Ministério liderado por Fernando Medina, num comunicado de reação aos números divulgados pelo INE.
No mesmo comunicado, a tutela justifica o excedente com uma subida mais expressiva do que o previsto da economia, do emprego e dos salários, o que permitiu “reforçar a sustentabilidade da Segurança Social”. E, de facto há rubricas onde o orçamentado e o executado ficaram muito distantes. Segundo uma nota da equipa de economistas do BPI, isso aconteceu nas receitas fiscais (o executado ficou mais de cinco mil milhões de euros acima do previsto) ou nas contribuições sociais (mais dois mil milhões de euros). O contrário aconteceu no investimento público, que de acordo com o BPI ficou 580 milhões abaixo do previsto. Também a receita de capital decorrente dos fundos da UE, nomeadamente do PRR, ficou aquém do esperado.
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Com um excedente desta dimensão (3.193,5 milhões de euros), o Ministério das Finanças rejeita ter ficado atrás nos apoios sociais: Portugal “foi um dos países com pacotes de apoio anti-inflacionistas de maior dimensão, num valor total superior a 7500 milhões de euros”, o que o torna “o 4.º país da União Europeia com maior volume de apoios”, garante o Ministério, referindo-se ao ao extraordinário para as famílias mais vulneráveis, o apoio à renda, o complemento extra para crianças e jovens, os apoios sobre os combustíveis ou o IVA Zero.
O Ministério de Medina avisa que o bónus de 2023 é positivo para as contas de 2024, mas “não reduz as pressões orçamentais que condicionarão as decisões financeiras futuras”. Por outras palavras, o excedente é bom, mas não perfeito, já que há “efeitos desfasados” da crise da inflação sobre despesas como a atualização das pensões (que segue obrigatoriamente uma fórmula que tem em conta a inflação) ou dos salários da função pública.
O Governo estima que só a aplicação das fórmula da atualização das pensões e outras prestações venha a exigir mais de 1,5 mil milhões de euros em despesa em 2025, enquanto os aumentos salariais previstos no acordo de rendimentos para a administração pública vão exigir um “valor superior a mil milhões de euros ao orçamento”.
Além disso, lembra que há um efeito das renegociações de contratos de despesa na administração pública fruto do aumento da inflação, assim como “crescentes exigências de investimento público” para financiar a transição ambiental, a digital e a de segurança externa, “num contexto de uma previsível redução de financiamento europeu” com o fim do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), em 2026.
Ainda em matéria de pensões, recorda que o envelhecimento da população levará a uma subida das despesas com pensões, outras prestações sociais e na área da Saúde nos próximos anos, pelo que renova o apelo ao Governo que se lhe seguirá: citado no comunicado, Fernando Medina pede que se mantenham políticas “que assegurem o equilíbrio orçamental e a redução da dívida pública”. “Só esse caminho nos permitirá apoiar as famílias e a economia em momentos de crise e preservar e continuar a reforçar a credibilidade externa do país”.
A redução “preferencial” da dívida pública
Segundo o INE, a dívida pública das administrações públicas terá diminuído para 99,1% do PIB em 2023, um patamar não tão ambicioso quanto chegou a ser calculado pelo Banco de Portugal, de 98,7%, com base no deflator do PIB no terceiro trimestre. Na altura, o Ministério das Finanças estimava uma possível alteração de, no máximo, até 98,8% ou 98,9%. Afinal, com base nos dados mais atualizados disponíveis sobre o PIB, chegou aos 99%, mas não deixa de ser uma redução expressiva face a 2022 (112,4%).
A lei de enquadramento orçamental prevê que o excedente deva ser usado para amortizar a dívida pública. Foi esse o alerta deixado pelo Conselho das Finanças Públicas na avaliação que fez ao Orçamento do Estado para 2024, ainda antes da crise política que levou à queda do Governo, e numa altura em que o Executivo mostrava intenção de avançar com um fundo (que ficou conhecido por “Fundo Medina”), para guardar os excedentes orçamentais.
No entendimento do organismo liderado por Nazaré Costa Cabral, divulgado em outubro, a lei de enquadramento orçamental determina que quando a dívida pública ainda é excessiva (acima dos 60% do PIB, como atualmente), deve dar-se prioridade em redução a dívida pública, quando há um excedente orçamental. Só depois haveria espaço para uma almofada financeira de estabilização.
O governo mudou e o discurso já não é o da almofada de estabilização, mas de qual a margem orçamental para acomodar promessas eleitorais da Aliança Democrática (AD) como a recuperação do tempo de serviço dos professores ou o alargamento do suplemento de risco para a GNR e a PSP.
Em declarações à RTP3, o economista Ricardo Ferraz disse que há, entre os eleitores, uma “expectativa” de que, perante um excedente desta magnitude, parte dele seja distribuído em despesas que consideram “necessárias”. Ainda assim, o economista entende que a prioridade deveria ser a redução da dívida, a criação de um fundo de emergência que funcionaria como uma espécie de “mealheiro”, uma reforma fiscal progressiva e uma reforma do Estado para “encontrar algumas poupanças”.
O entendimento de Fernando Medina é que o atual orçamento tem capacidade para acomodar algumas das promessas eleitorais da Aliança Democrática (AD), como a recuperação de tempo de serviço dos professores que calcula que se fixe em 331 milhões de euros de despesa permanente por ano, ou o suplemento de risco para a GNR e PSP, em linha com o passou a ser pago à PJ, de 154 milhões de euros, como calculado pelo próprio Executivo.
É “perfeitamente acomodável dentro do Orçamento deste ano, sem necessidade de orçamento retificativo”, disse Fernando Medina na semana passada. Nessa ocasião, já tinha sublinhado: o que é importante é garantir que as soluções apresentadas pelo novo governo sejam “sustentáveis do ponto de vista das finanças públicas”.
As contas estão mesmo certas?
O economista João Borges de Assunção, do Núcleo de Estudos de Conjuntura da Economia Portuguesa (NECEP) da Universidade Católica, acredita que o excedente conhecido esta segunda-feira se trata de um “bom resultado para as finanças públicas”, embora beneficie de “alguns efeitos pontuais”. Mas lembra que o orçamento do Estado para 2024 “já usou parte desta folga ao prever um excedente inferior”, de cerca de 530 milhões de euros.
E coloca as coisas em perspetiva: “No fundo o Estado tem um excedente orçamental médio nestes dois anos de cerca de 0,6% do PIB nominal, o que é adequado tendo em conta que a dívida pública está ainda muito acima dos 60% do PIB”.
Além disso, alerta que até aqui o “principal benefício” da inflação veio por via do IVA, mas os aumentos de despesa inscritos no Orçamento de 2024 “poderão ser bem superiores às subidas do IVA este ano”. Acresce que está em curso um “processo de desinflação”, “positivo em si mesmo”, mas “pode trazer surpresas adversas nas finanças públicas”, avisa.
O economista também acredita que as novas regras europeias orçamentais, que ainda não foram aprovadas pelo Parlamento Europeu, podem vir a limitar as opções do próximo governo em relação à despesa, “particularmente as despesas permanentes que são a origem dos problemas de finanças públicas da generalidade dos países”.
De acordo com o INE, foram os fundos da Segurança Social a suportar o excedente, já que a administração central apresenta um défice de 2,328 mil milhões e a local de 147,8 milhões. João Borges de Assunção desvaloriza esta diferença tão significativa e diz que esta estrutura “é normal, já que por exemplo a despesa com o serviço da dívida é suportada, contabilisticamente, pela administração central”.
Para Paulo Rosa, economista-sénior do Banco Carregosa, o excedente mostra que Portugal “está realmente no caminho das ‘contas certas’, impulsionado por uma evolução macroeconómica favorável que permite arrecadar mais receita”. Este resultado é conseguido apesar da conjuntura desfavorável em muitos países membros da Zona Euro, sobretudo da Alemanha, sublinha.
Paulo Rosa diz que a economia tem estado suportada pela subida do emprego e pelo “contributo robusto do setor do turismo”. Mais emprego não significa só mais receita para a Segurança Social, mas também “um acréscimo do PIB e consequente aumento das receitas fiscais, impulsionadas também pela resiliência do setor do turismo”. Por isso, entende que esta melhoria vai “suportar” as contas públicas, contribuindo para outros excedentes orçamentais e para a descida do rácio da dívida pública em relação ao PIB nominal. E apesar de a inflação estar numa trajetória descendente, acredita que a economia nacional seja impulsionada com essa desaceleração se ela representar um “suporte ao consumo”.
Mas dentro do PS, o anúncio do excedente histórico (em democracia) parece ter sido recebido de forma agridoce. No fim de semana, o presidente do partido, Carlos César, disse esperar que o excedente não fosse um “excesso”. Ao Observador, já depois de conhecidos os dados do INE, defendeu que a gestão das contas públicas foi “extraordinariamente positiva”, mas acrescentou que o excedente poderia ter sido usado para “resolver mais algumas pendências”, em vez de se deixar essa tarefa ao próximo governo, incluindo os aumentos para algumas carreiras. Nas próximas semanas, se verá como Montenegro equilibra os apelos de “equilíbrio” orçamental com as “expectativas” criadas junto dos eleitores.