Quando se diz que Portugal “dá lucro”, excluindo as responsabilidades com o pagamento da dívida — como fizeram recentemente Catarina Martins e Marisa Matias, do Bloco de Esquerda — isso mostra que somos governados por pessoas comparáveis a “alguém que vai pedir ajuda ao balcão de sobreendividados da DECO mas garante que ‘está tudo muito bem, só não consigo pagar a dívida´”. Em entrevista ao Observador, Daniel Bessa diz que este é um tipo de raciocínio que não vem só dos partidos mais à esquerda mas, também, de um Partido Socialista onde os “pedronunistas” têm cada vez mais influência, pese embora a “mestria” de António Costa a conter essa transformação do partido em algo “muito diferente do que era dantes”, do que era no tempo de Mário Soares e do tempo em que Daniel Bessa foi ministro da Economia (de Guterres).
Daniel Bessa acredita que Mário Centeno não irá fazer outro mandato como ministro das Finanças, até para não ter de ser ele a “gerir as consequências da política que tem sido seguida”. Depois de anos em que o Governo “não investiu nada”, agora estão a ser lançados “novos investimentos todos os dias, talvez para promover o ministro Pedro Marques”, mas já a partir do próximo ano “não vai haver dinheiro para esses investimentos todos”. “Vão ter de pagar às farmácias… Vão ter de recrutar os funcionários para resolver o problema das 35 horas. Não vão querer reduzir os salários ou aumentar os impostos… Têm os compromissos que foram agora anunciados em matéria de investimento… A maionese não prende, como se costuma dizer”, afirma Daniel Bessa, atirando que “o Diabo não chegou, mas isto está por arames”.
O professor de Economia e ex-ministro, que hoje é presidente dos conselhos fiscais de empresas como a Galp e a Sonae, diz, também, que tem “poucos amigos” mas hoje tem maior “proximidade” com pessoas do PSD do que do PS. E diz ter uma “enorme consideração” por Pedro Passos Coelho, alguém que, “se Portugal fosse um país equilibrado”, seria mais bem aproveitado do que “apenas a dar umas aulas numa universidade” em Lisboa.
“No privado, há noção dos limites. No público, essa noção não existe”
Escreveu recentemente, na sua coluna no Expresso, sobre as “duas economias” que diz que existem em Portugal — a economia do setor privado e a do setor público, onde, refere, se concentram as greves que têm abalado o país nos últimos tempos. Ora, tendo em conta que até Mário Soares, pouco antes de desaparecer, escrevia que “com o PS no Governo, não haveria greves”, porque é que as greves se sucedem?
É incontornável que há duas economias. É uma evidência. São duas economias que se distinguem uma da outra pela postura dos trabalhadores, pelo movimento grevista, etc. Onde eu tentei refletir nesse artigo foi sobre o porquê de isso ser assim.
E, então, porque é que existem essas duas economias?
Eu acho que na economia privada há uma noção de limite. Uma empresa não distribui o que quer, distribui o valor que acrescenta. Compra, vende, seja na agricultura, seja na indústria, nos serviços, gera um valor acrescentado e é isso que tem para distribuir. Pode distribuir melhor ou pior — e quando é mal distribuído os funcionários têm toda a razão em lutar por uma distribuição melhor. Mas não há mais do que aquilo para distribuir. E os trabalhadores têm uma noção clara disso. Na área mais dinâmica da economia portuguesa, que é a área das exportações — que, como sabemos, cresceu exponencialmente nos anos da troika —, sempre suspeitei que muitos empresários entraram, provavelmente, em zonas de rentabilidade muito reduzida e, até, negativa, para sobreviver.
Como é no setor público?
Na área pública essa noção de limite não existe. Porque quem paga é o contribuinte. Os sindicatos do PC [Partido Comunista]… porque é disso que estamos a falar com esta coisa das greves e dos sindicatos — isso é o PC. Quando Mário Soares diz que com o PS no governo não haveria greves — bem, ele não está cá para se defender — mas não tem toda a razão, porque hoje não só temos o PS no governo como temos o PC no governo e temos greves por todos os lados, promovidas pelo PC através da CGTP, e todas concentradas no setor público.
Houve a greve portuária…
Sim, é uma relação privada, aqueles trabalhadores são do setor privado. Mas eu vi que o desfecho do processo foi comunicado ao país pela ministra [Ana Paula Vitorino]. Portanto, é um setor privado um bocadinho estranho… E isto porquê? Estas reivindicações não são contra o Estado, são contra o contribuinte que, no fim, tem de pagar. E tem de pagar a uns intervenientes que acham que ele não tem limite. Vivem com o conforto de saber que, no final, o contribuinte pagará sempre.
Havia alguém que dizia que o facto de o dinheiro da troika ter vindo “mesmo a tempo” de não falhar com os salários da Função Pública, nem sequer alguns dias, teria contribuído para essa ideia de que não há limites, de que faltou a perceção de quão mau isto esteve realmente.
Pois faltou, e ainda bem — porque sempre que eu vejo alguém que trabalha o mês inteiro e não é pago isso não me satisfaz. Mas foi a probabilidade muito elevada de que isso viesse a acontecer que levou, um belo dia, o professor Teixeira dos Santos a impor-se ao primeiro-ministro [José Sócrates] e a pedir a ajuda externa. E ainda bem que a ajuda veio, porque senão teria sido bastante pior. E ainda bem que, depois, o setor privado respondeu como respondeu — que é essa a diferença entre Portugal e a Grécia, a Grécia não teve esse grau de resposta.
Mas, voltando ao tema das greves, alguns dirigentes sindicais já prometerem que este ano de 2019 será “quentinho”…
Ora, um dos agentes aí é o PC, que tem como essencial da sua guerra trazer o mais possível de atividade para dentro do Estado. Escolas, saúde, transportes, etc. Porquê? Porque aí tem uma palavra a dizer e é ouvido. Na zona que está privatizada não tem essa voz porque as pessoas têm, elas próprias, uma noção dos limites. E, portanto, não podem seguir as convocatórias do PC. Sabem que se o fizerem destroem a economia em que estão integrados.
“Para o Estado, os professores são filhos e os enfermeiros enteados”
O discurso do “sucesso”, por parte do Governo, dá força às reivindicações?
Sim, além do PC temos outro agente que é o PS, e o governo, onde há gente que só porque as coisas estão a correr bem — ou razoavelmente bem — alimentaram expectativas. Mas eu acho que mais do que “sucesso” houve promessas exageradas.
Que promessas são essas?
Desde a primeira hora que o discurso deste governo é que houve uns cavalheiros que levaram a austeridade longe demais, que se vangloriaram disso — algo que, a propósito, acho que foi um dos maiores erros de Passos Coelho, o “ir além da troika“. Foi absolutamente desnecessário. Se há político pelo qual eu tenho respeito nestes últimos anos é por Pedro Passos Coelho, acho que fez um trabalho admirável, mas… Para que é que foi dizer aquilo? Foi quase… jactante. E foi considerado ofensivo, não ganhou nada com aquilo, só perdeu. A seguir, vem alguém que diz “estes tipos foram longe demais, até se gabaram de ir além da troika, e estamos nós para devolver ao bom povo o que lhes foi tirado”. E, depois, “foi isto que fizemos, a economia não deixou de crescer”, portanto, as pessoas, do outro lado, sobretudo as que são pagas com impostos, acham que dá para tudo.
Passos Coelho disse que queria ir "além da troika"?
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Passos Coelho, que venceu as eleições de 2011, afirmou, de facto, que o Governo foi além das medidas incluídas no acordo com a troika, salientando que isso era essencial para o regresso de Portugal mais cedo aos mercados internacionais. Fê-lo num discurso de improviso, perante mais de 600 autarcas na sessão de encerramento do congresso da Associação Nacional de Municípios, em Coimbra (ANMP).
Mais tarde, porém, Passos Coelho explicou que não estava a referir-se às metas do défice mas, sim, às reformas estruturais. “Este governo não instituiu metas mais austeras nem mais severas que o memorando de entendimento. A meta é a mesma, ninguém quer ir além da troika na austeridade. Queremos é ir além da troika na transformação estrutural da economia”, assegurou o ex-primeiro-ministro. “As medidas de contenção financeira são exatamente as que são necessárias para atingir as metas que estão acordadas”, acrescentou.
Contudo, continuou, “a condição de partida não era aquela que estava retratada quando o memorando de entendimento foi elaborado. Se fosse, não tinham sido necessárias mais medidas, porque estaríamos a concluir que mais medidas nos trariam abaixo das metas”, justificou Passos Coelho, defendendo assim as medidas de austeridade que não foram assinadas com a troika mas que o Governo aplicou entretanto, como o corte de subsídios na Função Pública.
Refere-se aos funcionários públicos, nas várias categorias e áreas de atuação?
Eu tenho pensado muito na diferença entre os enfermeiros e os professores. Os professores, na sua maioria, sempre beneficiaram do estatuto académico — a licenciatura — que os enfermeiros não tinham (todos), mas agora já vão tendo. É certo que os professores são o ponto máximo nas salas de aula, ao passo que os enfermeiros estão um bocadinho tapados, porque têm acima deles o médico. Mas, em termos de reconhecimento, eu sinto-me tão devedor de professores como de enfermeiros. São ambos filhos de Deus, diria, recordando a linguagem da minha mãe, mas têm tratamentos diametralmente opostos. Os professores não ganham muito bem no início da carreira mas têm uma progressão salarial elevadíssima ao longo da carreira. E acabam com salários que não são menores do que os italianos ou os franceses, num país que tem um PIB per capita muito mais baixo. Por isso é que a contagem do tempo de serviço é tão importante para os professores.
E os enfermeiros?
Os enfermeiros ganham praticamente o mesmo no início e no fim da carreira. Para o Estado português, os professores são filhos e os enfermeiros são enteados. Eu detestei aquela brincadeira dos especialistas, que num dia eram especialistas e no outro já eram indiferenciados — e a Ordem pactuou com esta brincadeira –, uma pessoa ou é especialista ou não é, portanto, nesta questão, os enfermeiros não me merecem apreço algum. Mas, de resto, no que se refere ao tema da progressão na carreira e ao tema salarial, os enfermeiros são os enteados do Estado português.
Mas António Costa já fala de não podermos ir na “ilusão” dos números…
Ora bem, esse dia tinha de chegar. Quem tem o mínimo de experiência de vida, e é dado a um mínimo de contas, sabe que esse dia tinha de chegar. E onde isso é mais dramático é no que se passa hoje com o Serviço Nacional de Saúde. As áreas que foram mais maltratadas por este governo, com a história da recuperação dos rendimentos, foram o funcionamento dos serviços e o investimento [público], que foi menor do que no tempo de Pedro Passos Coelho. O [resultado do menor] investimento, nomeadamente em infraestruturas, é uma penalização enorme para o país mas demora tempo a notar-se.
Nota-se, mais rapidamente, o impacto sobre os serviços?
Muito mais. Ao ponto de, na minha opinião, estar a nu a deterioração do Serviço Nacional de Saúde. Veja, por exemplo, o pedido de demissão por parte da administração do São João, no Porto. Eu passei, há cerca de um ano, por uma situação de saúde daquelas que não são muito agradáveis. Entrei num hospital, um dia, foi-me diagnosticado e fui operado no próprio dia. No outro dia, li que uma situação como a minha, no SNS, pode ter um prazo para a operação de mil dias. Não tinha sobrevivido, nem metade, nem um terço disso. Um SNS que pode demorar mil dias para realizar uma intervenção cirúrgica já não sei o que é… Portugal não tem ministro da Saúde há muito tempo. Tem alguém que executa orientações do Ministério das Finanças e de um Ministério das Finanças que, traduzindo as opções de todo o governo, tem prioridades que, do meu ponto de vista, são erradas. Foi reduzido o horário de trabalho semanal para as 35 horas, depois não têm dinheiro para fazer as contratações que se tornam necessários, portanto o serviço não funciona. Quando uma escola está fechada, usando a expressão do Bruno de Carvalho, é “chato”. É mais do que chato. Mas não tem a gravidade de ter uma operação adiada por mil dias.
Mas o governo responde que não há cativações na Saúde, que é proibido…
Se está subdotado nem é preciso haver cativações. Em Portugal, e no mundo inteiro, a política é comunicação. E é comunicação — digo isto com muita pena — no que ela, muitas vezes, tem de pior. E, portanto, dizer que não há cativações no SNS pode ser verdade, mas isso não muda nada, porque para cativar é preciso que haja uma dotação. Mas não é só as operações que demoram mil dias, ou os serviços que as pessoas vão lá e os serviços estão em greve e voltam para casa. Há, também, a dívida aos fornecedores. Ainda há poucos dias o Tribunal de Contas calculou que a dívida a fornecedores e credores do SNS aumentou mais de 50% [entre 2014 e 2017].
“A criatura que pede ajuda à DECO mas diz que se está muito bem, só não consegue pagar a dívida”
Falando de outra dívida, há poucos dias líderes do Bloco de Esquerda escreveram nas redes sociais que excluindo as responsabilidades com a dívida, era um “segredo” que Portugal “dava lucro” [referindo-se ao chamado saldo primário].
Sim, como são pessoas que consideram que a dívida não é para pagar, é natural que não contabilizem esse fator. Eu acho que isto é um problema cultural, de cultura cívica. Eu sinto-me devedor pela dívida do meu país. O Estado, de alguma maneira, representa-me. Eu fui dos que aplaudiram quando o Dr. Miguel Cadilhe veio com a ideia de uma espécie de imposto patriótico, mais sobre o património, para abater alguma da dívida. Eu acho que os governos gastaram demais mas, se Portugal deve, eu devo. Portanto não me passa pela cabeça fazer umas contas em que os juros não entram.
É um raciocínio errado?
É um raciocínio que passa para as pessoas. Repare numa coisa: apesar da “recuperação dos rendimentos” (sobretudo na área pública) e da melhoria do emprego, a dívida das famílias cresce, de novo, aceleradamente, há mais pessoas que vão à DECO pedir ajuda porque não conseguem pagar as dívidas. É caricato. E a dra. Isabel Jonet diz que também não se têm reduzido as solicitações de pessoas que batem à porta do Banco Alimentar contra a Fome. Aparentemente, as pessoas endividam-se sem cuidarem muito das consequências e, bem, parece que podem ter no Bloco de Esquerda um bom farol. Se calhar vamos ouvir uma criatura ir ao balcão dos sobreendividados da DECO dizer “eu estou muito bem, só não consigo pagar as dívidas”. É mais ou menos a mesma coisa que dizer que o Estado dá lucro só porque tem um saldo primário positivo.
“Centeno vai deixar o Ministério, também para não ter de gerir as consequências da política que tem sido seguida”
Mário Centeno, porém, além de ter sido escolhido para liderar o Eurogrupo, continua a acumular distinções como a recente nomeação como melhor ministro das Finanças europeu por uma revista estrangeira especializada em banca.
Sabe que eu sou muito dado ao humor — e já me dei mal com isso, digo umas coisas e umas pessoas gostam e outras não, mas eu não resisto a dizê-las. Mas também sou, por vezes, dado a cinismo, portanto quando se começou a falar de que Mário Centeno podia ser presidente do Eurogrupo a minha primeira postura foi um bocado cínica, dizendo que não sabia se era bom para Portugal mas que para ele era [bom], seguramente. Mas agora, tudo ponderado, considero que ver Portugal, um país do sul, que passou pelo que passou, à frente do Eurogrupo, é bom. Reconhece um resultado, que é do país, não é só deste governo, é do país. Quanto a Centeno, bom, a presidência é atribuída a um país e se quero premiar o país é aquele senhor. Claro que também é uma distinção a Mário Centeno, porque se ele tivesse estragado tudo… Mas continua a ser bom para ele, pessoalmente, porque não acredito que vá ser ministro das Finanças no próximo governo.
Fala-se de que pode ir para comissário europeu, eventualmente vice-presidente da Comissão…
Vai para qualquer coisa. E, antes de mais, porque não vai poder gerir as consequências da política que tem sido seguida.
Bruxelas adverte para “riscos elevados” nas finanças públicas de Portugal no médio prazo
Porquê?
Por exemplo, estas notícias dos últimos dias dos milhões para o investimento. Ora, nos primeiros anos não investiram nada e agora anunciam investimento em tudo e mais alguma coisa — parece que é a promover, de alguma forma, o ministro das infraestruturas [Pedro Marques]. Não vai haver dinheiro para esses investimentos todos. Haverá para alguns, dependendo das prioridades: se continuarem a meter o dinheiro nos salários e nas pensões, não haverá para o investimento. Mas Mário Centeno sabe perfeitamente que o ministro das Finanças que vier a seguir vai ter muitos problemas herdados da gestão que foi feita nesta legislatura.
Vai ser mais difícil governar na próxima legislatura, com crescimento mais baixo, sem o efeito das compras de dívida pelo BCE…
Claro… E muitas outras coisas. Vão ter de pagar às farmácias… Vão ter de recrutar os funcionários para resolver o problema das 35 horas. Não vão querer reduzir os salários ou aumentar os impostos… Tem os compromissos que foram agora anunciados em matéria de investimento… A maionese não prende, como se costuma dizer: tudo isto junto, chega até outubro, depois logo se verá. Era bom para o país que as eleições não fossem em outubro, que fossem antecipadas para agora, para ver se o país entrava, o quanto antes, numa gestão menos… perdulária.
O Banco de Portugal previu, recentemente, quatro anos de desaceleração da economia (se contarmos com 2018). Mas também disse que a economia assenta hoje em bases mais sólidas, por terem maior importância as exportações. Concorda?
Concordo que a economia está mais sólida, pelo aumento das exportações e pela capitalização que houve no sistema bancário — o sistema bancário, pelo que hoje julgamos saber, estará hoje muito mais sólido. Mas temos a desaceleração, que é normal na economia capitalista — que tem coisas boas e tem coisas más. Em média, de 10 em 10 anos há uma recessão ou, no mínimo, uma desaceleração do crescimento. Portanto, repare: a última foi em 2007, 2008. É evidente que se prolongou muito no tempo, nem a questão dos 10 anos é escrita na pedra, é uma média. Mas os ciclos existem, e estamos a entrar num ciclo de desaceleração. E é nos EUA, onde a economia está mais avançada, que já se começa a ver aperto, incluindo por parte da Reserva Federal, que já está a meter travões.
Enfurecendo o presidente dos EUA…
O senhor Trump protesta, por todas as formas, mas ele de política monetária não sabe muito. É um homem da construção e do imobiliário e tudo o que seja subidas de juro e limitações de crédito o incomoda. Mas a Reserva Federal não pode fazer outra coisa.
O ‘pedronunismo’. “O PS que temos hoje é muito diferente do que tínhamos antes”
Este PS, ou esta “geringonça”, sabe governar com vacas menos gordas?
Dois dos ministros das Finanças por quem tenho admiração, por terem dado conta do recado em situações difíceis, são Vítor Gaspar e, ainda mais, Ernâni Lopes, que fez pelo país um trabalho imenso. E esse era um governo do PS, do dr. Mário Soares — que não se meteu no assunto. Todos nós temos lados claros e lados escuros, há coisas no dr. Soares de que eu gosto, outras de que não gosto, mas a postura do dr. Soares nesse caso foi exemplar. Foi dizer: eu não percebo nada disto, quem sabe é você.
Mas a minha pergunta não era sobre o PS como partido histórico. Era sobre “este” PS, o PS que temos hoje?
Ahhh hoje o PS não é o mesmo. O PS que temos hoje é o do “pedronunismo”, é assim que se chama, não é? Ao contrário de João Galamba, que deixei de o ver, mas que veio dizer no outro dia que não tinha aspirações, Pedro Nuno Santos eu vejo-o todos os dias. E a ele nunca ouvi dizer que não tinha aspirações. Uns gostarão, outros não gostarão, mas há uma postura que não tem nada que ver com a do PS tradicional, amigo da iniciativa privada.
É um PS diferente, portanto…
Sim, é muito interessante sobretudo para quem é mais velho, como eu. Repare, eu sou do tempo do Manuel Serra no PS. O PS sempre teve, no seu interior, fações muito à esquerda e conviveu com elas, não se desfez delas, mas manteve-as sempre com uma expressão muito reduzida no que diz respeito à capacidade de influenciar as políticas. Agora isso não é assim.
O que é isso pode significar para o PS e para o país?
Estou muito curioso em ver, enfim, como vai evoluir António Costa, que nessas matérias é um mestre. Tem procurado conter essa discussão, mesmo havendo quem questione porque é que Pedro Nuno Santos continua como secretário de Estado e não é ministro. Ou, também, com o veneninho do Dr. Marques Mendes, saber porque é que o ministro Pedro Marques tem sido tão valorizado. Isto é política e, de facto, esta fação mais à esquerda tem um poder muito maior dentro do PS, o que não augura nada de bom. São as tais pessoas que se assemelham ao cidadão que vai à DECO dizer que está tudo bem, exceto a dívida.
“O Diabo não veio, mas isto está por arames. As contas públicas estão por arames”
Qual é a relevância, desse ponto de vista, de saber se o PS tem maioria absoluta ou se precisa de um ou, novamente, de dois parceiros à esquerda, para governar?
O ideal é que surja uma solução moderada, que não se afaste da política de contas que tem sido seguida — se possível, com um pouco mais de verdade, até.
Mais “verdade”?
Sim, porque, como eu digo, há aspetos da verdade que não podem deixar de vir ao de cima. O Diabo não chegou, e ainda bem bem, mas isto está por arames. As contas públicas estão por arames. Estão melhor do que estavam há 10 anos, mas o que está por arames é o sucesso, os 0,2% de défice, isso está por arames.
Porquê?
Porque no dia em que for preciso meter os funcionários públicos a funcionar com as 35 horas, no dia em que for preciso pagar aos fornecedores, no dia em que se tenham de fazer os investimentos que o país exige… aí vamos ter aqui grandes problemas de finanças públicas.
Disse numa entrevista ao Público, há pouco mais de um ano, que com este crescimento o mínimo que o Governo devia ter feito, já em 2018, era ter tido um défice zero, para inverter o aumento da dívida.
Claro, porque a dívida mantém-se como um peso. Porque o governo está sempre a dizer que a dívida já está a descer — mas o que está a descer é a dívida em proporção do Produto Interno Bruto (PIB). Porque a dívida tem vindo a subir. Enquanto houver défice há aumento da dívida e o défice é hoje mais pequeno mas continua lá — 0,2% do PIB são 400 milhões de euros. E, portanto, a dívida vai aumentar em 400 milhões. Em percentagem do PIB, vai diminuir.
Qual é o indicador mais importante?
São coisas diferentes. Mas eu acho que a mensagem que se comunica à população, ao dizer que a dívida diminuiu (valorizando o peso no PIB), não me parece que seja a mais interessante, porque contribui para esse clima de euforia, ou de menos precaução. É verdade que, profissionalmente, como economista, eu sei que o indicador mais importante é a percentagem do PIB. Mas, por exemplo, numa empresa que eu estivesse a gerir eu valorizaria a dimensão nominal da dívida.
Até porque não há inflação. Ou, melhor, há pouca…
Sim, noutros tempos, a inflação era muito útil, porque comia a dívida. Em prejuízo dos credores. Hoje não é assim. No mínimo, em Portugal, teríamos de ter uma taxa de crescimento do PIB real, no mínimo, de 2%, uma inflação de 2% e, portanto, um crescimento nominal de 4% ao ano. Dessa forma, se o défice não fosse muito elevado, teríamos uma trajetória descendente consistente na dívida.
“Incomodou-me muito que um acordo entre o PS e o PSD para a redução do IRC tivesse sido rasgado”
Mas o que se deveria ter feito para que estivéssemos com esses indicadores? O que devia ter feito o Governo?
Eu não sei se os governos têm assim tanta capacidade assim para influenciar o crescimento. Portanto não sou capaz de dizer: se fosse eu, tinha crescido mais. Não sou capaz de dizer isso. Agora, sei que há algumas coisas que eu teria feito, inspirado pela preocupação de tentar o melhor resultado.
Como, por exemplo?
Por exemplo, a mim incomodou-me muito que um acordo entre o PS e o PSD para a redução do IRC tivesse sido rasgado. Esse acordo é feito com o PS de António José Seguro, com Passos Coelho, que apontava para uma redução progressiva do IRC. Isso foi rasgado, a redução não se verificou e ainda se fez uma coisa péssima que foi aumentar a derrama estadual [no OE de 2018, sobre lucros superiores a 35 milhões de euros]. Isto resulta de uma visão equivocada: para algumas empresas que têm muitos capitais investidos, 35 milhões não chega a ser lucro. Medidas como estas partem de um pensamento seguramente mal-informado, ou mal-formado, para não dizer mesquinho.
O que defenderia, diferente, para a política fiscal?
Eu sou muito amigo dos lucros tributados à esfera pessoal, depois de distribuídos. Mas enquanto um lucro for mantido dentro da empresa que o gerou e financiar investimento penso que esse lucro presta um serviço social. Se o capitalismo merece respeito é pelo serviço que presta e o contributo para o bem-estar coletivo — ter lucros e reinvesti-los, é disso que estamos a falar. Os lucros, antes de serem distribuídos, quanto menos tributados, melhor. No momento da distribuição, aí é outra conversa. Agora dizer que uma empresa ganha 35 milhões portanto vai ser sobrecarregada através da derrama estadual, não faria sentido se fosse eu a “dar a tática”. Outra prioridade deveria ser a justiça empresarial, que é um dos fatores que aparecem sempre nas publicações internacionais, como os do World Economic forum, como um fator que dificulta os negócios e atrasa a economia. E esses fatores são sempre os mesmos.
A preocupação da UE com os chineses em Portugal
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Daniel Bessa diz que vê “muita gente” a queixar-se da perda de soberania, mas esta é uma falsa questão: “se não está contente, faz como a Inglaterra”. “Vejo mais limitações à soberania quando vejo o sr. Trump ou a Comissão Europeia a mostrar-se incomodada com a presença dos chineses [em Portugal]”, comenta Bessa, acrescentando: “eu não vejo nada nos Tratados que diga que a presença dos chineses tem de incomodar tanto a União Europeia e porque é que isso há-de ser tema e motivo de ingerência” e levar a que Portugal seja criticado por ter capitais chineses a mais na EDP ou na REN. “Eu sei o Espaço a que aderi, sei os compromissos a que aderi, os Tratados que assinei, aderi àquilo — não aderi a mais”.
Acha que a oposição fala pouco sobre temas como esse, designadamente Rui Rio?
Eu tenho uma admiração enorme por Rui Rio, apreço pelo homem que eu conheço há 40 e alguns anos, quando entrou na Faculdade de Economia do Porto com 17 ou 18 anos. Eu conheço essa pessoa e essa pessoa mantém-se rigorosamente igual àquela que eu conheço. Agora, na política, de que eu percebo muito pouco: Rio costuma dizer que nunca perdeu eleições — e eu vi isso lá na Faculdade de Economia [da Universidade do Porto], uma faculdade que era dominada pela esquerda e ele é o primeiro dirigente da direita que ganha as eleições. Também não perdeu na Câmara do Porto, quando toda a gente achava que seria derrotado. Não sei se isto não cria, aqui e ali, algum excesso de confiança. Acho que cria. Tenho a maior consideração por ele, como tenho por António José Seguro, mas Seguro perdeu — e Rio, provavelmente, também perderá.
Mas preferia ver António Costa apoiado pelo PSD de Rui Rio do que pelos partidos da esquerda?
Eu gostava mais, dentro do que me parece possível, era de ter um governo do PS sozinho, com maioria absoluta — embora os Presidentes da República não gostem de governos de maioria. Mas dentro do que se afigura possível o que me deixaria mais tranquilo era um governo do PS, comprometido com a política europeia — isso, para mim, já me deixa relativamente sossegado. E acredito que o próximo governo do PS não pode ter a mesma orientação, em termos de prioridades, ou então abandona as orientações da política europeia.
Telefonemas para programas da manhã? Marcelo “anda nisto desde o leite materno”
Falou há pouco do Presidente da República e da “inspiração” de quem “dá a tática”. Acha que Marcelo Rebelo de Sousa tem sido um bom Presidente?
Sim. Eu olho para Marcelo como um ás da política. Não sou ninguém para dizer se ele tem feito bem política ou não, porque eu consegui ser ministro durante cinco meses. Marcelo anda nisto desde o leite materno. Sabe muito disto, foi eleito Presidente com um mérito indiscutível — não fez como o sr. Bolsonaro que se meteu em casa. Veio a jogo, ele, sozinho. Engraçado que como líder do PSD não foi muito bem sucedido — quando precisou do grémio não foi muito bem sucedido. Mas quando o que conta é a persona e o voto na pessoa ele teve um êxito indiscutível.
Mas não estará Marcelo a contribuir, em algumas situações, para deixar que a política se faça com “menos verdade”, como disse há pouco?
Ele é que sabe. Veja esta história do telefonema ao programa da Cristina Ferreira — eu vi um debate interessantíssimo na rádio em que um comentador, que eu respeito imenso, dizia que tinha sido pisado um risco com o telefonema à Cristina Ferreira. Esse comentador dizia que preferia um Presidente com maior sentido institucional, porque o lugar tem algumas exigências, há ali um caderno de encargos, e isto não faz parte. Depois, alguém, do outro lado, dizia: “tá bem, mas, até agora, quando foi necessário, ele esteve sempre presente e nunca falhou”.
Quando?
Vamos lá ver… Marcelo demitiu dois ministros [Constança Urbano de Sousa e Azeredo Lopes], que foram os momentos de maior tensão. Em ambos os casos esteve muito bem. E foram, do ponto de vista político, as duas grandes derrotas que o governo teve, manifestamente. Um incêndio não deveria ser motivo de derrota para ninguém, mas a maneira como o Governo reagiu, sem humildade, redundou numa derrota monumental. E esta história de Tancos também, enfim, ainda não chegou ao fim — ainda está nos militares e, no Governo, só chegou ao ministro. Em Tancos Marcelo nunca largou o osso e em Pedrógão Grande esteve exemplar, e continua a estar — foi lá passar férias, alertou para a questão das casas para as pessoas. Com mais ou menos telefonema à Cristina Ferreira ou ao Manuel Luís Goucha, que uns gostam e outros não gostam, a verdade é que, até agora, quando foi preciso, esteve lá.
Explicações sem fatura, aos 12 anos. “Se me perguntarem se fugi aos impostos, eu respondo, a esses eu fugi”
Algum dia alguém o desafiou para concorrer à Presidência da República?
Não, não. Eu fui professor toda a vida, desde os 12 anos — porque eu comecei muito cedo por dar explicações. A minha mãe, tinha eu 12 anos, achava que eu devia ajudar e a forma de ajudar foi dar explicações a um miúdo um pouco mais novo do que eu. Se me perguntarem se fugi aos impostos, eu respondo, a esses eu fugi. Há 60 anos, eu dava explicações sem recibo, andava eu no terceiro ano do Liceu (atual 7º) e dava explicações a um miúdo que andava no 5º, ia lá para casa todos os dias.
Depois a passagem para o Governo…
Sim, a primeira atividade que tive fora do ensino foi ser contratado para o sindicato dos bancários do Norte. Fui à mesa das negociações 13 vezes, de todas as atualizações do contrato coletivo de trabalho na banca. Ganhei muita experiência a lidar com comissões de trabalhadores, líderes sindicais. E uma coisa que eu fazia bem era comunicar. E, um dia, num colóquio em Viana do Castelo, um sábado à tarde, cruzei-me com António Guterres, que eu nunca tinha visto na minha vida e que terá gostado.
E, mais tarde, voltaram a encontrar-se.
E passado uns dias encontramo-nos no aeroporto Sá Carneiro e ele disse-me: “se a vida me correr bem, eu ainda vou chateá-lo muito”. E eu respondi-lhe: “olhe, mas se a vida lhe correr mal, chateie também”. Uma resposta muito à tripeiro, simpática. E acabei por andar três anos com ele, a percorrer o país e a divulgar a mensagem do PS quando era primeiro-ministro Cavaco Silva. Eu acho que fiz isso bem, e penso que dei a minha ajuda para que Guterres vencesse. Mas, chegado à experiência do exercício real do poder, foi muito mau. Não dei conta do recado. E acabou aí.
O que é que ficou daí?
Ficou uma aprendizagem imensa. As pessoas da política não sei o que é que acham, mas acho que para o cidadão comum eu não sai mal. Mas não me sentia bem, portanto, missão cumprida, nada em troca, ficou lá o carro, nada no bolso no regresso. Mas, claro, a vida mudou por força disso — naturalmente se nunca tivesse saído da faculdade podia não ter tido as oportunidades que me foram dadas pela exposição que a política me deu. Costuma-se dizer que “o que é bom não é ser ministro, é ter sido”.
Mas, então, nunca lhe ocorreu pensar numa candidatura à Presidência da República?
Não, acho que não faz sentido. Acho que, para uma coisa dessas é preciso um capital político…
Mas sempre tem mais experiência governativa do que pessoas como Sampaio da Nóvoa, ou outros…
Mas Sampaio da Nóvoa foi trabalhado… Aliás, o primeiro a dar palco a Sampaio da Nóvoa foi Cavaco Silva, num discurso no 10 de junho. Mas, depois, não foi por aí que seguiu — o PS passou a usá-lo muito mas Sampaio da Nóvoa tinha uma notoriedade que… no meu caso, não faria sentido. Faria muito mais sentido uma candidatura de um homem como Carvalho da Silva, mesmo que perdesse, seria para marcar uma posição. E penso que por cada 100 votos que alguém como Carvalho da Silva teria, eu teria talvez um.
“Se Portugal fosse um país um bocadinho mais equilibrado, aproveitaria Passos Coelho”
Acha que teria mais apoios no PS ou no PSD? Onde é que tem mais amigos, hoje em dia?
Eu, amigos, tenho poucos. Mesmo muito poucos. A minha vida foi, talvez demasiado ligada ao trabalho. Mas, sim, hoje estou mais próximo de gente do PSD do que do PS. Aliás, mesmo nesses três anos em que fui “porta-voz” de Guterres, como ele dizia, parece que no parlamento as coisas que eu dizia eram mais apreciadas pelo PSD do que pelo PS. Isso incomodava muito. O dr. Mário Soares chamou-me “anjinho”. Mas, sim, tenho hoje maior proximidade com pessoas do PSD: um exemplo, com Pedro Passos Coelho criei uma relação que eu acho que é de enorme consideração.
Acha que ele pode voltar em breve? A líder do PSD e, por outro lado, a primeiro-ministro?
Acho que pode. Não sei se quererá. Passos Coelho é muito novo. Mas sinceramente não sei se quererá. Sinceramente, eu acho que se Portugal fosse um país um bocadinho mais equilibrado, Pedro Passos Coelho não estaria só a dar aulas aqui em Lisboa [no ISCSP].
Estaria a fazer o quê?
Estaria num cargo qualquer, numa missão internacional. Poderia não ser isso por causa da situação familiar que tem, mas tenho a certeza de que deveria ser aproveitado. Eu acho um bocado caricato que o cidadão que foi primeiro-ministro durante quatro anos tenha como caminho esta alternativa profissional — com todo o respeito — mas tem condições para mais. Por exemplo, eu acompanhei muito perto o trabalho de Carlos Moedas, como secretário de Estado, e aí está alguém que fez um trabalho muito bem feito e que teve o reconhecimento. Se compararmos o que foi oferecido a Carlos Moedas com a situação profissional em que se encontra Passos Coelho… Tenho pena. E até houve quem se insurgisse contra o facto de ter sido convidado para ser professor, abaixo-assinados… Nem sei o que dizer sobre isso.
E outras figuras?
Relaciono-me bem com Miguel Cadilhe, Silva Peneda… Do lado do PS, tenho um apreço enorme por Jorge Coelho. Nem sempre foi fácil a relação entre os dois mas, à medida que o tempo vai passando… Foi a primeira pessoa a quem comuniquei que iria sair do governo, nem sei porquê. Com António Guterres penso que depois de ter saído do Governo falei com ele uma única vez. Depois também aprecio Francisco Assis, António Vitorino, mas nada que tenha a ver com o PS de hoje. Mas não frequentei muito o Largo do Rato naqueles três anos, portanto também não o fiz depois.