Há duas formas de olhar para o novo supermercado sem caixas que a Sonae MC vai abrir em Lisboa, o Continente Labs. A primeira, a otimista: uma loja inovadora que vai acabar com um emprego repetitivo ao utilizar um serviço de pagamento automático por reconhecimento de imagem e que permite a um cliente entrar, pôr as compras no cesto e sair sem ficar na fila da caixa. A segunda, a negativa: uma loja que filma constantemente um cliente para saber o que este tira da prateleira, qual cenário do livro “1984”, de George Orwell, e que torna irrelevante um trabalho feito por inúmeras pessoas em todo o mundo. Independentemente de se gostar ou não, a partir desta quarta-feira à tarde este novo conceito de loja vai passar a ser uma realidade em Portugal. E com a tecnologia de uma startup portuguesa, a Sensei.
Tanto a visão positiva como a negativa quanto a esta inovação de lojas já foram levantadas no passado. Por um lado, o lançamento da primeira loja da Amazon Go, em 2018, foi visto como “o futuro do retalho”, como escreveu a CNN. “Estou a ser vigiado no Amazon Go — e não me importo”, elogiou o Axios em 2019. Porém, também houve quem olhasse para o lado negativo. “Amazon Go e os 2,3 milhões de caixas que pode deixar para trás”, escreveu a Forbes. Passados três anos, algumas dúvidas persistem, mas o conceito parece ser vencedor: há 29 destas lojas em todo o mundo.
Na semana passada, antes da abertura oficial, o Observador foi às compras nesta loja da concorrente Sonae junto ao Jardim do Arco do Cego, na Rua D. Filipa de Vilhena, em Lisboa. Munidos de um cartão Continente digital — que é obrigatório ter para poder pagar — e das apps necessárias, vimos uma experiência bem mais consolidada, mas semelhante àquela que tivemos na loja teste da Sensei em 2019. Nesta visita, as principais dúvidas quanto à proteção de dados e quanto ao fim do emprego pela inovação tecnológica foram quase todas respondidas pelos responsáveis. No final, comprámos o necessário para ver se tudo estava a funcionar. E está.
Entrar, pôr uma manteiga e cápsulas de café na mochila e sair sem passar pela caixa
Tudo começa, como é comum nestes cenários tecnológicos, com um QR Code e uma app: a Continente Labs (esta marca da Sonae, que apelida o supermercado, é também o nome do projeto que o Continente desenvolve para testar novas experiências de consumo junto dos clientes). Depois do download da aplicação faz-se o registo para poder entrar no supermercado. Se não se quiser apontar a câmara do telemóvel para a parede à entrada facilmente se encontra o programa na loja de aplicações dos principais sistemas operativos.
O passo do registo e da instalação da app é necessário apenas na primeira visita. Numa segunda, terceira ou vigésima ida às compras, desde que a aplicação continue instalada, não é preciso repeti-lo. Mesmo assim, na primeira vez, é necessário inserir vários dados pessoais e aceitar os termos para se poder fazer compras na loja.
Para facilitar, e antes de qualquer processo extra, é explicado passo a passo como é que a loja Continente Labs funciona. Lê-se o tutorial — “se voltar a colocar um artigo na prateleira, é removido da compra” ou “para evitar artigos indesejados no seu carrinho, não retire produtos da prateleira para entregar a outros compradores” , lê-se nas indicações. E é necessário aceitar os tais “termos e condições”.
Nesse acordo com a Sonae estão regras base que explicam tudo detalhadamente, incluído o facto de ser necessário ter esta app para fazer compras na loja, ou aceitar que podem “ocorrer falhas técnicas”, ou ainda que menores de 16 anos que acompanhem um cliente na visita tenham de assinar uma declaração devido às câmaras que recolhem imagens para as compras. É um documento jurídico base que contempla a maioria das situações, principalmente num sistema inovador como este. Depois da aceitação destes pressupostos, é necessário ainda um outro requisito: ter cartão Continente. Atenção, este também é um passo importante para quem gosta dos populares cupões do serviço.
E é tudo? Ainda não. Foi igualmente necessário aderir à fatura eletrónica, que é preciso para quem não fez esse processo na app do cartão Continente, assim como associar um método de pagamento digital — um cartão de crédito, que pode ser um criado pelo serviço MbNet. Só depois destes passos estarem completos e validados, podemos ir às compras. E, aí, começa outra vez tudo com um QR Code.
[No vídeo abaixo, pode ver o vídeo promocional do Continente Labs que mostra como é que tudo funciona]
Com o registo feito, a aplicação tem uma utilização bastante simples. “Bom dia, vizinho”, lê-se debaixo do QR Code que nos dará acesso à loja através de um posto de validação. É um pouco semelhante a entrar num supermercado que ainda tem as pequenas portinholas de metal à entrada, como um torniquete. A diferença é que as portas são de vidro, como numa estação de metro, e, à semelhança dos transportes públicos, é preciso que um sensor reconheça o bilhete de entrada. Neste caso, o tal QR Code que, após validado, leva as portas a abrirem-se.
Aqui o processo passa a ser extremamente fácil. Literalmente, e à semelhança do que tínhamos feito em 2019 nos escritórios da Sensei, pegámos em alguns produtos da prateleira — uma lata de salsichas, uma garrafa de água, um pacote de cápsulas de café e uma embalagem de manteiga — e pusemos no cesto. Houve outros que tirámos da prateleira, como um pacote de fraldas, e voltámos a pôr na prateleira. E foi isto. Tudo muito parecido ao que pode ser feito noutros supermercados que têm apps que permitem registar cada produto com um telemóvel para fugir às filas no final. A diferença é que, neste caso, o telemóvel ficou no bolso e fomos seguidos pelas dezenas de câmaras no teto da loja que captaram cada produto que tirámos.
Mesmo no caso de ir a esta loja acompanhado com alguém que não tem a app não vai ter problemas, como explica o Continente. Ao entrar, as câmaras reconhecem quantas pessoas entraram num registo. Depois, mesmo que fique a escolher a fruta que quer e o acompanhante vá ao outro lado do supermercado buscar outro produto, o sistema contabiliza tudo na mesma conta. Esta e outras dúvidas que podem surgir estão também explicadas na aplicação caso queira testar ao limite até que ponto tudo funciona.
Quando saímos, passámos outra vez pelas barreiras que estão na entrada, desta vez a do canto oposto, que se abriram automaticamente sem nos perguntar o que levávamos no saco. Quando se fecharam, a fatura foi logo enviada para o email e, na app do Continente Labs, passou a ser possível ver a lista com os quatro produtos que tínhamos connosco. É nesta lista que conseguimos associar os cupões para que, mesmo sem caixas, a experiência seja o mais parecida possível com aquilo a que os clientes do Continente estão habituados. Porém, mesmo com cupões, obviamente registamos diferenças em relação aos supermercados normais, e não falamos só das câmaras.
E se não tiver um smartphone ou não quiser ter um Cartão Continente? “À partida, não vejo qualquer problema com esta prática”, diz especialista em Direito do Consumo
Mas este não é um supermercado igual aos outros, e não é só pela componente tecnológica. Devido à tecnologia utilizada para todo o processo ser fluído, não há, por exemplo, venda de fruta com pesagem. “Há coisas que ainda não conseguimos fazer de forma tradicional”, explica ao Observador Frederico Santos, diretor de inovação e transformação digital da Sonae MC. “Mas, daqui a uns meses, estou confiante que vamos conseguir vender a fruta à unidade”, adianta. Isto porque esta é “a primeira loja sem caixas a ser operada por uma marca europeia”, diz o responsável. Adicionalmente, importa observar também outras questões que este conceito levanta, como a obrigatoriedade de ter um smartphone ou um cartão de fidelização para se poder fazer compras.
“A impossibilidade de pagar com notas e moedas física não me parece levantar, por si só, problemas de compatibilidade com a legislação de proteção do consumidor”, diz Jorge Morais Carvalho. Especialista em Direito do Consumo e diretor do mestrado em Direito e Tecnologia da NOVA School of Law e do NOVA Consumer Lab, esclarece que não há nenhuma restrição legal que imponha que as lojas tenham de aceitar todo o tipo de pagamentos. “À partida, não vejo qualquer problema com esta prática”, afirma Morais Carvalho, referindo que “se trata de um modelo de negócio centrado no pagamento automático e digital, em linha com a evolução tecnológica em curso”.
“O mesmo se diga em relação à limitação de utilização da loja por quem tenha um cartão específico da empresa [caso do Cartão Continente]”, continua, adiantado que “há muitos negócios online em que o pagamento tem de ser feito por via digital”. “Aliás, no caso dos TVDE [transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados, como a Uber ou a Bolt], é a própria lei a proibir o pagamento através de outros meios que não sejam digitais”, exemplifica. Não especificando de que supermercado se tratava, o Observador questionou também a Direção-Geral do Consumo quanto a este tipo de imposição feito por lojas, não tendo tido resposta até à publicação deste artigo.
Quanto a esta obrigatoriedade, o Continente é muito claro: “A loja Continente Labs é uma loja de conveniência e, à semelhança de uma máquina de vending, por exemplo, a compra exige que o pagamento seja feito de determinada forma, não requerendo o parecer de qualquer Autoridade Competente”. “Na loja em questão não se vendem produtos exclusivos, nem a preços diferentes dos que os que se vendem noutras Lojas, pelo que os clientes que não queiram aderir à app podem efetuar as suas compras noutra Loja Continente nas proximidades”, refere também a empresa.
“A Continente Labs não visa dar preferência a quaisquer clientes, mas antes simplificar e desmaterializar a experiência de compra dos mesmos: não é necessário apresentar cartões, não são emitidos talões físicos, nem são feitos pagamentos em numerário”, diz ainda o Continente. De acordo com o retalhista, com esta inovação “garante-se, assim, um processo menos burocrático, mais higiénico e ágil”.
Quanto aos postos de trabalhos que se podem perder, Frederico Santos é igualmente direto: “Não estamos no jogo de reduzir o emprego”. Segundo o responsável, esta loja emprega “seis pessoas”. “Para uma loja desta dimensão [150 metros quadrados], está totalmente alinhado e até pode estar acima daquilo que seria uma loja equivalente com caixas”, refere. “A única coisa que desaparece neste processo é a caixa”, desdramatiza, dizendo também que “hoje em dia, numa loja normal, a maior parte das pessoas não trabalha na caixa”.
Frederico Santos adianta que o Continente ainda não consegue montar este tipo de loja de uma forma “rentável”. Com caixas tradicionais, “seria possível”, explica. Contudo, e sem revelar números mais detalhados, os 150 metros quadrados deste supermercado — um Continente Bom Dia, por exemplo, tem, no mínimo, cerca de 500 –, já custaram à Sonae MC mais de “um milhão de euros”.
É por estes motivos que o objetivo desta loja é também o de seguir a lógica de um laboratório: testar processos para os poder melhorar. Nos próximos meses, e com a ajuda da Sensei, o Continente quer perceber como é que se pode expandir e melhorar este conceito — para já, o Continente vai até ter funcionários só a ajudar quem quer entrar e não sabe como fazê-lo.
Sensei, a empresa portuguesa pioneira que criou a tecnologia, diz que não quer acabar com empregos e que garante a proteção de todos os dados
O Continente Labs não é só uma inovação da Sonae. É também o culminar de anos de pesquisa e trabalho da startup portuguesa Sensei, fundada por Vasco Portugal, Joana Rafael, Nuno Moutinho e Paulo Carreia em 2017. À semelhança da Amazon, que lançou, em 2018, o primeiro supermercado sem caixas registadoras no qual basta pegar num produto e sair, a Sensei quer mudar o futuro do retalho. E este vai ser um passo crucial. Desde 2019, quando a empresa mostrou ao Observador a tecnologia, o conceito de loja “mudou imenso, principalmente a dimensão”, diz Vasco Portugal, que também é presidente executivo da empresa.
Agora, é “uma loja autónoma, a primeira a funcionar ao público”, diz o empreendedor. Mas, de resto, tudo é muito semelhante ao apresentado há dois anos, até a preocupação com o emprego, refere. “A ideia nunca foi criar uma loja sem pessoas”.
Em 2019, o produto era quase final e a empresa antecipava que, nesse verão, ia mostrar o primeiro supermercado com a sua tecnologia em Portugal. Contudo, “montar isto não foi um processo fácil”, diz Vasco Portugal, afirmando que “se não fosse extremamente complexo certamente que havia mais empresas a fazer isto”. E uma das principais complexidades são as câmaras utilizadas, assim como as dúvidas sobre proteção de dados que podem levantar.
Para todas as compras serem validadas, esta loja tem inúmeras câmaras no teto que poriam George Orwell a tremer. Estes “módulos de visão computacional”, como lhes chamou a startup em 2019, são essenciais para toda a operação. Captam as imagens e, com recurso a inteligência artificial, veem em tempo real o que é posto e retirado da prateleira. Não permitem ainda ver na app que produtos estamos a pôr no saco ou na mochila para se saber uma estimativa de preço, mas, no final, são estes aparelhos que garantem que, um dia, podem deixar de haver caixas de supermercado.
Estes portugueses querem acabar com as caixas de supermercado
Vasco Portugal explica o processo: “Na prática, usamos o vídeo e a vantagem do vídeo é que se pode inferir vários tipos de dados a partir da imagem”. Depois, “há duas coisas fundamentais que garantem a segurança dos dados”. A primeira é que não há recolha de dados biométricos das pessoas. Ou seja, há registo apenas dos movimentos feitos para o sistema saber que produtos é que foram retirados da prateleira. Depois, as câmaras utilizadas recolhem “dados não identificáveis”. Por outras palavras, “mesmo olhando para a imagem, é impossível distinguir quem é a pessoa”, promete o empreendedor.
Sobre a questão da proteção de dados, Frederico Santos diz que, apesar de a Sonae ter acesso a dados pessoais — “obviamente que temos de ter a informação de quem é o cliente, vamos ter de cobrar”, lembra o responsável — a Sensei só recebe um número aleatório. “A Sensei depois só nos diz o cesto que foi processado”, continua a explicar. “Nós, Sonae, Continente, não temos nenhum acesso aos dados que a Sensei processa, não temos acesso às imagens, às interações do cliente”, conclui.
Após ter feito “um processo de análise interno”, o Continente concluiu que há um “risco baixo” de violação de dados pessoais. Por isso, “não justificava fazer um pedido prévio à entidade reguladora” [a CNPD (Comissão Nacional de Proteção de Dados]. De acordo com o RGPD (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, cabe às empresas avaliarem isso sob o risco de coimas pesadas caso façam mal essa análise. “Estamos completamente convencidos e certos de que a forma como montamos a coisa garante essa confidencialidade e a proteção dos dados dos clientes”, adianta o responsável.
Portugueses da Sensei recebem investimento de 5,4 milhões de euros
Já a Sensei, diz que “na relação comercial” com a Sonae foi necessário fazer “uma due diligence [processo de análise jurídica] exaustiva de forma de compliance [confirmação de que todos os pressupostos jurídicos necessários estão certos] com o RGPD”. Afirmando estar a cumprir todas as regras, a startup não especificou se contactou a CNPD para validação de algum dos passos necessários, como com um pedido de avaliação de impacto de proteção de dados (AIPD), por exemplo. O Observador questionou a CNPD sobre se já se pronunciou sobre a tecnologia da Sensei. Além disso, questionou-se a entidade sobre se esta se opõe ou já se pronunciou, a favor ou contra, este tipo de tecnologia que a startup comercializa. Não houve resposta até à publicação deste artigo.
Amazon Go e Pingo Doce. Os outros players que querem acabar com caixas de supermercado
A Sonae MC e a Sensei não são as únicas empresas no mundo, ou em Portugal, que usam a tecnologia para acabar com as filas nos supermercados e, consequentemente, com a necessidade dos clientes terem de validar uma compra no final esperando numa fila. Ainda antes de a norte-americana Amazon apresentar, em 2018, a primeira loja de compras sem um funcionário na caixa — a Amazon Go –, era comum ver nalguns supermercados em Portugal caixas de “self-checkout” nas quais o cliente, sozinho, passa os produtos por um sensor de códigos de barras para fazer o pagamento. Além disso, nos últimos anos, têm aparecido outros conceitos de pagamentos.
Na nova loja da Amazon, dá para fazer compras com a sensação de não pagar: é o futuro
O próprio Continente tem uma aplicação, a Continente Siga, que permite aos clientes utilizarem o telemóvel para registar cada produto nalguns hipermercados. Há também um registo e, no final, consegue até fazer o pagamento pela app. À semelhança desta empresa, a concorrente Auchan tem uma aplicação que faz exatamente o mesmo e que dá para usar atualmente na maioria dos hipermercados da cadeia francesa em Portugal. Antes da aplicação, este retalhista francês já oferecia um sistema que permitia aos clientes usarem um dispositivo fornecido à entrada das lojas que permitia registar cada produto para, no final, não ter de se esperar numa caixa de pagamento.
Na nova loja Pingo Doce, não há caixas, filas nem dinheiro. Há sensores, câmaras e (claro) uma “app”
Também em 2019, o Pingo Doce, do grupo Jerónimo Martins, abriu no campus da Universidade Nova, em Carcavelos, uma “Lab Store”. À semelhança do que o Continente faz, o processo começa com o download de uma aplicação de smartphone. Ao entrar nessa loja, o utilizador abria a porta e mostrava o smartphone a um leitor QR Code. Através da tecnologia NFC (Near Field Communication), é possível registar cada produto.
Estas inovações não são únicas, e não estamos sequer a falar das compras online. Nos últimos anos, várias cadeias de hipermercados têm utilizado as novas tecnologias para melhorar os seus sistemas e utilizado Portugal como base para estes testes. Em 2020, por exemplo, a Auchan lançou um projeto piloto e pôs um robô a passear nos corredores de um hipermercado em Alfragide que faz o trabalho de controlo de produtos nas prateleiras. Antes esse trabalho era feito por três pessoas, mas a empresa garante que apenas as realocou, havendo agora um processo que facilita o que faziam.
Há um robô que anda sozinho nos corredores de um hipermercado em Lisboa
Ficou surpreendido com as novidades? Pode olhar de duas maneiras: uma otimista e uma negativa. Porém, não fique muito tempo a pensar no assunto. Rapidamente, tudo isto pode mudar ainda mais. Num futuro que não está assim tão longe, os produtos dos supermercados podem ir ter consigo na hora pelas garras de um drone.
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