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Dinheiro, poder, luxo, intriga, festas. Do glamour à decadência, a saga da casa histórica da família Espírito Santo

Da estadia dos duques de Windsor cercados por espiões aos casamentos e Natais da família. As histórias (e as plantas) do palacete de Verão comprado por Ricardo Espírito Santo há oito décadas.

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A intenção de comprar “a casa de Cascais na Estrada da Boca do Inferno” surge pela primeira vez numa carta escrita pelo próprio Ricardo Espírito Santo, avô de Ricardo Salgado, em 7 de Novembro de 1932. Foi o ano em que se tornou presidente do banco com o nome da família, quando tinha 32 anos, substituindo o irmão mais velho, depois de um escândalo amoroso. José Espírito Santo estava apaixonado por Vera Cohen, a cunhada do seu irmão Ricardo. Mas tanto ele como ela eram casados. No fim deste ano, enviou-lhe um bilhete: “Faz a mala que eu vou-te mandar raptar”. Ostracizados pela alta sociedade portuguesa e até por uma parte da família, fugiram de comboio para Paris, onde ficaram a viver. Foi por isso que o avô de Ricardo Salgado comprou as ações ao irmão e passou a liderar o Banco Espírito Santo, onde tinha sido secretário-geral nos 12 anos anteriores.

Ricardo Espírito Santo em 1931, um ano antes de assumir a presidência do banco, depois do escândalo amoroso do irmão (Fonte: Ricardo do Espírito Santo Silva: coleccionador e mecenas)

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Rapidamente se tornou um dos homens mais influentes na economia portuguesa, uma espécie de primeira versão do Dono Disto Tudo, a alcunha aplicada ao seu neto oito décadas mais tarde. Era ao mesmo tempo um ávido colecionador de antiguidades, desde que comprou o primeiro tapete com apenas 16 anos, o que levou aliás a que os irmãos fizessem troça dele quando entrou em casa. Ao longo da vida, juntou tantos quadros, esculturas, porcelanas, azulejos e móveis antigos, que se dedicava a decorar não só as suas casas como também, mais tarde, as das suas quatro filhas. “O meu avô fazia casas para as filhas e dava-as completamente decoradas. Era só levar a escova de dentes”, recorda ao Observador uma das suas netas, que pediu para não ser identificada.

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“Nós estamos a vender a casa porque eu e a minha irmã precisamos de dinheiro. A nossa mãe morreu há quase 9 anos. Já não se justifica viver nesta casa, já não tenho nenhum filho em casa, não precisamos de uma casa tão grande"
Mary Salgado, irmã de Ricardo Salgado, e atual presidente da Casa dos Pórticos, a empresa que detém a casa herdada do avô

Outra neta, Mary Salgado, irmã de Ricardo Salgado, presidente da Casa dos Pórticos, a empresa proprietária da casa inaugurada pelo seu avô nos anos 30, admitiu ao Observador em Março de 2019 que o palacete estava à venda. Não quis confirmar o preço de 20 milhões de euros, avançado pelo Jornal Económico, mas adiantou a razão: “Estamos a vender a casa porque eu e a minha irmã precisamos de dinheiro”.

Desde a compra pelo seu avô até ao momento em que a família se desfaz da mansão, aconteceu ali um pouco de tudo: cenas de espionagem em plena II Guerra, visitas da realeza de vários países, noites de jogo, casamentos para 500 convidados, Natais com 100 pessoas, contactos com Salazar, agentes da PIDE a falar com hóspedes e criados, acertos de heranças, obras embargadas, insultos gritados, sermões bíblicos escritos e protestos ruidosos. Esta é uma história de poder, luxo e decadência contada através da vida de um palacete.

A foto de Henri Cartier-Bresson num dia concorrido na piscina da casa da Boca do Inferno, nos anos 50 (Magnum Photos/Fotobanco.pt)

Henri Cartier-Bresson/Magnum Photos/Fotobanco.pt

As plantas. Como Ricardo Espírito Santo dividiu os 4 pisos

Ricardo Espírito Santo formalizou a compra da casa no Parque da Gandarinha, frente à Boca do Inferno, por 120 contos (114 mil euros a preços atuais), numa escritura assinada a 27 de Fevereiro de 1936. A venda foi feita pela Companhia Geral do Crédito Português, que tinha sede na Rua Augusta, 235, a seis minutos a pé da sede do Banco Espírito Santo na Rua do Comércio. O banqueiro terá ainda precisado de mais 136 contos — era pelo menos esse o orçamento inicial para concluir as obras e introduzir pequenas mudanças no esboço inicial. A construção da casa tinha arrancado em 1925, segundo João Miguel Henriques, autor do livro “Da Riviera Portuguesa à Costa do Sol”, estando destinada a Charles Henry Bleck, um dos fundadores da Shell, diretor da Sociedade Portuguesa de Automóveis e desportista multifacetado — quase tanto como o próprio banqueiro, que ganhou taças de esgrima, foi campeão nacional de golfe, jogava ténis e bridge e ainda praticava vela, natação, remo e hipismo.

Ricardo Espírito Santo comprou a sua casa de Verão por 120 contos, mas ainda teve de pagar mais 136 contos pelas obras. “Estuques e pinturas de primeira ordem, tudo será executado a rigor e com materiais de primeira qualidade”, prometia o arquitecto Carlos Ramos.

O “projeto de alteração e acabamentos à casa do Exmº. Sr. Ricardo Espírito Santo Silva na sua propriedade situada em Cascais”, como se lê no título de cada planta, só deu entrada na Câmara de Cascais — onde o Observador o consultou — em Agosto de 1937. “Estuques e pinturas de primeira ordem, instalações de água, luz e esgotos, tudo será executado a rigor e com materiais de primeira qualidade”, prometia o arquitecto Carlos Ramos. E chamava a atenção para “o projeto do muro de vedação”, que seria “mais um motivo decorativo a tomar em linha de conta”. Mary Salgado recorda que o avô era avisado de cada vez que se iam fazer demolições em Lisboa, para poder aproveitar os azulejos antigos. Foi assim que conseguiu os azulejos do séc. XVII que viriam a decorar os muros interiores desta sua nova casa de Verão.

[Veja nesta fotogaleria as plantas do terreno e de cada piso]

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As plantas entregues na Câmara de Cascais permitem ver com detalhe o plano inicial do banqueiro. Primeiro, a divisão da propriedade, com desenho da gigantesca piscina descoberta com 260 metros quadrados, ao lado o relvado, os lavadouros, a garagem e a casa de habitação, com uma entrada principal e uma entrada de serviço.

Depois a planta por pisos: na cave ficariam, além da despensa e da casa das caldeiras, uma garrafeira e uma casa forte. No rés-do-chão, um bengaleiro junto ao hall, uma sala de jantar com acesso ao terraço, uma sala de estar com saída para o alpendre, um quarto, cozinha, copa, despensa e dois quartos de banho. Subindo ao primeiro andar: outros seis quartos, mais um quarto de vestir, três casas de banho, uma arrecadação, uma rouparia e uma área de serviço. Por fim, no sótão haveria mais 5 quartos, arrecadação, um quarto de banho e retretes, uma área de costura e outra para engomadoria. Este sótão, segundo o arquitecto, seria aproveitado para alojar o pessoal que ali prestasse serviço.

A relação severa com as filhas e os almoços com o melhor amigo

Fora de casa, além de banqueiro, Ricardo Espírito Santo era presidente da Sacor, a petrolífera do regime, controlava a seguradora Tranquilidade, tinha ações em companhias com investimentos agrícolas em Angola e Moçambique e de cada vez que tinha de se identificar num documento, autodenominava-se como proprietário. Movimentava-se como poucos entre as principais embaixadas representadas em Lisboa. Nunca descurava a vida social, animando as principais festas do Turf, um clube elitista no centro de Lisboa, e os eventos do Clube da Parada, em Cascais, integrando os órgãos sociais que geriam estes dois espaços logo a partir dos 25 anos. Viria a ser um dos fundadores do Hotel Ritz e a ter uma enorme influência junto de Salazar, que o recebia aos domingos à noite para o ouvir sobre as principais matérias da economia.

“Um dia apanhou-me na sala a fumar e também levei. Eu disse que era só uma ‘passa’ de um amigo. Ele entrou e viu-me, odiava a mentira, e perguntou: ‘O que é que estava a fazer?’ Eu disse nada. E à frente de toda a gente, traz, um bofetão”, contou Rita, a última filha a casar e a que mais tempo viveu com o pai. Recordou que Ricardo Espírito Santo “recebia ministros a fazer a barba” e “contava muitas anedotas”, mas “à mesa só ele é que falava”.

Como é que um homem tão poderoso mandava dentro de casa? De forma algo severa, como descreveu a filha Rita, numa entrevista feita pelo historiador Carlos Alberto Damas e arquivada no antigo Centro de História do BES: “Era o mais carinhoso possível. Mas de vez em quando levávamos umas bofetadas. Uma vez fui com uns primos direitos passear de automóvel a Sintra. Quando chegámos ele estava à nossa espera e pregou-me um bofetão. A minha prima disse: ‘Oh tio, ela não teve culpa, fui eu que a obriguei’. Outra bofetada nela. Apanhámos as duas. E tínhamos 16, 17 anos.” Terá sido em 1943/1944, portanto.

O banqueiro não deixava as filhas saírem de casa sozinhas, com receio de que fossem ter com algum rapaz. E não autorizava que fumassem. “Um dia apanhou-me na sala a fumar e também levei. Eu disse que era só uma ‘passa’ de um amigo. Ele entrou e viu-me, odiava a mentira, e perguntou: ‘O que é que estava a fazer?’ Eu disse ‘nada’. E à frente de toda a gente, traz, um bofetão”, contou Rita, a última filha a casar e a que mais tempo viveu com o pai. Recordou que Ricardo Espírito Santo “recebia ministros a fazer a barba” e “contava muitas anedotas”, mas “à mesa só ele é que falava”.

Ricardo Espírito Santo (à frente da 2ª senhora à esq.) no casamento de Vera e António Ricciardi. em 1945. (Fonte: "Fotobiografia de Manuel Ribeiro do Espírito Santo Silva" de Carlos Alberto Damas)

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A filha mais velha, Maria da Conceição (mãe de Ricardo Salgado), noutra entrevista, recordou os almoços de sexta-feira na Boca do Inferno do pai com o “maior amigo”, Mário de Sousa, do Banco Fonsecas, Santos & Vianna. “Vinha almoçar aqui a casa todas as sextas-feiras, tratava o meu pai por menino. Só eu é que almoçava com eles, de maneira que ouvia as conversas. Era uma pessoa extraordinária. Foi ele que valeu ao meu pai quando o tio José se foi embora (em 1932).”

Os duques de Windsor e o pedido dos alemães ao banqueiro

Ainda estava a casa cor-de-rosa praticamente a acabar de ser estreada quando recebeu aqueles que foram provavelmente os seus hóspedes mais ilustres de sempre: os duques de Windsor viveram ali durante quase todo o mês de Julho de 1940, em plena II Guerra Mundial. O Duque de Windsor ascendeu ao trono do Reino Unido em Janeiro de 1936, mas abdicou em Dezembro do mesmo ano para poder casar-se com Wallis Simpson, uma americana que já tinha passado por dois divórcios. Quando as tropas alemãs ocuparam a França, os duques atravessaram Espanha e dirigiram-se a Portugal, a pensar que seguiriam para Inglaterra. O governo de Churchill proibiu o casal de ficar na embaixada em Lisboa, pelo que a alternativa era para ter sido o Hotel Palácio do Estoril — mas o gerente encaminhou-o para uma casa com piscina e jardim: o palacete de Ricardo Espírito Santo na Boca do Inferno. A passagem do antigo monarca por Portugal poderia assim ser mais discreta, o que agradaria a Salazar para atenuar embaraços diplomáticos com os ingleses.

Os hóspedes instalaram-se na suite do primeiro andar da mansão, mobilada com peças do século XVIII e porcelana da Companhia das Índias, e com uma dúzia de criados ao seu dispor. Um deles, o cozinheiro, chegou a queixar-se a Mary Espírito Santo por o duque só querer sardinhas e salada, rejeitando os outros pratos que lhe eram propostos, segundo a biografia de Wallis Simpson escrita por Geoffrey Bocca, “The woman who would be queen”.

A estadia dos duques foi controlada em permanência pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE, antecessora da PIDE), que colocou agentes em contacto com os empregados e a controlar os jardins junto ao palacete. O próprio diretor da polícia política, Agostinho Lourenço, deu uma reprimenda ao duque por ele ter ido dar um passeio sozinho, sem avisar a polícia, como contou Tomás Pinto Basto, visita habitual da casa, a Michael Bloch, autor de “Operation Willi” — um livro que detalha todas as manobras de Espanha e Alemanha para tentar usar contra o Reino Unido o antigo monarca, que não escondia a sua simpatia por Hitler.

Uma das fontes mais ricas sobre a estadia dos duques na casa cor-de-rosa é um minucioso relatório de dez páginas feito por um agente da polícia política, onde narra todo o tipo de histórias. Exemplos: uma discussão com fotógrafos por o duque não querer que se soubesse que estava a jogar golfe enquanto o seu país estava a ser atacado; os banhos na piscina durante a tarde;  uma noitada a jogar bridge até às 4h da manhã com o casal Espírito Santo, um espanhol “conhecido pelos criados como batoteiro” e duas senhoras que vieram do Casino, em que “todos eles jogavam forte”; jantares com os barões de Rothschild (refugiados em Portugal durante a II Guerra), com o ministro das Finanças, João Lumbrales, com Luiz Teixeira de Sampaio, secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros e outros membros da alta sociedade; e, claro, todos os 14 dias em que Ricardo Espírito Santo esteve com o duque, enquanto este esperava que o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, lhe entregasse um posto compatível com o estatuto de antigo rei.

O Duque de Windsor com o banqueiro no baloiço junto à piscina da casa da Boca do Inferno (Fonte: "Banco Espírito Santo. A portuguese financial dynasty" de Carlos Alberto Damas)

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Acabou por ser nomeado Governador das Bahamas, o que o desiludiu por ser um cargo quase irrelevante e afastado de tudo. Ricardo Espírito Santo era amigo pessoal do embaixador alemão em Lisboa e ia-lhe fazendo confidências sobre o estado de espírito do duque, que eram rapidamente reencaminhadas pelo diplomata para o ministro dos Negócios Estrangeiros de Hitler, Joachim von Ribbentrop. Este recebia outras informações privilegiadas, transmitidas pelo embaixador em Madrid, com base em relatos de dois espanhóis que estiveram hospedados na Boca do Inferno com os duques de Windsor, como notou José António Barreiros neste texto sobre as intrigas à volta do duque de Windsor em Cascais.

O MNE alemão, com a aprovação de Hitler, decidiu enviar para Cascais um agente da Gestapo, Walter Schellenberg, que deveria convencer o duque a recusar a missão nas Bahamas e a instalar-se num país neutral como a Suíça, tendo mesmo o regime nazi autorizado o depósito de 50 milhões de francos suíços numa conta que seria entregue ao antigo monarca. Caso o duque de Windsor não se deixasse convencer, o agente da Gestapo estava autorizado a usar a coação. Ou seja, no limite poderia raptá-lo.

Com a ajuda do agente da PVDE José Catela, Schellenberg recebeu informações e ajuda de 18 agentes portugueses e também de um mordomo japonês que estaria infiltrado na casa e lhe terá passado os croquis com a divisão dos espaços. A biografia do duque de Windsor escrita por Martin Allen faz referência a um cozinheiro japonês, Jikuro Suzaki, que segundo José António Barreiros tinha sido recrutado nos anos 30 pelos serviços de espionagem alemães.

Vários descendentes do banqueiro asseguram contudo não ter qualquer memória de um japonês a trabalhar na casa. “Tínhamos um motorista e dois criados, o Manuel e o José, estiveram aqui toda a vida até morrerem. O Manuel veio para cá da Casa Pia. O meu pai começou por lhe dar o trabalho de lavar carros e outras coisas assim”, disse a mãe de Ricardo Salgado, numa entrevista ao Centro de História do BES. Maria da Conceição Salgado, que almoçou várias vezes com os duques de Windsor na casa da Boca do Inferno, considerou que até teria sido “fácil raptar o duque”, uma vez que ele “ia todos os dias jogar golfe”.

Mas o plano do eventual rapto acabou por não ser posto em prática, porque entretanto o duque aceitou (embora contrariado) o cargo nas Bahamas, para onde iria embarcar a 1 de Agosto. Os alemães perceberam que tinham pouco tempo e decidiram abordar diretamente o antigo monarca. Na véspera da partida do duque, o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão fez chegar ao seu embaixador em Lisboa o telegrama 442, a autorizar que Ricardo Espírito Santo o tentasse convencer a cancelar o embarque e lhe transmitisse um recado: quando derrotasse os ingleses no fim da Guerra, a Alemanha contava com os Windsor para restabelecer relações com o Reino Unido. A forma como o governante alemão se referiu ao banqueiro português tem suscitado enorme controvérsia sobre a ligação de Ricardo Espírito Santo ao regime nazi. Michael Bloch, no livro “Operation Willi”, traduziu essa alusão no telegrama de Ribbentrop assim: “O nosso agente português com quem o Duque está a viver”. Mas a palavra usada admite também o sentido de “confidente” o que é um pouco diferente de agente.

Acrobacias sincronizadas antes do mergulho na piscina de Ricardo Espírito Santo (foto Coleção Particular)

O embaixador alemão em Lisboa relatou depois ao seu ministro que Ricardo Espírito Santo tinha abordado o antigo monarca, e que este tinha manifestado simpatia por Hitler, mas achou melhor não desobedecer ao governo britânico. Quanto ao presidente do BESCL (a instituição financeira passou a chamar-se Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, depois da fusão com o banco do avô de Pedro Queiroz Pereira, em 1937), foi referido no telegrama como “um indivíduo irrepreensível, que nunca negou uma atitude amigável para com a Alemanha.”

Foi o próprio Ricardo Espírito Santo que transportou os duques de Windsor ao navio. Saíram de Portugal, com a sua bagagem de 85 malas, mas deixaram para sempre uma aura de charme aristocrático a rodear a casa da Boca do Inferno. Basta ver esta sessão fotográfica que fizeram para a revista Life à volta da piscina. Ou aquela que terá sido uma das primeiras referências em livros à casa de verão do banqueiro, em 1943, nas “Memórias da Linha de Cascais”, de Branca de Gonta Colaço e Maria Archer: “À beira do Parque Gandarinha, na estrada da Boca do Inferno, há três casas em correnteza. A maior, a cor-de-rosa, é a de Ricardo Espírito Santo. Palacete de luxo, com salões de aparato; no parque, a piscina de mármore em que a duquesa de Windsor tomou banho.”

As festas de casamento e os bens das filhas

A casa era essencialmente usada no Verão, mas também era ali que se faziam os casamentos da família. No caso da filha mais velha, Maria da Conceição, coincidiu tudo, pois foi em 7 de setembro de 1942 que se celebrou o seu matrimónio com João Salgado, pai de Ricardo Salgado. Seis dias antes, a 1 de Setembro, uma terça-feira, o notário Armando Vieira de Sousa foi ao “palacete do Excelentíssimo sr. Dr. Ricardo Ribeiro Espírito Santo Silva, na Estrada da Boca do Inferno”, como declarou na certidão de casamento, para formalizar a união no regime de separação de bens e registar o que a filha do banqueiro possuía e levava para o casal: um prédio urbano situado na R. São Domingos, 43 e 45, com o rendimento colectável de 3.458$00; o recheio da casa, para onde iam viver na Av. Tenente Valadim; e as jóias de uso pessoal. Os bens do noivo, João Salgado, eram “as coisas de uso pessoal”.

Casamento dos pais de Ricardo Salgado, Maria da Conceição e João Salgado, em Setembro de 1942

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Como contou o jornal O Século, a seguir à cerimónia religiosa “foi servido na elegante residência dos pais da noiva, à Boca do Inferno, um finíssimo lanche. (…) Na assistência notava-se grande número de pessoas da nossa melhor sociedade elegante”. Os noivos seguiram depois para o Norte, para a lua-de-mel. Ricardo Salgado nasceria em Cascais daí a 21 meses, às 11h30 de 25 de Junho de 1944. A mãe recebeu do avô 5 contos (mais de 2 mil euros a preços atuais) — era o que o banqueiro oferecia às filhas de cada vez que lhe davam mais um neto.

Quando casava uma filha, Ricardo Espírito Santo escrevia a Salazar. Em papel timbrado com a morada da casa “Bocca do Inferno Cascaes” [sic], comunicava a cerimónia ao Presidente do Conselho, mesmo sabendo que ele não aceitava convites do género, mas fazia-lhe saber que não seria esquecido: “Será respeitosamente lembrado por todos nós com a ternura e gratidão que eu e os meus sinceramente alimentamos nos nossos corações”.

Em Setembro de 1945, como se lê na correspondência particular do ditador arquivada na Torre do Tombo, informou-o sobre o casamento da segunda filha, Vera, “com o tenente da Marinha António Roquette Ricciardi (um excelente rapaz)” — que viria a ser o pai de José Maria Ricciardi.

A filha mais nova, Ana Bustorff, mãe da futura ministra da Cultura Maria João Bustorff, casou-se em 1949 com o engenheiro eletrotécnico António Bustorff, filho de um deputado e advogado influente com o mesmo nome, que conheceu em Cascais numas férias de Verão.

António Bustorff e Ana Espírito Santo na festa do copo d'água na casa da Boca do Inferno, em 1949 (foto: Coleção Particular)

A noiva, com um “vestido de cetim e tule brancos e na cabeça uma elegante touquinha com flores”, segundo o Diário de Lisboa, entrou na capela dos Condes de Castro Guimarães ao meio-dia, de braço dado ao pai. A seguir entrou a mãe da noiva, toda de cinzento, acompanhada pelo pai do noivo.

Entre os 500 convidados para o copo d’água nos jardins da casa cor-de-rosa estiveram o Rei Umberto de Itália, os Condes de Barcelona (pais do Rei Emérito Juan Carlos e avôs do Rei Felipe) e os Condes de Paris, tendo a condessa sido madrinha da noiva: posaram aliás todos juntos numa fotografia. O elemento da família que captou a imagem legendou-a no seu álbum particular desta forma: “Um retrato histórico”.

"Um retrato histórico". Da direita para a esquerda: o conde de Barcelona, os condes de Paris, a condessa de Barcelona, o rei Umberto e os noivos Ana Espírito Santo e António Bustorff (foto: DR)

Seis anos mais tarde, em 1955, a própria filha do Rei Umberto de Itália, Maria Pia de Sabóia, se deslocou à casa da Boca do Inferno no dia em que se casou com o príncipe Alexandre da Jugoslávia, não para a festa do copo d’água, mas para os retratos oficiais frente ao palacete, por ter uma escadaria maior do que a casa onde vivia o seu pai, ali ao lado.

Os duches para os netos. E os contactos com Salazar

Em 1952, Ricardo Espírito Santo pediu à Câmara de Cascais autorização para uma pequena mas significativa alteração: a colocação de “dois duches para uso de seus netos após os banhos na piscina”. Ricardo Salgado tinha 8 anos. Outra descendente do banqueiro lembra-se que a água que enchia a piscina era água do mar, sendo esvaziada à quinta-feira, razão por que os netos e os sobrinhos-netos de Ricardo Espírito Santo eram autorizados a tomar banho na piscina nesse dia da semana.

Um elemento da família em pleno voo para a piscina (Foto de Coleção Particular)

Outra memória do tempo em que eram crianças, comum aos netos mais velhos e a alguns sobrinhos mais novos (filhos do irmão mais novo, Manuel Espírito Santo), era um hábito do banqueiro quando os via: dava-lhes uma nota de 20 escudos (qualquer coisa como 8 euros a preços atuais) “novinha em folha”. Por vezes juntava uma caixa de pastilhas.

A casa integrava no início dos anos 50 uma espécie de roteiro oficial de Portugal para efeitos de propaganda. A jovem norte-americana Joy Godbehere ganhou um concurso da revista Glamour para vir a Portugal e um dos locais onde a levaram foi precisamente à casa da Boca do Inferno, tendo sido publicada uma foto sua no baloiço da piscina de Ricardo Espírito Santo, contou recentemente a revista Sábado. Também o fotógrafo Henry-Cartier Bresson foi à casa do banqueiro, onde captou uma imagem com dezenas de pessoas na piscina. “Quando o avô era vivo, dava imensos almoços e festas à volta da piscina para os amigos que moravam em Cascais”, recorda Mary Salgado.

À direita, o comandante Ricciardi e a mulher Vera nos jardins do palacete. (Fonte: Coleção particular)

Christine Garnier, a jornalista francesa íntima de Salazar que publicou um livro de propaganda em várias línguas sobre o Presidente do Conselho, também foi convidada por Ricardo Espírito Santo a passar uns dias na sua casa de Cascais. Foi a própria jornalista que o confidenciou ao ditador, que tomou nota disso no seu diário, logo a seguir à anotação sobre o telefonema da Embaixada em Paris a dar conta da morte da Rainha D. Amélia, em 25 de Outubro de 1951.

Na agenda telefónica do ditador referente a 1954, arquivada na Torre do Tombo, constam os números 60483, para ligar a Ricardo Espírito Santo quando estivesse em Lisboa, e 143, para a casa de Cascais. Foi da casa de verão que Ricardo Espírito Santo telefonou dezenas de vezes a Salazar, sobretudo nos domingos em que não se encontravam na residência oficial do Presidente do Conselho. E várias das cartas que lhe dirigiu também foram redigidas na Boca do Inferno, sobretudo na parte final da vida.

Por exemplo, em 4 de Novembro de 1951, um domingo, escreveu a queixar-se por o encontro habitual ter sido cancelado: “Tenho muita pena de não ir aí hoje, a nossa conversa dominical é, para mim, o maior prazer da semana, mas obedeço na esperança de que serei compensado. Disponha sempre do seu muito dedicado e muito respeitoso amigo”.

E a 2 de Setembro de 1954, novamente em papel com o timbre “Bocca do Inferno, Cascaes”, as primeiras linhas foram precisamente sobre o local: “Aqui cheguei esta tarde, mas nem o regresso a este ambiente de que gosto tanto consegue vencer a tristeza que me vai no fundo da alma.”

O último retrato do banqueiro, em 1954 (Fonte: Ricardo do Espírito Santo Silva: coleccionador e mecenas)

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O presidente do BESCL acabara de se refugiar no palacete frente ao mar, depois de ter tido alta de um internamento no hospital da CUF, na sequência de um enfarte. Cinco meses mais tarde voltou ao mesmo hospital para ser operado e a cirurgia até tinha corrido bem, aparentemente. “Estava melhorando e com relativamente boa disposição e às 22h30 a esposa retirou-se para sua casa”, lê-se no Diário de Notícias do dia seguinte. Mas, 15 minutos após a meia-noite, o banqueiro não conseguiria resistir a uma paragem cardíaca.

O obituário publicado no jornal O Século viria a destacar a sua “concepção arejada e moderna” da vida de sociedade e a importância da casa cor-de-rosa onde passava os verões: “O seu palácio em Cascais era um centro de vida europeia onde, com requintes de fidalguia e de bom gosto, recebia festas coroadas, grandes figuras da política e da mentalidade estrangeiras, o que, em certa altura, levou um jornalista, Piero Saporiti, a escrever numa gazeta parisiense que ‘um banqueiro português colecciona os reis no exílio’”.

A fortuna que deixou à família. E o desejo da capela

Foi enquanto esteve internado no quarto particular n.º 1 do Hospital da CUF, em 1954, depois de um ataque cardíaco, que o presidente do BESCL decidiu chamar o notário para registar o testamento. Indicou como testamenteiros a sua mulher, os seus irmãos José e Manuel Espírito Santo, os amigos Mário Luís de Sousa e Rogério Cândido da Silva (diretor no banco), e Guilherme Possolo, da Fundação Ricardo Espírito Santo (um museu-escola de artes decorativas que inaugurou em 1953).

A lista de bens do banqueiro encheu 448 páginas dactilografadas. A fortuna que deixou à mulher e às filhas foi avaliada à época em 597.814 contos, que valeriam atualmente 79 vezes mais, aplicando o coeficiente de desvalorização de moeda. Ou seja, corresponderia a 235,9 milhões de euros. Metade ficou para a mulher, a outra metade foi dividida por cada uma das quatro filhas.

Agrupou os seus títulos financeiros em quatro lotes. Cada conjunto incluía 3.500 ações do BESCL, 1.400 ações da Sociedade Agrícola do Cassequel, 1.400 ações da Companhia Angolana de Agricultura; 1.400 ações da Sacor (empresa de refinação de petróleos); 1.400 ações da Companhia de Algodões de Moçambique; e 140 ações do Banco Fonseca Santos & Vianna.

As quatro filhas receberiam o rendimento anual dos títulos, mas só enquanto os netos fossem menores. Quando chegassem aos 21 anos, tinham direito a receber o seu quinhão de acções. Por exemplo, Ricardo Salgado, que teve mais quatro irmãs, terá recebido um quinto das acções atribuídas à sua mãe.

Ricardo do Espírito Santo Silva e António Salazar

Ricardo Espírito Santo e Salazar, que recebia o banqueiro aos domingos à noite

DR

A lista de bens do banqueiro encheu 448 páginas dactilografadas. A fortuna que deixou à mulher e às filhas foi avaliada à época em 597.814 contos, que valeriam atualmente 79 vezes mais, aplicando o coeficiente de desvalorização de moeda. Ou seja, corresponderia a 235,9 milhões de euros. Metade ficou para a mulher, a outra metade foi dividida por cada uma das quatro filhas.

À mãe de Ricardo Salgado (e a cada uma das três irmãs) coube um oitavo do total da herança. Segundo documentação consultada pelo Observador na Torre do Tombo, foram-lhe atribuídos bens no valor de 14.981.385$10, sendo 313.179$12 em imóveis e 14.668.155$98 em bens de natureza mobiliária (sobretudo ações e obras e arte).

O quadro de São Bernardino de Siena que o banqueiro tinha sempre no quarto - e que quis deixar a Salazar (Fonte: Ricardo do Espírito Santo Silva: coleccionador e mecenas)

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A viúva de Ricardo Espírito Santo visitou Salazar ao fim da tarde de 11 de Março, cinco semanas após o funeral. O banqueiro deixou como última vontade que fosse entregue ao ditador uma casa no Estoril e um quadro de São Bernardino de Siena, pintado a óleo sobre madeira de carvalho, no séc. XVI, por Quentin Metsys. Segundo a neta Mary Salgado, o avô levava esse quadro de Lisboa para Cascais no Verão, para o ter sempre no seu quarto. Salazar terá declinado, segundo a resposta que anotou no seu diário: “Quanto à casa, impossível aceitar; quanto ao quadro ver-se-ia mas em caso de aceitar só para entregar imediatamente a um museu (o da Fundação?)”. Acabaria por ser doado à Fundação Abel Lacerda, no Caramulo.

Outro dos últimos desejos deixados pelo banqueiro foi a construção de uma capela num canto desta sua propriedade em Cascais. E assim em Abril de 1955, dois meses após a sua morte, deu entrada na autarquia local um pedido para ser construída essa capela, para a qual Ricardo Espírito Santo deixara tudo encaminhado.

O esboço da fachada norte da capela pedida por Ricardo Espírito Santo em testamento junto à casa da Boca do Inferno

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O projeto foi assinado pelo arquiteto Raul Lino, um dos mais importantes à época, que assegurou por escrito à Câmara de Cascais: “Esta obra de piedade será executada com esmero (…). Será aplicada cantaria [da região] em todos os vãos, degraus, e soleiras exteriores, cunhais, soco e fogaréus, balaustrada da teia e escada da cripta, no interior.  Os pavimentos da entrada, da capela e capita serão de lago tirado de riscos; sacristias e o coro alto serão assoalhados com pinho escolhido, a pequena tribuna e o pódio da capela mor serão de madeira exótica.” Também a porta das traseiras seria em madeira exótica envernizada; já a porta da frente da capela ficaria “revestida de bronze”. O visto final da câmara para a capela poder ser usada foi dado em 1962.

Mary ao New York Times: “O custo dos criados aqui não é assim tão elevado”

Nos anos 60, devido a um problema de saúde, a viúva do banqueiro, Mary Espírito Santo, deixou de querer viver nesta residência tão perto do mar e mudou-se para uma outra, num lote um pouco mais recuado. É dela uma das descrições mais genuínas sobre a vida quotidiana das elites em Portugal no fim do Estado Novo, feita ao New York Times, em 1969.

Identificada como “a elegante grande dama do poderoso clã de banqueiros Espírito Santo”, Mary Espírito Santo vivia rodeada por dez empregados, que no verão envergavam uma jaqueta branca, e no inverno trocavam por uma preta. A autora do artigo, Charlotte Curtis, deve ter-lhe feito uma pergunta sobre isso, porque a viúva de Ricardo Espírito Santo é citada a justificar-se: “O custo dos criados aqui não é assim tão elevado. Tive quatro criados ao almoço no Plaza de Nova Iorque e isso custou-me quase tanto como para servir um pequeno-almoço, um almoço, um lanche e um jantar para cerca de 17 pessoas em Portugal”.

Mary Espírito Santo no seu terraço num artigo do New York Times sobre a vida da elite portuguesa, em 1969

DR

Um dos seus prazeres era ver televisão enquanto jantava, sobretudo a série “O Fugitivo”. Em contraste, referiu-se ao Natal como uma canseira: “Nem me fale nisso. Gostava de poder fugir nessa época. Com os meus netos e todos os genros e primos, não consegue imaginar o que é. Tenho de preparar uns 70 presentes, talvez 75. Não quero pensar nisso”.

Sobre a sua casa propriamente dita, é referido um terraço com vista para um jardim com dálias enormes, azul e branco como cores dominantes do interior devido aos azulejos, uma casa de banho revestida com azulejos em tons violeta e amarelo do séc. XVIII, um armário com 17 vestidos de alta costura (Balmain, Dior e Castillo) e nas molduras fotografias com D. Juan, conde de Barcelona (pai de Juan Carlos), o Rei Umberto de Itália e o Duque de Windsor (“Só o conheci já depois de ter deixado de ser rei”).

Mary Espírito Santo contou ainda que a primeira língua que aprendeu foi o inglês. “Tive uma babysitter inglesa, toda a gente teve”. O jornal usa aqui um pouco de sarcasmo ao clarificar: “Quando refere toda a gente, a Srª. Espírito Santo não está a falar dos 9 milhões de cidadãos portugueses, mas antes dos nobres e aristocratas da sua geração”. Quando esta reportagem foi publicada, o país era já governado desde o ano anterior por Marcelo Caetano, que tinha substituído Salazar ao fim de 36 anos como Presidente do Conselho.

Revolução: a “amiga na luta” e as armas apontadas à viúva do banqueiro

A casa da Boca do inferno passou a ser habitada pela filha mais velha de Mary Espírito Santo, Maria da Conceição, (entretanto divorciada de João Salgado) e pelos seus filhos. Depois da revolução, um dos irmãos de Ricardo Salgado foi estudar hotelaria para a Suíça e a mãe acompanhou-o, ficando a viver nesse país. Ficou outra das suas filhas, Ana Salgado, a residir no palacete, para tentar evitar ocupações revolucionárias. Conseguiu, mas durante alguns meses do PREC teve dois populares a controlar as matrículas dos carros que entravam e saíam da propriedade.

Uma vista aérea da casa cor-de-rosa, com a piscina à direita (Foto DR)

DR

Já a avó viu a sua casa, ali ao lado, ser invadida por um grupo de revolucionários, à procura de Almeida Araújo, no 28 de Setembro de 1974, em vésperas da manifestação da maioria silenciosa, de apoio a Spínola. O arquitecto José Harry de Almeida Araújo, dirigente do Partido Liberal e um grande amigo de Mary Espírito Santo, era descrito de forma algo bizarra (e exagerada — e nalguns casos completamente incorreta) pelos serviços de informação militar, à época: “Tem um passado de aventureiro e de caçador de fortunas; vai no quinto casamento com cidadãs estrangeiras; vive com grande luxo e opulência, numa casa com mais de 30 divisões e duas piscinas, uma interior aquecida, e sete empregados, incluindo mordomo, jardineiro, motorista, cozinheira e preceptora; é visto com frequência no cais de Port Banus a passear o seu leopardo domesticado”.

A seguir ao 28 de Setembro, os investigadores militares encontraram em casa do arquitecto um recado urgente a dar conta de que Ricardo Salgado tinha telefonado à sua procura, uma semana antes da manifestação. Isto em si não prova nada, mas os investigadores acharam relevante. Também foi encontrada uma carta da mãe de Ricardo Salgado, Maria da Conceição, onde se assumia “amiga na luta” e informava que tinha contactado um médico de uma organização composta por ex-combatentes dispostos a fazer tudo por dinheiro. Juntava um pedido que poderia ter parecido bizarro: para a carta ser destruída depois de lida.

Na noite do 28 de Setembro, Almeida Araújo escondeu-se numa suite no 25.º andar do Hotel Sheraton, de onde telefonou entre outros para Mary Espírito Santo. E dirigiu-se a casa da amiga na Boca do Inferno enquanto andou a fugir ao Copcon. Pediu então a Rodrigo Leite de Faria, casado com Rita Espírito Santo, para ir a sua casa buscar o dinheiro que tinha no cofre, de forma a poder sustentar uma fuga.

As autoridades militares invadiram entretanto a casa da viúva de Ricardo Espírito Santo, à procura do dirigente do Partido Liberal. Encontraram Mary Espírito Santo com uma perna engessada, perguntaram-lhe por Almeida Araújo e apreenderam as suas duas agendas, cheias de contactos. “Tem muitos criados para lhe fazerem agendas novas”, terá dito um dos militares, segundo uma familiar. No piso de cima, estava uma neta de Mary Espírito Santo, de 18 anos, a quem apontaram as armas para a obrigar a descer as escadas.

“A casa é muito grande, tem uma sala enorme. Na casa de jantar, havia uma mesa grande cheia de tudo onde nos íamos servir. Aos empregados da casa juntava-se o pessoal que trabalhava com outros membros da família, para ajudarem no Natal. Faziam-se montinhos de prendas por cada agregado familiar. Ia lá de manhã e deixava as prendas em cada montinho. Mas ninguém dava cem prendas: as crianças recebiam sempre; já os mais velhos recebiam dos padrinhos, por exemplo. Mas era muito cansativo”.

Ainda no PREC, a 11 de Março, dia em que foi decidida a nacionalização da banca, vários elementos da família Espírito Santo foram postos na prisão de Caxias, mas o único deste ramo ligado aos descendentes de Ricardo Espírito Santo foi o comandante António Ricciardi. Os outros eram quase todos do ramo dos filhos de Manuel Espírito Santo, irmão mais novo de Ricardo. Ricardo Salgado tinha 30 anos. Escapou à prisão, mas ajudou à reconstituição do grupo Espírito Santo no exílio, em Londres, na Suíça e no Brasil, até regressar a Portugal no fim dos anos 80.

A sua avó materna, Mary Espírito Santo, morreu em Agosto de 1979. Após a divisão da herança, a mãe de Ricardo Salgado, Maria da Conceição (formalmente residente em Lausanne, na Suíça), herdou a casa da Boca do Inferno, que foi avaliada em 2.975 contos, numa escritura registada em Abril de 1982. Ricardo Salgado viria a viver numa casa de dois andares com acesso à mesma piscina e ao mesmo relvado.

Entretanto, em 1987, a mãe de Ricardo Salgado formalizou na Câmara de Cascais o pedido para remodelar a garagem e a habitação que estava destinada ao “chauffeur” e transformar esse edifício em duas moradias geminadas, destinadas aos outros dois filhos homens, João e António Salgado, ficando as mulheres da família a viver na casa grande: a mãe no piso térreo; a filha Mary no primeiro andar; e a outra filha, Ana Salgado, no segundo. A casa sofreu obras nessa altura, de forma a cada piso ser autónomo, o que implicou por exemplo construir uma cozinha por andar.

Ao contrário do que tinha acontecido nos anos 30, em que as ruas em redor da propriedade nem tinham nome, este pedido à Câmara já indica que o terreno confronta a nascente com a rua Pedra da Nau e a poente com a Rua Ricardo Espírito Santo Silva, que assim deu nome à rua onde ficava a casa que comprou.

O ritual do Natal e a saída de Ricardo Salgado da empresa dona da casa

A maior propriedade dos Espírito Santo em Cascais continuou a acolher a maioria das festas, casamentos e baptizados da família. Era aqui também que se juntavam os cerca de cem descendentes de Ricardo Espírito Santo para passar o Natal. Uma neta do banqueiro lembra-se bem desse ritual dos dias 25 de Dezembro. “A casa é muito grande, tem uma sala enorme. Na casa de jantar, havia uma mesa grande cheia de tudo onde nos íamos servir. Aos empregados da casa juntava-se o pessoal que trabalhava com outros membros da família, para ajudarem no Natal. Faziam-se montinhos de prendas por cada agregado familiar. Ia lá de manhã e deixava as prendas em cada montinho. Mas ninguém dava cem prendas: as crianças recebiam sempre; já os mais velhos recebiam dos padrinhos, por exemplo. Mas era muito cansativo”.

Em 1998, o palacete da Boca do Inferno passou a ser de uma empresa chamada Casa dos Pórticos, pertencente aos cinco filhos de Maria da Conceição, com capital social de 10 mil contos: 5 mil contos em dinheiro e os restantes 5 mil contos em espécie, pela transferência do imóvel para a sociedade. O primeiro presidente da empresa foi Ricardo Salgado, tendo os dois irmãos e as duas irmãs como vogais do Conselho de Administração.

Ricardo Salgado tinha renovado em Março de 2013 o mandato para continuar a liderar a Casa dos Pórticos, a empresa detentora da casa que foi do avô. Mas um ano depois, a 26 de Março de 2014, em pleno escândalo BES, o banqueiro renunciou à presidência, que passou a ser ocupada pela sua irmã mais velha, Mary Salgado, até hoje

Em 2004, a casa estava a precisar de obras de conservação, que foram encomendadas à Opca (Obras Públicas e Cimento Armado), uma empresa de construção pertencente ao Grupo Espírito Santo. Mas os trabalhos foram temporariamente embargados pela Câmara de Cascais, que só ao fim de três meses acabou por autorizar obras de conservação no alpendre, nas coberturas e nas fachadas. Um despacho da autarquia sublinhou o valor do imóvel: “Consideramos que se trata de um excelente exemplar arquitetónico da designada “Casa Portuguesa” (…) Deve ser integralmente preservada, dado o seu elevado valor arquitetónico/patrimonial”.

O ex-presidente do Banco Espírito Santo partilha com as irmãs e sobrinhas o jardim, a piscina e a capela da família à qual tem acesso diretamente pela sua propriedade, mas vive numa casa anexa. Foi aí que ofereceu um jantar, em 2004, a Durão Barroso (que era na altura primeiro-ministro), Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa (futuros Presidentes da República) e respetivas mulheres, incluindo-se a companheira de Marcelo, Rita Amaral Cabral, que era administradora do BES. As presidenciais de 2006, que viriam a ser ganhas por Cavaco, foram um dos temas da conversa, segundo noticiou o Expresso, mas Ricardo Salgado referiu-se ao evento apenas como “um jantar privado de casais que têm laços de amizade”.

Ricardo Salgado antes da apresentação de resultados do BES em 2013, o ano em que se tornou público o confronto na cúpula do banco

Vítor Rios

Foi também ali que, quase uma década depois, a 7 de Novembro de 2013, Ricardo Salgado ofereceu outro jantar aos membros do Conselho Superior do Grupo Espírito Santo, no dia em que voltaram a garantir-lhe apoio incondicional, num volte-face pouco depois de terem assinado um documento com José Maria Ricciardi em que pediam mudanças na liderança do grupo. Apesar deste conflito familiar, foi nesse ano de 2013 que se viveu o último grande Natal na casa cor-de-rosa.

Ricardo Salgado tinha renovado em Março de 2013 o mandato para continuar a liderar a Casa dos Pórticos, mas um ano depois, a 26 de Março de 2014, em pleno escândalo BES, o banqueiro renunciou à presidência, que passou a ser ocupada pela sua irmã mais velha, Mary Salgado, até hoje.

Nessa altura, Ricardo Salgado tinha já sido colocado sob escuta no âmbito do processo Monte Branco. E também já estava em guerra aberta com o primo, José Maria Ricciardi, ao mesmo tempo que enfrentava uma oposição crescente do Banco de Portugal e tentava delinear estratégias para salvar um império em desagregação, em reuniões gravadas do Conselho Superior do Grupo Espírito Santo. Viria a dar no mês seguinte a entrevista ao Jornal de Negócios onde apontaria o dedo ao contabilista Francisco Machado da Cruz, que tinha acabado de demitir-se da Espírito Santo International, onde a dívida oculta ascendeu a 1,3 mil milhões de euros.

Ricardo Salgado demitiu-se da presidência do BES em Junho, para ser substituído por Vitor Bento. A 24 de Julho, um carro da PJ foi buscá-lo à sua moradia na Boca do Inferno, para ser interrogado pelo juiz Carlos Alexandre. Viria mais tarde a ficar em prisão domiciliária com dois polícias em permanência à porta da casa onde vive, ao lado da casa comprada pelo seu avô.

Os polícias à porta da casa de Ricardo Salgado, em 2015, enquanto o ex-banqueiro esteve em prisão domiciliária

Álvaro Isidoro

Arrestos, Bíblia, insultos, aluguer para eventos e a falta de dinheiro

A casa cor-de-rosa viria a ser referida numa tirada provocatória de Pedro Queiroz Pereira, na comissão parlamentar de inquérito ao BES, em Dezembro de 2014. O industrial (que morreu em 2018) tinha tido uma longa guerra nos bastidores com Ricardo Salgado, com quem mantinha participações cruzadas entre os dois grupos, tendo-o denunciado ao Banco de Portugal por uma série de práticas ilícitas, e acusando-o de querer tomar o controlo das suas empresas em conluio com as suas próprias irmãs, Margarida e Maude Queiroz Pereira. Aos deputados, atirou: “As irmãs de Ricardo Salgado ficam em casa a fazer bolos para vender a restaurantes e ele nunca se preocupou em defendê-las”.

Pedro Queiroz Pereira e Ricardo Salgado em 2011, antes de ter estalado o confronto público entre os líderes dos dois grupos

LUSA

“Se eu tivesse de fazer bolos para fora não era por isso que me caíam os parentes na lama. Mas não faço, nem eu nem a minha irmã”, respondeu depois Mary Salgado, citada pela Sábado, numa entrevista em que confirmou que congelaram uma conta no antigo BES, da qual também eram titulares o irmão, a irmã e as sobrinhas, e que servia para fazer a gestão corrente das casas de todos na Boca do Inferno: “Usamos para os pagamentos do pessoal, do jardim, quando se avaria a caldeira do aquecimento”, explicou, depois de ter sido surpreendida quando ia fazer um pagamento e viu que a conta estava a zeros. “As empregadas gostam do cheque, mas o resto faço na Internet. A eletricidade temos dividida, a água é que pagamos em conjunto”.

A fúria dos lesados do BES, ou de outros indignados com a conduta de Ricardo Salgado, levou a que passassem a ser frequentes os insultos gritados à porta do palacete da Boca do Inferno, sempre que viam uma empregada a  sacudir um tapete ou um elemento da família à varanda: “LADRÕÕÕES!”

Em Junho de 2015, foram arrestados os bens de luxo na casa de Cascais de Ricardo Salgado. Os investigadores que revistaram a residência fizeram um inventário dos bens valiosos e mandaram mesmo o ex-banqueiro e a mulher tirarem os relógios que tinham no pulso, para serem fotografados e registados no inventário. Também confiscaram os documentos dos carros de ambos.

O Jornal Económico noticiou recentemente que a casa tinha sido posta à venda por 20 milhões de euros, mas que o facto de a mulher de Ricardo Salgado, Maria João, ser accionista da Casa dos Pórticos está a dificultar a transação, por haver potenciais compradores com medo de que a mansão possa vir a ser arrestada judicialmente. A notícia irritou bastante alguns membros da família, que se queixam mesmo de que um negócio praticamente fechado acabou afinal por se desfazer depois da publicação.

“Nós estamos a vender a casa porque eu e a minha irmã precisamos de dinheiro”, disse ao Observador Mary Salgado, atual presidente da Casa dos Pórticos. “A nossa mãe morreu há quase 9 anos. Já não se justifica viver nesta casa, já não tenho nenhum filho em casa, não precisamos de uma casa tão grande, que obriga a uma grande manutenção para não se estragar. Estamos a viver da venda dos terrenos. E eu também do meu trabalho”. (Tem um ateliê onde se dedica a trabalhos de restauro.)

A irmã de Ricardo Salgado conta que desde 2014, o ano em que a família deixou de mandar no Banco Espírito Santo, que tem alugado o piso de baixo da casa para eventos, casamentos e baptizados, geridos por uma empresa de catering. Também já venderam dois lotes de terrenos vizinhos, que tinham herdado da mãe e que terão rendido 1.169 milhões de euros a cada irmão (mas não a Ricardo Salgado, que viu 700 mil euros serem arrestados e entregou automaticamente outros 469 mil ao escritório de Proença de Carvalho, para pagar a sua defesa). Mary Salgado admite que se não tivesse sido a queda do BES, talvez não estivessem a tomar a decisão de se desfazerem do imóvel.

A contestação à volta do palacete persiste. Num sábado de Fevereiro, um ruidoso grupo de 40 pessoas que misturou lesados do BES e coletes amarelos, manifestou-se à porta da casa da Boca do Inferno, com cartazes a apelar: “Basta de corrupção”.

A manifestação dos "coletes amarelos" em frente à casa dos Espírito Santo, a 9 de Fevereiro (Foto: RODRIGO ANTUNES/LUSA)

RODRIGO ANTUNES/LUSA

Mas, entretanto, já tinha sido apagada uma inscrição bíblica deixada em 2015 nos muros cor-de-rosa do palacete, mostrada na altura pelo Expresso: “Timóteo 6:10”. Remete para esta passagem do Novo Testamento: “Porque o amor ao dinheiro é raiz de todo o tipo de coisas prejudiciais, e alguns, empenhando-se por esse amor, foram desviados da fé e causaram a si mesmos muitos sofrimentos.” No versículo imediatamente anterior, o 9º, lê-se: “Os que querem ser ricos caem em tentação, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem os homens na perdição e ruína.”

* Pedro Jorge Castro é autor dos livros “Salazar e os Milionários” e “O Ataque aos Milionários”, onde foram publicadas algumas das informações referidas neste artigo

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