Itália foi a porta de entrada da pandemia na Europa e, durante os primeiros meses, o símbolo de tudo o que podia correr mal na resposta ocidental à Covid-19: hospitais à beira do colapso, violência nos supermercados e medidas sem precedentes para conter o vírus. A cidade de Milão, uma das mais vibrantes da Europa, tornou-se um ícone da devastação transformadora da pandemia. A experiência italiana ajudou o resto da Europa a preparar-se melhor para o pico da propagação da doença. Agora, porém, o país que no início mais sofreu com o coronavírus está a ser um dos mais bem-sucedidos na prevenção da segunda vaga. As aprendizagens do sistema de saúde, a antecipação das medidas e o controlo apertado do cumprimento das normas explicam o sucesso do país, acreditam os especialistas.
Em meados de março, altura em que Itália atravessou o pico da pandemia, o número de novos casos por dia chegou a aproximar-se dos 7 mil. Nesse período, países como Espanha e França começavam a registar números próximos dos de Itália — e, no fim do mês, os dois países atravessariam picos na mesma ordem de grandeza: Espanha ultrapassou os 9 mil casos diários e França aproximou-se dos 8 mil.
Quatro meses depois, com o alívio das medidas de restrição e o regresso do trabalho presencial e das aulas, começaram a sentir-se os efeitos da segunda vaga. Porém, desta vez, o comportamento dos países que no início do ano tinham sido mais afetados pela pandemia está a ser muito díspar. Enquanto Itália tem registado números na ordem dos 1.500 novos casos por dia (tendo alcançado um máximo de 1.907 casos num só dia), países como Espanha e França, mas também o Reino Unido, contabilizam números consideravelmente superiores. Em França, os valores estão na ordem dos 10 mil novos casos por dia (com um máximo recente acima dos 13 mil). Já em Espanha, os números estão ainda mais acima, com uma média superior a 11 mil casos por dia (e já chegou a registar 31 mil casos num só dia, o que se explica com o facto de o país não divulgar dados ao fim-de-semana). Mais abaixo, o Reino Unido tem registado cerca de 4 mil casos novos por dia, o dobro de Itália.
Para os especialistas que têm olhado para a forma como Itália está a lidar com a pandemia, há vários fatores que ajudam a explicar esta diferença. Um dos mais óbvios é vantagem natural de quem se viu confrontado com a pandemia antes dos outros. “Itália está numa situação melhor do que outros países, como o Reino Unido, Espanha ou França, porque estivemos entre os primeiros do mundo a enfrentar o furacão Covid”, disse ao Financial Times o virologista italiano Fabrizio Pregliasco, da Universidade de Milão.
Não obstante as consequências dramáticas das primeiras semanas, o facto de Itália ter enfrentado a pandemia antes dos outros países deu a Roma mais tempo para preparar a já antecipada segunda vaga e, sobretudo, as medidas a implementar quando o confinamento chegasse ao fim.
Ao mesmo tempo, o confronto inicial com as consequências mais devastadoras da pandemia levou o país a adotar muito mais rapidamente um conjunto de medidas drásticas que, no entender dos especialistas, permitiram controlar a evolução da doença a longo prazo — uma realidade facilitada pela capacidade do executivo italiano de governar por decreto ao abrigo do estado de emergência, podendo decretar medidas para entrar em vigor de imediato. Foi o que aconteceu no mês passado com a imposição do uso de máscara entre as 18h e as 6h e o encerramento das discotecas, por serem origem de novos surtos.
“Não há evidências de que os comportamentos individuais e sociais, como o uso de máscaras, o distanciamento social ou a não existência de ajuntamentos tenham sido melhores em Itália do que noutros países”, afirmou recentemente ao The Local italiano o especialista em saúde pública Nino Cartabellota. “O confinamento atempado, rigoroso e prolongado funcionou melhor aqui em Itália do que noutros países que hesitaram em fechar, que fecharam menos e que reabriram mais cedo.”
Rigor e decisões atempadas
Com efeito, o segredo em Itália parece mesmo ter sido a antecipação na adoção de hábitos. Dados de um inquérito da YouGov mostram que, em setembro, a percentagem de cidadãos que afirmavam utilizar máscara em espaços públicos era semelhante em Itália (85%), em Espanha (89%) e em França (80%). A grande diferença foi o momento da adoção do hábito. No início de março, um quarto da população italiana já utilizava máscara, quando no resto da Europa a percentagem era ainda residual. No início de abril, quatro em cada cinco italianos já afirmavam usar máscara. Na mesma altura, menos de metade dos espanhóis e menos de um quarto dos franceses diziam recorrer àquela proteção — embora os números da pandemia naqueles países já se aproximassem dos de Itália.
É certo que Itália foi o primeiro país a pôr em prática um confinamento rigoroso dos cidadãos: na primeira semana de março, o primeiro-ministro Giuseppe Conte anunciou que o país ficaria totalmente isolado do resto do mundo e que os cidadãos só poderiam sair de suas casas em situação de extrema necessidade ou para comprar mantimentos (tinham até de preencher um documento oficial a comprovar a necessidade da saída).
Porém, mais importante do que a decisão de fechar antes foi a decisão de reabrir mais tarde. Mesmo tendo sido o primeiro país a fechar serviços e a restringir as liberdades dos cidadãos, Itália tem sido mais cautelosa do que outros países no processo de reabertura. Um dos exemplos mais significativos é o das escolas, que só reabriram em Itália no dia 14 de setembro, para o novo ano letivo. Noutros países, a reabertura aconteceu antes. Em França, muitos estabelecimentos de ensino reabriram durante o mês de maio, numa altura em que o país ainda registava mil casos de Covid-19 por dia.
Itália está a ser também mais cautelosa no regresso do público aos eventos desportivos. Só na semana passada é que o governo italiano permitiu que os adeptos possam voltar aos estádios de futebol — e apenas mil espectadores podem entrar no recinto em cada prova desportiva. Por outro lado, em França, o torneio de ténis Roland Garros, que se realiza por estes dias em Paris, poderá acolher até 11.500 espectadores no recinto — e os jogos de futebol já contam com a presença de público desde julho, com um limite máximo de 5 mil espectadores.
Ainda assim, os números da pandemia em Itália também estão a aumentar. “Desde o início de junho, com a reabertura da maioria das atividades, começámos outra vez, e desde o final de julho a curva de contágio está novamente a subir, mesmo que menos rapidamente do que noutros países”, avisou Nino Cartabellota em declarações ao The Local. Para evitar a subida das infeções ao ritmo de outros países, Itália depende essencialmente do cumprimento das normas por parte dos cidadãos. Se, por um lado, os italianos têm sido cumpridores por iniciativa própria, por outro lado isso também se deve ao rigor com que as autoridades têm fiscalizado o cumprimento das regras.
“Os italianos estão mais respeitadores das medidas de distanciamento social e contra a transmissão do vírus. Mesmo na mais pequena atividade comercial, todas as medidas são observadas de forma muito escrupulosa”, disse ao Financial Times o especialista Andrea Crisanti, professor de microbiologia na Universidade de Pádua. Também para Ferdinando Luca Lorini, diretor dos cuidados intensivos do hospital de Bérgamo, o comportamento dos italianos tem sido um fator-chave. “Passámos de país mais afetado para um dos países mais virtuosos na gestão da pandemia graças à clareza das regras desde o início e à disponibilidade de toda a gente para as respeitar”, afirmou ao mesmo jornal.
Porém, o cumprimento das regras não foi sempre escrupuloso. Em junho, quando o Nápoles ganhou a final da Taça de Itália contra a Juventus, milhares de adeptos saíram às ruas na cidade de Nápoles para festejar a vitória — sem máscaras e sem distanciamento social. O incumprimento flagrante das normas enfureceu a Organização Mundial da Saúde. “Felizmente, aconteceu em Nápoles, onde o governador e o presidente da câmara implementaram medidas rígidas e a incidência do vírus é menor do que noutros lugares”, disse na altura um dos diretores-adjuntos da OMS, o italiano Ranieri Guerra.
Por um lado, o cumprimento das regras por parte dos italianos deveu-se à implementação, desde muito cedo, de um sistema de penalizações a todos os que não respeitassem o isolamento. Logo no início de março, quando o governo italiano decidiu que os cidadãos deveriam ficar em casa exceto para as atividades estritamente necessárias, estabeleceu que quem não cumprisse as normas seria multado — e a polícia foi rigorosa. Na primeira semana foram passadas quase 30 mil multas. Num sábado no início de abril, as autoridades chegaram a um recorde de 9.300 multas num só dia. Na região da Lombardia, a mais afetada pela pandemia, as autoridades tornaram o uso de máscara obrigatório nas ruas e o incumprimento da regra valia uma multa de 400 euros.
Por outro lado, o medo foi outro fator que influenciou decisivamente o cumprimento das regras por parte dos italianos, acredita o especialista Erik Jones, da Universidade Johns Hopkins em Bolonha, em declarações ao The Telegraph. “O choque de ser o primeiro país europeu a ser afetado pela pandemia e a experienciar um confinamento prolongado ainda não se esgotou”, afirmou o académico. “Os italianos olham com cautela para o que uma segunda vaga pode trazer e estão desejosos de garantir que isso não acontece.”
“As pessoas tiveram muito medo em março e em abril e isso tem um efeito no comportamento de curto-prazo, mas não é claro quanto tempo vai durar”, apontou a professora de psicologia Guendalina Graffigna, da Universidade Católica de Milão, ao The Wall Street Journal. “Somos um país mediterrâneo e frequentemente agimos com base nas nossas emoções, mais do que nos outros países”, acrescentou. Também por isso, nota o mesmo jornal, o hábito de usar máscara em público (comum há décadas em vários países asiáticos) se fixou mais na sociedade italiana do que noutros países europeus. Os protestos anti-máscara, a título de exemplo, têm sido menos frequentes em Roma do que noutras cidades ocidentais.
Testagem abrangente e sistema de saúde “mais forte”
Em paralelo com a implementação de medidas rigorosas e atempadas, os especialistas apontam as aprendizagens do sistema público de saúde italiano na primeira fase da pandemia, que permitiram ao país pôr em prática procedimentos eficazes de rastreio e testagem da população. “Sempre que há um teste positivo, testamos todos aqueles que possam ter estado em contacto com ele. O verdadeiro problema desta epidemia são os casos sem sintomas. Se não os intercetamos, não saímos dela”, explicou Andrea Crisanti nas mesmas declarações ao Financial Times. Segundo as autoridades italianas, mais de dois terços dos italianos que foram diagnosticados com a doença não foram identificados por ter sintomas, mas através do sistema de rastreio implementado no país — incluindo através da aplicação móvel “Immuni”.
“Ao identificarmos rapidamente os novos positivos, com a ajuda dos departamentos de saúde, estamos a intercetar os novos surtos isolando todos os contactos próximos”, acrescentou ao The Telegraph o consultor de saúde pública da região da Emilia-Romagna, Raffaele Donini. Também no que toca às práticas de isolamento para garantir o bloqueio de novos surtos, as autoridades italianas não baixaram a guarda. Enquanto França reduziu o período de quarentena para sete dias e Espanha para dez (em algumas circunstâncias), Itália mantém a regra de que a quarentena são 14 dias.
Dados compilados pela plataforma Our World in Data mostram que Itália é um dos países em que a percentagem de testes positivos é menor. Enquanto 10,5% dos testes realizados em Espanha e 5,8% dos feitos em França devolvem um resultado positivo, em Itália só 2,8% dos testes regressam positivos. Este indicador confirma que a disseminação do vírus é consideravelmente menor em Itália do que em Espanha e em França. Quanto menor for a percentagem de testes com resultado positivo, mais abrangente é a testagem (não se limitando a quem tem sintomas) e menor é a probabilidade de haver casos positivos a escapar à malha dos testes. Um dos critérios utilizados pela Organização Mundial da Saúde para recomendar a reabertura da atividade económica é precisamente a percentagem de testes positivos, que deve estar abaixo dos 5%.
Numa entrevista recente ao jornal La Stampa, o ministro italiano da Saúde, Roberto Speranza, assegurou que o serviço nacional de saúde “ficou muito mais forte” desde o início da pandemia, tendo duplicado o número de camas de cuidados intensivos relativamente a março. “Estou otimista, embora prudente”, afirmou, assegurando que o país não será sujeito a um novo confinamento.
“Já vimos que nenhum país se pode dar ao luxo de fechar tudo em simultâneo”, acrescentou a secretária de Estado da Saúde, Sandra Zampa, numa outra entrevista, ao Corriere della Sera. “A ausência de proibições dá aos cidadãos ainda mais responsabilidade”, sublinhou a governante, reforçando que não deverá haver novo confinamento no país — embora não esteja fora da mesa a hipótese de confinamentos locais em regiões onde tal seja necessário.
Até ao momento, já foram diagnosticados 302.537 casos de Covid-19 em Itália, tendo a doença levado à morte de 35.758 pessoas.