Nenhum outro lar, em todo o País, tem uma contagem tão pesada: no Lar do Comércio foram 24 os utentes que morreram na sequência do surto de Covid-19 que chegou a afetar uma centena de pessoas, obrigou à intervenção do Exército e levou à transferência de dezenas idosos para três instituições diferentes.
“Não havia condições para dar garantias dos melhores cuidados ao utentes”, explicou, a meio de maio e do surto, Luísa Salgueiro, a presidente da Câmara Municipal de Matosinhos. “Não fui ao Lar do Comércio, mas, pelos relatos que temos recebido, podemos falar de negligência”, acrescentou a autarca, no dia em que se soube que o Ministério Público tinha aberto um inquérito à atuação no lar, onde os doentes não terão sido conveniente e atempadamente isolados dos utentes saudáveis e onde, a certa altura, chegou a ser noticiado o rácio de apenas sete auxiliares para 180 utentes.
“Não estariam a ser prestados os cuidados básicos aos utentes, dada a escassez de recursos humanos”, chegou a reconhecer, no final de agosto, à revista Sábado, fonte oficial da autarquia, apoiada nas conclusões de uma equipa composta por elementos da Câmara de Matosinhos, da Unidade de Saúde Pública, da Unidade Local de Saúde de Matosinhos e da Segurança Social.
Não deveria, porém, ter sido uma surpresa: meses antes de ser sequer confirmado o primeiro caso de Covid-19 em Portugal, tanto o Instituto da Segurança Social (ISS) como o Ministério Público (MP) já estavam ao corrente da situação no Lar do Comércio — que só viria a piorar com o impacto da pandemia do novo coronavírus.
Remetidas pela Ordem dos Enfermeiros (OE), as denúncias chegaram ao gabinete de Rui Fiolhais, presidente do ISS, a um dia do fim de 2019, e ao Palácio da Justiça do Porto quinze dias depois, a 14 de janeiro deste ano. Nas queixas, a que o Observador teve acesso, a OE alertava para uma série de irregularidades e pedia urgência na intervenção e resolução dos problemas detetados. “A conjuntura descrita consubstancia um grave perigo para a saúde individual e pública da comunidade”, pode ler-se no documento endereçado a Rui Fiolhais.
Apesar disso, só agora, em setembro, oito meses depois, é que Marta Couto Soares, a diretora de serviços da instituição, foi chamada para prestar declarações no âmbito do processo que entretanto foi aberto, confirmou ao Observador a responsável pela comunicação do Lar do Comércio, Inês Serra Lopes.
Após a audição, revelou a mesma fonte, o Lar do Comércio foi constituído arguido.
A esse processo juntou-se, em maio, o inquérito aberto à atuação do lar durante a pandemia, que corre no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto. E, para além disso, foi ainda tornada pública a queixa formalizada por um familiar de uma utente que morreu na instituição, que solicitou a suspensão dos órgãos sociais e apresentou queixa contra a direção do lar por alegada prática de crime.
Falta de enfermeiros e funcionários, mobiliário degradado e um “odor intenso a urina”
No relatório de nove páginas apenso às queixas reunidas pela Ordem dos Enfermeiros já era relatada, em dezembro de 2019, uma “franca escassez de funcionários” para prestar cuidados aos então 300 utentes do lar (60 no piso da “Enfermaria”, reservada a “pessoas totalmente dependentes”; 240 nos quartos e apartamentos da denominada área de “Saúde Pública”).
Ao todo, eram oito os enfermeiros em funções e pouco mais assistentes operacionais — “3 de manhã na ‘Saúde Pública’ e 6 na ‘Enfermaria’, 2 de tarde no total da Instituição e 2 de noite no total da Instituição”, pode ler-se no formulário do Registo de Visita de Acompanhamento do Exercício Profissional, que aponta para violações quer do regulamento da OE que determina as dotações seguras dos cuidados de enfermagem, quer da portaria do ministério da tutela que define as condições de organização, funcionamento e instalação dos lares de idosos.
O facto de não existir pessoal especializado em número suficiente, alertava o documento, estaria na origem de uma série de outras situações irregulares: a “continuidade dos cuidados” não seria garantida, tal como a sua segurança; os medicamentos seriam preparados e administrados através de “práticas incorretas”; e o acompanhamento de utentes ao exterior, em consultas externas ou em situações de urgência, não estaria assegurado. Ao dispor da equipa de enfermagem não existiriam recursos tão básicos como rolos de papel para cobrir marquesas, “kits para tratamento de lesões da integridade cutânea”, “material de prevenção de úlceras de pressão”, frigorífico com controlo de temperatura para guardar os medicamentos, ou até simples talheres. “Carência de colheres para a administração terapêutica da noite, obrigando a que o enfermeiro lave colheres entre tomas de residentes”, pode ler-se no relatório.
De acordo com o documento, também não existiria distância de segurança entre camas (nem privacidade assegurada para os seus ocupantes), ou sequer possibilidade de passagem entre as cadeiras de rodas e cadeirões dispostos em fileiras compactas nas zonas de estar do lar, em frente a televisores.
PAN questiona Governo sobre as suas responsabilidades no Lar do Comércio, em Matosinhos
Na zona da enfermaria havia duas casas de banho, cada uma com a sua base de duche, para os 60 residentes; já cadeira adaptada para os utentes com mobilidade reduzida poderem tomar banho só existia uma — “Equipamento obsoleto, coberto de fita cola”, assinalaram os representantes do Conselho Regional Norte da OE que no dia 22 de novembro de 2019, entre as 11h30 e as 14h30, estiveram no Lar do Comércio.
Não foi a única referência a material em condições de degradação feita ao longo das nove páginas do relatório: para além de mesas de cabeceira “em madeira muitas vezes apodrecida” e de grades de camas “seguras com ligaduras ou pedaços de tecido”, os enfermeiros depararam-se com cadeirões “com espuma exposta, degradados, impossíveis de higienizar” e portas, janelas e escadas de emergência sem dispositivos de segurança para fecho, chegando mesmo ao ponto de descrever o “odor intenso a urina na sala de estar da enfermaria”.
O facto de nesta área do Lar do Comércio só estarem autorizadas visitas durante três horas por dia, ainda para mais em pleno horário laboral, das 14h às 17h, “coarta a participação e o envolvimento do representante legal ou familiares do residente”, alerta ainda o documento.
Segurança Social não encontrou problemas, mas também comunicou o caso ao Ministério Público
Contactado pelo Observador, o Instituto da Segurança Social explicou que, depois de ter recebido o relatório, fez a 21 de janeiro uma “visita de acompanhamento técnico” ao Lar do Comércio, “para verificação dos factos denunciados e das circunstâncias que estiveram na origem da mesma, bem como de eventuais diligências encetadas pela Instituição com vista à superação das mesmas”.
Mas a realidade com que os técnicos do ISS se depararam, diz a resposta escrita enviada por fonte oficial ao Observador, terá sido diferente da relatada pela Ordem dos Enfermeiros: não só o número de enfermeiros disponíveis — 10 ao invés dos 8 contabilizados na queixa — “cumpria o legalmente disposto”, como o lar tinha já ao serviço uma “equipa de manutenção para correção progressiva das condições das instalações”.
“No que respeita aos quartos sem distância de segurança entre leitos dos residentes da ‘enfermaria’ dispostos em fileiras, num verdadeiro amontoado de cadeiras de rodas, com acesso apenas àqueles que se encontram nas laterais, durante várias horas e odor intenso a urina na ‘enfermaria’ – na visita em questão não foi verificada qualquer destas situações”, garante ainda o mesmo e-mail, que se cinge apenas “às matérias da competência do Instituto da Segurança Social”.
Ainda assim, e como, fora do âmbito do ISS, o relatório da OE denunciava uma série de “práticas que poderiam constituir eventual negligência grave na prestação de cuidados de enfermagem aos utentes, cuja matéria ultrapassava o âmbito de atuação deste Instituto”, conclui o texto, o organismo, na tutela do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, acabou por enviar o processo para o Ministério Público a 29 de janeiro — como a Ordem dos Enfermeiros já tinha feito, 15 dias antes.
As diferenças entre as queixas dos utentes e as descrições do Lar
As primeiras queixas sobre o Lar do Comércio chegaram à Ordem dos Enfermeiros no verão do ano passado, em forma de carta assinada por um grupo de utentes do lar. No documento, a que o Observador teve acesso e que consta do conjunto de informações enviadas ao Ministério Público em janeiro, os utentes desfiam um rol de queixas, que vão desde irregularidades na distribuição da medicação, que frequentemente não lhes seria dada a horas e que, algumas vezes, não lhes seria dada de todo — “Acabaram, agora só segunda-feira” —, à morosidade na mudança de fraldas, ou ao jejum forçado entre jantar e pequeno-almoço, que chegaria a durar cerca de 16 horas — “O jantar é servido às 18h e só voltam a comer no dia seguinte e muitas vezes depois das 10h”.
Ao longo de três páginas, são relatadas várias outras situações que terão tido lugar no piso da enfermaria, reservado aos idosos acamados e em situação de dependência:
- “Uma utente de cadeira de rodas foi algaliada durante dois anos para evitar a muda das fraldas. Como fez várias infeções, e após várias idas ao Hospital de Matosinhos, foi-lhe retirada [essa algália] e substituída por outra colocada na barriga. Chega a estar com fezes na fralda duas a três horas. Tem que esperar”;
- “Se pedirmos ajuda para ir à casa de banho é respondido: ‘faz na fralda’”;
- Já aconteceu uma doente ter feito as necessidades num canto de uma das salas e as enfermeiras terem sido chamadas para o problema, a resposta foi que seria limpo quando fosse hora da limpeza. O cheiro era muito intenso”;
- “Os utentes que não estiverem acamados são vestidos com roupas que não lhes pertencem, é o que vier à mão”.
Garantindo que o Lar do Comércio não teve ainda acesso ao relatório da OE, nem tão pouco às recomendações nele constantes, Inês Serra Lopes, em representação da direção, escusou-se a fazer quaisquer comentários ao Observador sobre as falhas e irregularidades nele apontadas. Questionada sobre se, entretanto, os problemas já teriam sido resolvidos, explicou que o lar “não está sujeito à tutela da Ordem dos Enfermeiros” e que, por isso mesmo, “não foram impostas alterações ao funcionamento do Lar do Comércio nem houve outras exigências”.
“O Lar do Comércio não era obrigado sequer a deixar a Ordem dos Enfermeiros ter acesso às instalações, não é nem um hospital nem uma unidade de cuidados continuados, está mais para um hotel do que para uma unidade de saúde, é uma ERPI, uma estrutura residencial para idosos”, fez ainda questão de acrescentar, questionando a legitimidade do organismo para promover uma “inspeção” às instalações da instituição e explicando que, quando aceitou a visita da OE, a direção do lar acreditava que só o pessoal de enfermagem é que iria ser escrutinado, e não todo o Lar do Comércio.
Depois, explicando que “de vez em quando” vão sendo apontadas queixas às condições do lar, “ou por familiares de utentes ou por antigos trabalhadores” e admitindo até que algumas delas não serão desprovidas de sentido — “Há coisas que estão velhas, há. Há coisas que estão más, há” —, a responsável pela comunicação do Lar do Comércio preferiu salientar as “coisas boas” e descreveu um cenário rigorosamente diferente do relatado nas queixas remetidas para a OE.
“É preciso ver que aquilo é um prédio que foi feito há quase 70 anos e que tem uma grande extensão subterrânea, portanto é muito difícil conseguir que nunca haja em lado nenhum baratas. Aquilo é campo, aquilo tem ou 14 ou 15 hectares, é difícil não haver insetos, é difícil não haver bichinhos. Há uma empresa que tem um contrato e todos os meses faz desinfestações. E, mesmo assim, quando há queixas, manda-se fazer desinfestações extraordinárias”, começou por garantir Inês Serra Lopes para, a seguir, revelar que, já após a pandemia, foram encomendadas 90 novas camas articuladas, para substituir o material danificado ou obsoleto. “Além disso vão pintar e remodelar tudo, já está lá o arquiteto a fazer o projeto”, acrescentou ainda.
“O Lar do Comércio não é um depósito de velhos, aquilo é um sítio onde maioritariamente estão pessoas que estão lá porque querem, andaram toda a vida a fazer descontos para ir para lá”, fez questão de garantir, explicando que, além dos cuidados habituais, são disponibilizados naquele estabelecimento residencial para idosos, onde as mensalidades podem oscilar entre os 300 e os mil euros, uma série de serviços diferenciados.
“Aquilo é um lar antigo, as senhoras põem pérolas e vestem camisas de seda para ir para o jantar ou para passear. Têm cabeleireiros, ajudantes de cabeleireiros, esteticista, massagista, fisioterapeuta…”, enumera Inês Serra Lopes, que só começou a colaborar com a instituição em maio deste ano — já eram mais de uma dezena as mortes por complicações associadas à Covid-19 no lar —, depois de, no final de abril, a assessora de comunicação anterior ter anunciado a sua demissão do cargo, alegando ter havido “clara omissão, grave, de factos e números de infetados e mortes pela Covid 19, pela direção da instituição”.
Os outros processos do Lar do Comércio
De acordo com Inês Serra Lopes, foram precisamente os trabalhadores dedicados àqueles serviços específicos, como cabeleireiro ou esteticista, que estiveram na base de um despacho do Instituto da Segurança Social que, em março de 2015, determinou a suspensão por 180 dias do acordo de cooperação com o Lar do Comércio.
Questionada sobre esse processo, noticiado na passada semana pelo Público, que revelou que essa suspensão, apesar de confirmada por várias instâncias (a última em maio de 2019), não chegou a ser posta em prática pelo ISS, que nunca chegou a interromper os pagamentos ao Lar do Comércio, a responsável pela comunicação recusou que em causa tenham estado, para além da escassez de trabalhadores, quaisquer problemas relacionados com as condições de higiene ou salubridade do lar, como sustentou aquele jornal.
https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=1374059059444835&id=113217695528984&comment_id=1376069032577171
“O Lar do Comércio e a Segurança Social andavam a discutir, desde que em 2012 houve uma portaria que alterou os rácios de pessoal das ERPI, como é que se enquadravam nos quadros de pessoal os cabeleireiros e toda esta série de pessoas que têm categorias profissionais específicas nos contratos de trabalho. Ora, a portaria de 2012 fixava um número mínimo de, salvo erro, oito auxiliares de ação direta por cada X idosos. Nesse número não incluía esses profissionais especializados, mas o Lar do Comércio, por seu turno, dizia que devia inclui-los, porque eles também eram auxiliares de ação direta”, contextualizou, por telefone ao Observador.
Ao todo, de acordo com o Público, faltariam à data 72 funcionários ao Lar do Comércio para cumprir os rácios impostos pela legislação. Inês Serra Lopes garante que um ano depois, em 2016, a situação já estava resolvida: “Trataram logo de começar a reconversão dos trabalhadores, mas, para não perderem a comparticipação, puseram uma providência cautelar para suspender o ato da Segurança Social — e essa ganharam. No processo principal, em que pediam que esse pessoal fosse considerado equivalente aos auxiliares de ação direta, é que o tribunal decidiu contra o lar”, explica.
“Perderam em 2018, mas passado um ano já tinham regularizado o quadro de pessoal — aquilo no Ministério do Trabalho demora, mas não demora assim tanto. Ou seja, quando o tribunal decidiu contra o Lar, não decidiu sobre se devia ou não haver suspensão, a suspensão era uma medida lateral, servia apenas para forçar o lar a tomar essas medidas”, conclui Inês Serra Lopes.
Caso o ISS tivesse suspendido, na altura, o financiamento ao Lar do Comércio, onde então residiam 263 idosos, a perda para a instituição teria sido de mais de 94.400 euros por mês (359 euros por cada um). O que significa que, ao fim de seis meses, a instituição teria deixado de receber mais de meio milhão de euros por parte do Estado.
Ainda de acordo com o Público, corre no DIAP do Porto, desde outubro de 2018 e relativa a uma série de pagamentos indevidos alegadamente recebidos pelo Lar do Comércio no âmbito da resposta social de Serviço de Apoio Domiciliário, mais uma investigação, desta feita “por indícios da prática do crime de burla tributária contra a Segurança Social”. Também segundo o jornal, neste caso ainda não há arguidos constituídos. Em causa estarão pagamentos que ascendem aos 650 mil euros.
Em dezembro de 2019 vieram a público notícias sobre uma investigação empreendida pelo Instituto da Segurança Social no Lar do Comércio, por suspeitas de “pagamento como critério de admissão de utentes” e de “vantagem patrimonial indevida”. Em causa, escreveu o Jornal de Notícias, estaria o facto de a instituição estar a aceitar rendas vitalícias que alegadamente podiam chegar aos 50 mil euros e pagamentos de mais de 1.350 euros mensais por suites sem condições, onde a chuva chegaria a entrar.
José Moura, diretor do lar, que agora declinou responder às perguntas do Observador, recusou na altura todas as acusações de viva voz. Cinco meses depois, em plena pandemia, viria a fazer o mesmo mas por comunicado, já tinham morrido 24 idosos na instituição, infetados com o novo coronavírus: “Não houve qualquer negligência no Lar do Comércio. Houve crise. E houve quem lutasse, e muito, contra ela. Fizemos, fazemos muito mais do que nos competia”.