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Georg Gänswein na terça-feira durante uma celebração no sul da Alemanha

dpa/picture alliance via Getty I

Georg Gänswein na terça-feira durante uma celebração no sul da Alemanha

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Exilado na Alemanha após choque com Francisco, antigo secretário de Bento XVI é uma celebridade discreta "à procura de emprego"

Georg Gänswein foi o braço-direito de Bento XVI durante 30 anos e ficou com ele até à morte. Entrou em colisão com Francisco e foi enviado para a Alemanha sem cargos. O que está a fazer na sombra?

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“Estou aqui agora. Estou à procura de emprego, por assim dizer.” Foi com piadas sobre a possibilidade de contactar uma agência de emprego que o arcebispo alemão Georg Gänswein, o antigo secretário particular do Papa Bento XVI caído em desgraça depois de publicar um livro de memórias repleto de críticas ao Papa Francisco, voltou a aparecer em público — pela primeira vez depois de, em junho, o Papa argentino o ter enviado de volta para a Alemanha sem qualquer cargo formal na estrutura da Igreja Católica.

Durante trinta anos, Gänswein foi o braço-direito de Bento XVI: primeiro como jovem padre na equipa do cardeal Joseph Ratzinger na Congregação para a Doutrina da Fé e depois como secretário particular do cardeal e do Papa. Depois da renúncia histórica de Bento XVI, Gänswein manteve-se como secretário do Papa emérito, mas assumiu o cargo de prefeito da Casa Pontifícia na equipa do Papa Francisco, transformando-se numa espécie de oficial de ligação entre os dois Papas — e tornando-se numa figura central nos esforços que o Vaticano desenvolveu para garantir que os dois pontífices eram vistos pelo público como colaboradores e não como opositores ideológicos.

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Mas, com o passar do tempo, a lealdade a Bento XVI prevaleceu sobre as reformas de Francisco. Já se sabia que Gänswein estava a preparar um livro de memórias para publicar depois da morte do Papa alemão — e a tensão entre o arcebispo alemão e o Papa Francisco aprofundou-se especialmente em janeiro de 2020, na sequência da polémica em torno da opinião de Bento XVI sobre o celibato emitida num momento em que Francisco se preparava para deliberar sobre as conclusões do Sínodo da Amazónia, incluindo a possibilidade de vir a ordenar homens casados para fazer frente à falta de sacerdotes na região. Aquele episódio terá sido a gota de água numa relação crescentemente tensa — e Francisco mandou Gänswein dedicar-se exclusivamente ao Papa Bento XVI. O Papa argentino ainda manteve, formalmente, o alemão no cargo, mas na prática ficou dispensado das suas funções oficiais no Vaticano.

Ficava bem claro que, no dia em que Bento XVI morresse, Roma deixaria de ter um lugar para Georg Gänswein, o arcebispo bem-parecido que se tinha transformado numa figura agregadora para os setores mais conservadores da Igreja Católica, descontentes com alguns elementos do rumo que Francisco procurava dar à instituição. Afastado do palácio apostólico, Gänswein dedicou-se especialmente à redação do seu livro de memórias, “Nada Mais do Que a Verdade: A minha vida ao lado de Bento XVI”, que foi publicado nos primeiros dias de janeiro deste ano, pouco depois da morte de Bento XVI, a 31 de dezembro de 2022.

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O arcebispo Georg Gänswein esteve ao lado de Bento XVI até à morte do Papa alemão

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No livro controverso, cujo conteúdo o Observador revelou em janeiro, revela vários episódios até então inéditos, incluindo uma suposta falta de confiança de Bento XVI em Francisco, a “perplexidade” e a “surpresa” que Bento XVI sentiu quando leu que o Papa Francisco admitiu a possibilidade de os divorciados que voltaram a casar receberem a comunhão, o desgosto de Ratzinger perante a ausência de resposta de Francisco aos cardeais ultraconservadores que o questionaram sobre aquele assunto e até o facto de Bento XVI ter considerado um “erro” a decisão do Papa Francisco de restringir duramente o recurso ao rito antigo (em latim, de costas para o povo) para a celebração da missa.

A publicação do livro criou enorme mal-estar no Vaticano e deu origem a múltiplas especulações sobre o destino de Georg Gänswein após a afronta ao Papa Francisco. Chegou mesmo a ser equacionado que o alemão pudesse vir a ser enviado para a Costa Rica como embaixador da Santa Sé, o que seria visto como uma espécie de exílio pacífico. A decisão final do Papa Francisco, anunciada em junho, foi a de enviar Gänswein de regresso à Alemanha, à sua diocese de origem, a arquidiocese de Friburgo, na região da Floresta Negra, no sul do país — mas sem qualquer cargo formal atribuído. Com apenas 67 anos de idade, Gänswein está ainda longe dos 75 anos, idade a que os bispos são obrigados a reformar-se. E, apesar de praticamente ostracizado da estrutura eclesiástica depois de entrar em rota de colisão com o próprio Papa, Gänswein não parece querer reformar-se.

Uma celebridade discreta

Dois meses depois de o Vaticano ter anunciado a decisão de enviar Georg Gänswein para a Alemanha sem qualquer cargo atribuído, o arcebispo apareceu nos últimos dias em público em vários momentos: primeiro, na última quinta-feira, para uma apresentação da edição alemã do seu livro de memórias; depois, na terça-feira, para presidir às celebrações da Assunção de Nossa Senhora no santuário de Maria Vesperbild, na região da Suábia, na Baviera. Nessa ocasião, numa gruta dedicada a Nossa Senhora de Fátima, celebrou a missa ad orientum, ou seja, com o sacerdote e o povo voltados na mesma direção — como no rito antigo.

Segundo a imprensa alemã, as fugazes aparições de Georg Gänswein esta semana foram um sucesso. Há três semanas que os 320 lugares disponíveis no Talvogtei, antigo castelo na vila de Kirchzarten, estavam esgotados para ouvir Gänswein apresentar o seu livro, em conversa com o editor alemão Manuel Herder. Durante a sessão, Gänswein também confirmou que está a residir no seminário de Friburgo. Semanas antes, o arcebispo de Friburgo, Stephan Burger, tinha anunciado ter chegado a um acordo com Gänswein: o retornado de Roma iria, a partir do final do verão, começar a celebrar missas regularmente na catedral de Friburgo, mas não ficaria formalmente incorporado no clero da arquidiocese. Ou seja, não estaria sujeito à jurisdição do bispo Burger — embora se tenha manifestado disponível para ajudar em qualquer serviço que fosse necessário na região.

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Georg Gänswein, na última quinta-feira, durante uma sessão de apresentação da edição alemã do seu livro

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Durante a apresentação do livro, Gänswein passou apenas ao de leve nos temas mais polémicos, incluindo as suas próprias atribuições atuais: entre risos, comentou que estava “à procura de emprego” na Alemanha. Gänswein, que recusou falar aos jornalistas alemães presentes no evento, revelou apenas que o Papa Francisco o aconselhou a tirar umas férias antes da sua nova vida.

Ao mesmo tempo, Georg Gänswein foi anunciado com pompa e circunstância como uma espécie de cabeça de cartaz das celebrações da Assunção de Nossa Senhora, assinalado como feriado esta terça-feira, no santuário mariano de Maria Vesperbild, um dos mais importantes lugares de peregrinação do sul da Alemanha. Trata-se de um santuário na região da Baviera que todos os anos atrai cerca de meio milhão de peregrinos para as celebrações da Assunção e no qual existe também uma gruta dedicada a Nossa Senhora de Fátima, o destino habitual da procissão de velas que parte do centro do santuário.

“Gänswein, descrito como uma ‘celebridade’ no anúncio do evento no site do santuário, presidiu a uma missa vespertina e à subsequente procissão de velas até à gruta, passando sobre tapetes de flores que tinham sido preparados para a celebração litúrgica”, descreve o jornal Crux, especializado na Igreja Católica. No altar de Nossa Senhora de Fátima, virado para o oriente, a missa celebra-se com o sacerdote de costas voltadas para o povo, como no rito antigo, hoje fortemente restrito por decisão do Papa Francisco.

Em declarações ao jornal alemão Die Tagespost, Gänswein revelou que a celebração ad orientum o ajuda a concentrar-se. “O olhar comum para o Senhor não perturba, mas contribui para o encontro”, disse o arcebispo alemão. A possibilidade da celebração segundo o rito antigo terá estado, aliás, no centro de uma das principais tensões entre Bento XVI e Francisco reveladas por Gänswein no livro. Em julho de 2021, o Papa Francisco introduziu fortes restrições à celebração da missa segundo o rito anterior ao Concílio Vaticano II, revertendo diretamente uma norma que Bento XVI tinha implementado em 2007, quando o Papa alemão liberalizou o uso daquele rito com o objetivo de favorecer o diálogo entre a Igreja Católica e algumas franjas conservadoras e tradicionalistas que começavam a dar mostras de radicalização — e que começavam a usar o rito antigo como bandeira para uma possível cisão com Roma. Para Bento XVI, a decisão de Francisco foi “um erro, porque punha em causa a tentativa de pacificação feita 14 anos antes”, escreveu Gänswein no seu livro.

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Georg Gänswein celebrou com milhares de pessoas a Assunção de Nossa Senhora no santuário de Maria Vesperbild

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O antigo secretário particular de Bento XVI conduziu a vigília à luz das velas no santuário de Maria Vesperbild, um lugar que já visitara por diversas vezes para recuperar forças. É “um pedaço de casa” para ele, segundo a imprensa alemã. Ao jornal Die Tagespost, classificou o santuário como “um antídoto para o veneno do zeitgeist” — especialmente numa altura em que cada vez mais alemães estão a abandonar a fé católica. Só em 2022, meio milhão de fiéis abandonaram a Igreja Católica na Alemanha, um fenómeno que tem sido atribuído aos escândalos dos abusos sexuais que têm ganho grande dimensão no país nos últimos anos.

Recebido com aplausos no santuário, Georg Gänswein centrou a sua homilia na ideia da aceitação de cada um por parte de Deus e nas rejeições humanas pelas quais todos passam — palavras que podem ser lidas como uma referência à sua própria rejeição pela parte do Papa Francisco. “Todas as pessoas desejam ser aceites”, disse Gänswein. “Especialmente aquelas que agem como se não precisassem.” No entanto, continuou o arcebispo, toda a gente passa, nas suas vidas, por duras experiências de rejeição — as muitas portas “que nos são violentamente fechadas na cara”. É aí, diz o antigo secretário de Bento XVI, que cada um pode encontrar a aceitação de Deus, que começou justamente com a assunção de Maria — que na sua subida ao céu em corpo e alma, como acredita a Igreja Católica, mostra como cada ser humano é integralmente elevado para junto de Deus. “Não é isto uma razão para celebrar?”

A partir do final do verão, Georg Gänswein deverá começar a celebrar regularmente missas na catedral de Friburgo, mas continuará, na prática, sem emprego. Afastado pela hierarquia romana e exilado no seu país-natal, o antigo secretário de Bento XVI não esconde o desconforto com o Papa Francisco nem os seus posicionamentos mais conservadores. Sem funções oficiais atribuídas, e aparecendo apenas ocasionalmente em apresentações de livros e celebrações, resta uma dúvida: o que estará Gänswein a fazer na sombra?

No bastidores de uma onda conservadora?

Em fevereiro deste ano, no voo de regresso a Roma após a sua viagem à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul, o Papa Francisco foi diretamente questionado pelos jornalistas sobre as tensões entre diferentes alas da Igreja Católica que se aprofundaram após a morte de Bento XVI. Sem nunca mencionar o nome de Gänswein, Francisco considerou que “a morte de Bento foi instrumentalizada por pessoas que querem levar a água ao seu moinho”. Quem instrumentaliza alguém como Bento XVI, continuou Papa Francisco, “não tem ética, é gente de partido, não de Igreja”.

“Algumas histórias, que se contam, de que Bento vivia amargurado por isto ou por aquilo que fez o novo Papa são ‘histórias da carochinha’. Ao contrário, a Bento, consultei-o para algumas decisões a tomar e ele estava de acordo”, disse ainda Francisco. O nome de Gänswein podia não estar explícito — mas estava implícito.

Num artigo publicado em janeiro na revista Commonweal, o jornalista britânico Austen Ivereigh, biógrafo do Papa Francisco, não hesita em colocar Georg Gänswein como uma das figuras de proa do grupo que está a trabalhar ativamente para influenciar um próximo conclave numa direção mais conservadora, atacando Francisco, instrumentalizando a polémica em torno do rito antigo da missa para apelar aos tradicionalistas e rejeitando de modo claro a visão de Igreja que o Papa Francisco tem procurado construir, especialmente no que toca ao Sínodo sobre a Sinodalidade em curso atualmente.

Um dos indícios mais claros de que, por baixo da superfície, as figuras mais conservadoras da Igreja Católica têm trabalhado no sentido de minar o pontificado do Papa Francisco e influenciar o próximo conclave na direção oposta tornou-se público em janeiro deste ano, com a morte súbita do cardeal australiano George Pell. Quando Pell morreu, o jornalista italiano Sandro Magister — conhecido blogger dos meios conservadores — revelou que tinha sido o cardeal australiano o autor de um texto anónimo publicado no ano anterior com duras críticas ao pontificado de Francisco. Nesse texto, assinado sob o pseudónimo “Demos”, o pontificado de Francisco era descrito como “uma catástrofe” devido à abertura da Igreja à comunidade LGBT, ao maior papel dado às mulheres na Igreja e a uma série de outras razões de ordem moral.

"A morte de Bento foi instrumentalizada por pessoas que querem levar a água ao seu moinho."
Papa Francisco

A revelação da identidade do autor do texto, que tinha circulado amplamente nos círculos católicos, foi um choque em Roma: George Pell, afinal, era um traidor. “Pell pôs de lado o seu voto de lealdade ao Papa enquanto cardeal”, escreveu Austen Ivereigh. “Ele gozava da confiança de Francisco como responsável pela economia, mas também como membro do seu conselho de nove cardeais, encarregados de reformar o Vaticano, em cujas reuniões todos podiam falar abertamente.”

Além disso, lembrou Ivereigh, a traição também foi de ordem pessoal: “Quando o cardeal regressou à Austrália em julho de 2017 para enfrentar acusações de abuso sexual pelas quais foi condenado no ano seguinte, Francisco esteve sempre ao seu lado, defendendo a sua inocência. Depois, quando a condenação de Pell foi revertida após 13 meses de prisão, Francisco acolheu-o de volta em Roma em setembro de 2020. Pell tinha tido o cuidado de não criticar Francisco em público (…). Agora, aparentemente, Pell não era melhor do que aqueles que, como Francisco os descreveu em 2019, ‘sorriem enquanto te apunhalam pelas costas’.”

À medida que a saúde do Papa Francisco se fragilizou nos últimos anos e fez crescer a expectativa de um conclave futuro, este movimento de bastidores intensificou-se. O que poderá acontecer num próximo conclave é, naturalmente, uma incógnita, embora o plano esteja inclinado a favor da continuidade: mais de dois terços dos atuais membros com direito de voto no Colégio Cardinalício foram escolhidos por Francisco.

Ainda assim, continua a existir uma significativa oposição interna composta por cardeais conservadores que gostariam de ver uma Igreja diferente: e é aqui que Gänswein, discretamente a partir da Alemanha, poderá ajudar. Devido ao seu longo trabalho ao lado de Bento XVI, Gänswein conhece bem o funcionamento do Vaticano, tem uma extensa rede de contactos dentro da cúpula da Igreja e é muito respeitado entre os mais tradicionalistas, representando ainda a memória viva do pontificado de Ratzinger. Tudo isto poderá revelar-se fundamental para Gänswein ter um papel relevante a organizar o lóbi conservador no próximo conclave — e, pela idade que tem, poderá manter-se relevante na Igreja durante muitos anos.

Até lá, o mais provável é que permaneça na sua diocese-natal alemã, mais ou menos discretamente consoante o grau de envolvimento que decidir ter nas fortíssimas discussões teológicas que dividem a Igreja Católica na Alemanha: o processo de reforma levado a cabo pela Conferência Episcopal Alemã, e que resultou em decisões inéditas relacionadas com a moral sexual, a comunidade LGBT, o celibato e a ordenação das mulheres, ameaça conduzir parte da Igreja a um possível cisma. Resta saber que lugar pretende ter Gänswein no debate aceso no seu país.

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