Discurso de Ursula von der Leyen

Os pontos essenciais da declaração da presidente da Comissão Europeia aos eurodeputados

Daqui a menos de 300 dias, os europeus vão às urnas na nossa única e notável democracia.
Como em qualquer eleição, será um momento para as pessoas refletirem sobre o Estado da nossa União e o trabalho feito por aqueles que os representam. Mas será também um momento para decidir que tipo de futuro e que tipo de Europa querem.
Quanto estiverem naquela cabine de voto, vão pensar naquilo que importa para eles. Na guerra que grassa nas nossas fronteiras. Ou no impacto destrutivo das mudanças climáticas. Sobre como a inteligência artificial influencia as suas vidas. Ou nas hipóteses que têm de conseguir uma casa ou um emprego nos anos vindouros.”

Ursula von der Leyen arrancou o seu discurso do Estado da União com uma referência às eleições europeias, que vão ter lugar de 6 a 9 de junho do próximo ano. E a referência não será inocente: passando a elencar os temas que considera mais relevantes — a guerra na Ucrânia, as alterações climáticas, a inteligência artificial e as dificuldades económicas e sociais dos europeus —, a presidente da Comissão Europeia, que está em fim de mandato, trouxe um discurso não apenas para falar sobre o passado, mas também para projetar o futuro. Ou seja, mesmo não o dizendo diretamente, Von der Leyen insinuou que é candidata para liderar a próxima Comissão Europeia. E este discurso no Estado da União é o programa eleitoral que traz consigo.

Há quatro anos, o Green Deal europeu foi a nossa resposta ao chamamento da História. E este verão — o mais quente na Europa desde que há registos — foi um alerta gritante disso. A Grécia e a Espanha foram atingidas por fogos selvagens — e foram atingidas novamente poucas semanas depois por cheias devastadoras. E vimos o caos e a carnificina das temperaturas extremas, da Eslovénia até à Bulgária, que atravessaram a nossa União.
Esta é a realidade de um planeta que está a ferver.
O Green Deal europeu nasceu desta necessidade de proteger o nosso planeta. Mas também foi projetado como uma oportunidade para preservar a nossa prosperidade futura.”

Um dos primeiros tópicos em que Von der Leyen se focou foi no Green Deal, o projeto de transição ambiental que quer aplicar na Europa e que tanta tinta já fez correr, sobretudo pelas divisões internas do Partido Popular Europeu (PPE) sobre o tema  — mas já lá vamos. Nesta fase inicial do discurso, a presidente da Comissão tentou falar para os cidadãos e explicar-lhes a necessidade de avançar com esta proposta com base em acontecimentos recentes que os europeus viveram: incêndios, cheias e temperaturas elevadas neste verão que passou. No fundo, numa lógica de quem diz que as alterações climáticas deixaram de ser uma realidade abstrata e passaram a ter consequências diretas no dia-a-dia, razão pela qual, crê Von der Leyen, é preciso reagir com este Green Deal.

Não esquecemos como as práticas comerciais desleais da China afetaram a nossa indústria solar. Muitas empresas jovens foram afastadas por concorrentes chineses que são fortemente subsidiados. Empresas pioneiras tiveram de declarar falência, talentos promissores saíram em busca de fortuna no estrangeiro. É por isto que a justiça na economia global é algo tão importante — porque afeta vidas e sustentos. Indústrias e comunidades inteiras dependem disto. Por isso, temos de ter os olhos bem abertos para os riscos que enfrentamos.
Vejam o setor dos veículos elétricos. É uma indústria crucial para uma economia limpa, com grande potencial para a Europa. Mas os mercados globais estão agora inundados de carros elétricos chineses mais baratos. E o preço deles é mantido artificialmente baixo graças a enormes subsídios estatais. Isto está a distorcer o nosso mercado. E como não aceitamos isto cá dentro, também não aceitamos isto lá fora. Por isso, posso anunciar hoje que a Comissão vai lançar uma investigação aos subsídios aos carros elétricos vindos da China. A Europa está aberta à concorrência, mas não a uma corrida para o fundo.
Temos de nos defender contra práticas desleais. Mas, ao mesmo tempo, é vital manter abertas linhas de comunicação e de diálogo com a China. Porque também há tópicos onde conseguimos e temos de conseguir cooperar. Eliminar o risco, não afastarmo-nos — esta será a minha atitude com a liderança chinesa na Cimeira UE-China no final do ano.”

Em dezembro de 2020, a União Europeia assinava um grande acordo de investimento com a China, que contou com o alto patrocínio da chanceler alemã, Angela Merkel. Agora, menos de três anos depois, a antiga colega de Merkel no Conselho de Ministros, Ursula von der Leyen, traz uma postura radicalmente diferente para a relação com a China. Não de corte total, com a presidente da Comissão a sublinhar que é necessário manter “linhas de comunicação e de diálogo” abertas, mas abrindo uma ofensiva numa área específica: a da concorrência. A guerra na Ucrânia veio alterar por completo o panorama geopolítico e a Europa, aparentemente, já não está preocupada com a possibilidade de melindrar Pequim. Tanto que a Comissão vai abrir diretamente uma investigação a uma possível concorrência desleal no setor dos carros elétricos. No meio disto, importa recordar que a China é o principal mercado de onde a UE importa bens — cerca de 20% são produzidos naquele país.

A perda da natureza destrói não só os alicerces da nossa vida, mas também a nossa perceção do que significa casa. Temos de a proteger. Ao mesmo tempo, a segurança alimentar, em harmonia com a natureza, continua a ser uma tarefa essencial.
Gostaria de aproveitar esta oportunidade para expressar o meu apreço pelos nossos agricultores, para lhes agradecer fornecerem-nos comida dia após dia. Para nós, na Europa, a tarefa da agricultura, de produzir comida saudável, é o alicerce da nossa política agrícola. E a auto-suficiência alimentar também é importante para nós. É isso que os nossos agricultores nos garantem.
(…) Precisamos de mais diálogo e menos polarização. É por isso que queremos lançar um diálogo estratégico sobre o futuro da agricultura na UE. Continuo convencida de que a agricultura e a proteção do mundo natural podem andar de mãos dadas. Precisamos de ambas.”

De regresso ao Green Deal, Von der Leyen decidiu falar sobre o elefante na sala: a lei da restauração da natureza, que foi recentemente aprovada com margem mínima, depois de vários partidos do PPE (a sua família política) terem decidido opor-se. Até aqui, a presidente da Comissão não tinha comentado publicamente o assunto, mas desta vez fê-lo — não para criticar diretamente o seu partido, mas para tentar sinalizar cedências, sem abdicar do objetivo final (aprovar todas as medidas do Green Deal). É que o apoio do PPE é decisivo para Ursula von der Leyen se quiser voltar a ser eleita presidente da Comissão e, portanto, não pode alienar a atual liderança de Manfred Weber. Por isso, não recuando na lei da restauração da natureza, Von der Leyen reconheceu que esta deve ser articulada com as necessidades dos agricultores, a quem deixou uma nota de “apreço”, e com menos “polarização”. Nada que surpreenda se tivermos em conta que o PPE se tem assumido como “o partido dos agricultores”.

A cada dia vemos que conflitos, alterações climáticas e instabilidade estão a levar as pessoas a procurarem abrigo noutros lugares. Sempre tive a convicção firme de que as migrações devem ser geridas. É preciso resistência e um trabalho paciente com aliados-chave. E é preciso unidade dentro da nossa União. Este é o espírito do Novo Pacto para as Migrações e Asilo.
(…) E traduzimos o espírito do Pacto para soluções práticas. Fomos rápidos e unidos na resposta ao ataque híbrido que a Bielorrússia lançou contra nós. Trabalhámos de perto com os nossos parceiros dos Balcãs Ocidentais e reduzimos os fluxos irregulares. Assinámos uma parceria com a Tunísia que traz benefícios mútuos para lá das migrações — da energia e educação até ferramentas e segurança. E agora queremos trabalhar em acordos semelhantes com outros países.
(…) Sabemos que as migrações exigem trabalho constante. E isso é mais vital do que nunca na nossa luta contra os traficantes de pessoas. Eles atraem pessoas desesperadas com as suas mentiras e colocam-nas em rotas letais pelo deserto ou em barcos que não estão prontos para ir para o mar. A forma como estes traficantes operam está sempre a evoluir. Mas a nossa legislação tem mais de vinte anos e precisa de uma atualização urgente. Por isso, precisamos de nova legislação e uma nova estrutura de governação. Precisamos de uma atuação policial e judicial mais fortes e de um papel mais proeminente para as nossas agências, a Europol, Eurojust e Frontex. E precisamos de trabalhar com os nossos parceiros para dirimir esta praga do tráfico humano. É por isso que a Comissão vai organizar uma Conferência Internacional sobre o combate ao tráfico de pessoas. É altura de por um fim a este negócio insensível e criminoso.”

Sobre a política relativa às migrações e asilo de refugiados — um dos pontos que mais tem tensão tem provocado entre diferentes Estados da União nos últimos anos, pela pressão que a chegada de migrantes de África ao continente europeu gera —, Ursula von der Leyen defendeu o Novo Pacto para as Migrações recentemente aprovado pelo Conselho Europeu. O documento prevê, entre outras, medidas como a redistribuição de requerentes de asilo por vários países europeus, através do chamado Mecanismo de Solidariedade. Medidas que não agradam a alguns países europeus e que foram até criticadas no plenário pelos grupos de direita e extrema-direita. Mas Von der Leyen também desagradou à esquerda e à extrema-esquerda com as suas outras propostas: o combate aos traficantes de pessoas, por um lado, e a assinatura de acordos semelhantes ao que foi feito com a Tunísia. Ora, o acordo com este país é já semelhante a um acordo prévio que a UE tinha assinado com a Turquia e que, na prática, prevê a entrega de milhões de euros a estes países para que estes ajudem a travar as migrações irregulares em direção à Europa. E quer socialistas, quer membros do grupo da Esquerda, mostraram-se contra estas medidas.

Iremos estar ao lado da Ucrânia em cada passo. Durante o tempo que for preciso.
Desde o início da guerra, quatro milhões de ucranianos encontraram refúgio na nossa União. E quero dizer-lhes que são tão bem-vindos hoje como eram naquelas fatídicas primeiras semanas. Garantimos que eles tinham acesso à habitação, à saúde, ao mercado laboral e a muito mais.
Ilustres membros, isto foi a Europa a responder ao chamamento da História. E, por isso, tenho orgulho em anunciar que a Comissão vai propor a extensão da nossa proteção temporária aos ucranianos na UE.
O nosso apoio à Ucrânia vai continuar. Já demos mais de 12 mil milhões de euros só este ano para ajudar a pagar salários e pensões. Para manter em funcionamento hospitais, escolas e outros serviços. E, através da nossa proposta ASAP [Lei de Apoio à Produção de Munições], estamos a aumentar a produção de munições para ajudar a responder às necessidades da Ucrânia. Mas também estamos a olhar para a frente. É por isso que propusemos mais 50 mil milhões de euros ao longo de quatro anos, para investimento e reformas. Isto ajudará a construir o futuro da Ucrânia e a reconstruir um país moderno e próspero.

Mais do que atacar Vladimir Putin pela guerra na Ucrânia, Von der Leyen decidiu focar parte deste discurso no apoio europeu à Ucrânia. E apresentou medidas concretas como a extensão da proteção temporária para os refugiados na UE ou o aumento dos fundos para reconstrução. Já na questão do fornecimento do armamento, medida que tanto tem sido pedida por Kiev, a presidente da Comissão Europeia tem menos a oferecer, já que as políticas de defesa continuam a ser competência de cada Estado-membro a nível individual. Por isso, Von der Leyen destacou que a UE fez o possível, aumentando a produção de munições através da lei ASAP.

E esse futuro é fácil de ver, esta câmara disse-o bem alto: o futuro da Ucrânia é na nossa União. O futuro dos Balcãs Ocidentais é na nossa União. O futuro da Moldávia é na nossa União. E sei bem o quão importante é a perspetiva da UE para tanta gente na Geórgia.
(…) Isto é do nosso interesse comum. Pensem no grande alargamento de há 20 anos. Chamámos-lhe ‘Dia Europeu de Boas-Vindas’ e foi um triunfo da determinação e da esperança sobre os fardos do passado. Nos 20 anos seguintes, assistimos a uma história de sucesso económico que melhorou a vida de milhões. Quero que olhemos para o próximo ‘Dia Europeu de Boas-Vindas’ e para as próximas histórias de sucesso económico.
Sabemos que este não é um caminho fácil. A adesão é baseada no mérito e a Comissão vai sempre defender este princípio. Exige trabalho árduo e liderança. Mas já há muito progresso. Vimos os grandes passos que a Ucrânia já fez desde que lhe atribuímos estatuto de candidata. E vemos a determinação dos outros candidatos para conduzirem reformas.
(…) Provámos que conseguimos ser uma União geopolítica e mostrámos que conseguimos avançar depressa quando nos unimos. E acredito que a Equipa Europa também funciona com mais de 30 [países].”

Mas a verdadeira mensagem que a presidente da Comissão Europeia trazia para Kiev era esta: a de que, consigo, a adesão da Ucrânia à União irá acontecer. “O futuro da Ucrânia é na nossa União”, disse taxativamente Von der Leyen. Acalmou os receios dos que temem uma adesão à pressa — como o primeiro-ministro português, António Costa —, sublinhando que esta continuará a ser “baseada no mérito” e que as reformas têm de ser conduzidas. Para facilitar nesse processo, anunciou que a Comissão vai disponibilizar aos países-candidatos o acesso aos relatórios conduzidos sobre as violações do Estado de Direito por alguns países. Mas Von der Leyen sublinhou que, para além da Ucrânia, os países dos Balcãs Ocidentais e a Moldávia também devem entrar na UE no futuro — para a Geórgia, mantém-se como uma possibilidade. A adesão da Moldávia, país fortemente influenciado pela Rússia, parece ter ganho um caráter mais urgente desde o início da guerra da Ucrânia para a presidente da Comissão. Isto porque, diz, a UE deve ser agora uma “união geopolítica”.

É aqui que a Europa está hoje, num tempo e num lugar em que se escreve História. O futuro do nosso continente depende das escolhas que fazemos hoje. Dos passos que damos para completar a nossa União.
(…) Uma vez mais: este é o momento de a Europa responder ao chamamento da História. Longa vida à Europa.”

Para terminar, a presidente da Comissão Europeia quis sublinhar a urgência do momento atual. Uma tentativa de galvanizar eleitores, a menos de um ano das próximas eleições europeias, que ditarão o futuro da União — e também da própria Ursula Von der Leyen.