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Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Estamos a entrar numa nova fase nas campanhas de vacinação nos EUA e na UE, em resultado da resolução dos sérios problemas de expansão rápida na fabricação das vacinas que ocorreram até recentemente. Os números de produção das vacinas das grandes farmacêuticas atingidos no mês de março, em particular nos EUA, fazem agora prever que nos EUA e Reino Unido se conseguirá atingir a imunidade de grupo até julho deste ano, e é possível que a UE também consiga o objetivo anunciado pela Comissão Europeia para setembro deste ano. Segundo as estimativas apresentadas neste ensaio, baseadas nos dados publicamente disponíveis, a principal restrição passa a partir de agora para a capacidade de administração das vacinas a nível nacional, o que coloca em cheque as estratégias nacionais de vacinação.
Dos dados aqui recolhidos também se conclui que o chamado “nacionalismo” das vacinas tem sido sobretudo praticado pelos EUA e Reino Unido e que a UE tem exportado cerca de um terço da sua produção, apesar da insuficiência na oferta que tem vivido. Também se conclui que afinal o brilharete que o Reino Unido tem feito na campanha das vacinas se deve à UE, o que é uma ironia na medida em que o que o êxito tem sido atribuído pela imprensa inglesa ao Brexit e à eficácia do seu governo agora sem as amarras burocráticas da Comissão. Situação idêntica se pode observar para Israel. Além disso, no jogo global das grandes potências mundiais mais uma vez se verifica que a China, e em menor grau a Rússia, estão a utilizar as vacinas como arma política na sua influência.
Finalmente, com a multiplicação da produção anunciada pelas diversas farmacêuticas é agora, mais do que nunca, possível que a luta global contra a Covid-19 se acentue, sobretudo por causa do aparecimento de novas variantes mais letais.
Dados estatísticos até finais de março: como se comparam os países na produção e administração das vacinas
Embora existam dados diários sobre a administração das vacinas da Covid-19 por países, não existem dados oficiais sobre produção nem de comércio internacional de vacinas. O Quadro 1 foi compilado usando várias fontes de informação, e por isso deve ser visto como uma simples estimativa. Como podemos observar, até 27 de março de 2021, estima-se que tenham sido já produzidas cerca de 591 milhões de doses de vacinas em todo o mundo. O maior produtor é a China, com 196 milhões, seguido pelos EUA, com 157 milhões, a UE, com 112 milhões, e Índia com 85 milhões de doses.
Deste total produzido, cerca de 178 milhões terão sido objeto de comércio internacional, embora não tenhamos conseguido obter informação correspondente para o total das importações, o que é uma falha. Os maiores países exportadores são a China, que exportou cerca de metade da sua produção, face à menor prioridade atribuída à vacinação como política de saúde pública, devido ao controlo que os métodos não médicos têm conseguido da pandemia (leia-se testagem-identificação de cadeias de transmissão e isolamento de infetados). A Índia, que é um dos principais países produtores e exportadores de vacinas, também exporta cerca de metade da produção.
Contudo, o que é surpreendente é que, entre os países desenvolvidos, é a UE quem está a exportar um elevado volume da sua produção – cerca de um terço –, enquanto o Reino Unido e os EUA proíbem a exportação enquanto não satisfizerem as necessidades internas.
Ainda mais surpreendente é que a razão pela qual o Reino Unido está claramente à frente da UE no processo de vacinação é por causa das importações de vacinas que está a fazer da UE. É, pois, compreensível, perante esta situação, que a Comissão Europeia tenha denunciado várias vezes o escoamento para países fora da União e, em especial para o Reino Unido, que mesmo assim tem protestado perante a ameaça de maior controlo das fronteiras entre os dois espaços depois do Brexit. As razões deste problema foram analisadas neste ensaio, e têm essencialmente a ver com a forma como os contratos foram estruturados pelas diferentes jurisdições.
Os dados são apenas estimativas, e estamos conscientes que têm problemas, como o facto de o total das exportações não ser igual às importações. Note-se que a grande diferença que existe entre a produção e administração de vacinas nos EUA é devido a um stock de cerca de 40 milhões de doses da AstraZeneca que não foram utilizadas por falta de aprovação da vacina pelos reguladores. O Governo de Biden está agora a oferecer uma parte ao Canadá e ao México, que já aprovaram a sua utilização. Apesar da recomendação de alguns comentadores para que parte fosse cedida à UE, o Governo norte-americano preferiu canalizá-las para os países vizinhos e membros da associação de comércio.
Como vão as campanhas de vacinação dos diferentes países
Os últimos dados disponíveis para a produção de vacinas para o mês de março de 2021 mostram um acréscimo extraordinário nos EUA e, em menor escala, na UE, como os Gráficos 1 e 2 permitem observar. Estes dados representam uma alteração significativa nas perspetivas da produção de vacinas pelas farmacêuticas cujas vacinas já foram aprovadas pelos reguladores, e perspetivar uma evolução mais favorável para a vacinação caso os sistemas de saúde nacionais consigam administrar a vacina a ritmos que são o múltiplo dos atuais.
É visível pelo Gráfico 3 que a UE é a entidade com menor taxa de vacinação e sem mostrar sinais de acelerar para apanhar o ritmo dos outros países. Com uma taxa de apenas 10% de pessoas vacinadas, compara com 26% dos EUA, 43% do Reino Unido e 60% de Israel. Não admira, pois, que sejam cada vez mais intensos os protestos dos cidadãos europeus.
Os impactos das campanhas de vacinação
Segundo o Center for Disease Control and Prevention (CDC) dos EUA, os dados mais recentes sobre as vacinas tipo mRNA confirmam os testes clínicos. O regime de duas-doses previne a infeção com uma probabilidade de 90%, duas semanas depois da segunda toma. A primeira dose previne a infeção com uma probabilidade de 80% também duas semanas após a aplicação da vacina. O mesmo CDC também conclui que a investigação até hoje feita rejeita a hipótese de transmissão do vírus por pessoas vacinadas.
Os Gráficos 4 a 7 mostram o impacto da taxa de vacinação (em percentagem da população) na redução das mortes (número de mortes por Covid por milhão de habitantes). Como é visível, em Israel, Reino Unido e EUA, o rápido aumento da taxa de vacinação está associado a uma significativa redução da taxa de mortalidade. Além disso, todos estes países deram prioridade absoluta aos idosos acima dos 60 anos, onde as taxas de vacinação deste grupo já são superiores a 80%, o que não acontece nos países da UE, e em especial em Portugal. Como se pode observar, na UE a taxa de mortalidade ainda está acima dos 5 por milhão de habitantes, e a subir novamente, enquanto nos três outros países está entre 1,5 (em Israel e Reino Unido) e 3 (nos EUA).
Israel já está próximo de atingir a imunidade global da população. O Reino Unido e os EUA irão atingir este marco fundamental entre junho e julho de 2021. O New York Times estima que, considerando apenas as pessoas vacinadas, o país deve atingir a imunidade de grupo em meados de julho de 2021, supondo que a taxa de vacinação diária atinge os 3 milhões ainda este mês, como Joe Biden anunciou. Mas se considerarmos também as pessoas que já foram infetadas e assim adquiriram imunidade natural, a imunidade de grupo atingir-se-á na primeira metade de maio de 2021. Este cenário pressupõe que a vacina é eficaz contra as novas variantes. Mesmo assim, e com as medidas convencionais de distanciamento social, estima-se que ainda podem morrer 90 mil pessoas a acrescentar aos 550 mil já falecidos.
Em conclusão, a UE está numa situação ainda dramática, com a taxa de mortalidade por Covid-19 mais elevada dos países aqui estudados, com tendência para se agravar, com vários países-membros a anunciar medidas mais estritas de lockdown e a campanha de vacinação a mostrar uma lentidão arrepiante.
Cenários para a vacinação a nível global
Há boas notícias no horizonte, caso se mantenham os níveis de março de produção de vacinas nos EUA e na UE, que mostram uma multiplicação para o dobro do verificado em fevereiro, que já tinha duplicado em relação a janeiro. Vejamos os cenários possíveis para a oferta ou produção (Quadro 2) e procura ou administração (Quadro 3) de vacinas a nível global para o ano de 2021, apenas para as vacinas que já foram aprovadas pelos reguladores, nos EUA e UE, incluindo o Reino Unido e Suíça.
Mesmo assim, estes cenários são conservadores e estão abaixo dos planos que as farmacêuticas já anunciaram, e que totalizam mais de 6.500 milhões de doses, dos quais se destaca a Pfizer, que acabou de anunciar um novo plano de 2.500 milhões de doses para este ano. A produção da AstraZeneca está em dúvida, pois tem enfrentado diversas suspensões e ainda não foi autorizada nos EUA.
Terá a UE capacidade para administrar a vacina, seguindo o exemplo dos EUA, de forma a atingir a imunidade de grupo até setembro de 2021?
O Gráfico 8, publicado num estudo do New York Times, mostra o cenário da campanha de vacinação nos EUA, caso este país consiga subir o ritmo de vacinação diária para 3 milhões, sem que as variantes reduzam significativamente a eficácia das vacinas e se o país continuar a tomar as precauções de distanciamento social que têm sido preconizadas pelo CDC. Neste caso, o país conseguiria atingir a imunidade de grupo em maio de 2021, considerando as pessoas que já foram infetadas.
A imunidade total difere da imunidade devido à vacina porque inclui também os que foram infetados e não morreram. A imunidade de grupo (herd immunity) é em geral estimada entre 70 e 90% da população.
E o que conseguirá a UE? Presentemente a União já vacinou totalmente 21,5 milhões de pessoas, tendo sido infetadas 26 milhões, pelo que para alcançar a imunidade de grupo necessita pelo menos de dar mais 500 milhões de doses da vacina (dados de 31.3.2021). O Gráfico 9 mostra que estamos hoje a administrar 1,5 milhões de doses diárias, pelo que para atingir aquele número em setembro será necessário ir aumentando sustentadamente o número de vacinas até atingir os 3 milhões diárias em maio.
Haverá restrições do lado da oferta? Embora possam ser um pouco apertadas, as projeções indicam, para a UE, a possibilidade de produzir uma média de 3 milhões diárias com 70% de exportações. Na medida em que o Reino Unido já terá atingido a imunidade de grupo no decorrer deste trimestre, a Comissão deverá controlar de forma mais restrita as exportações, caso aquele montante não seja atingido. É também evidente que, no decorrer do 2º trimestre, os EUA irão fabricar um volume cada vez maior de stocks que poderão ser exportados. Mesmo que seja dada preferência ao México e Canadá, estimamos que no final do 2º trimestre o stock de vacinas não utilizadas poderá atingir duas centenas de milhões de doses — que esperamos que parte venha a beneficiar a UE.
Conseguirão os sistemas de saúde dos países-membros da UE atingir aquele nível de vacinações diárias? Devemos aprender com o que os EUA estão a fazer. Depois de um forcing de Biden, o número de diário de vacinas subiu de uma média de 1,7 milhões no início de março para 2,8 milhões nos finais de março, tendo atingido os 3 milhões em vários dias das últimas semanas. A maioria dos Estados americanos está nesta fase a vacinar em farmácias ou centros ambulantes de vacinação. Cada Estado tem um site com ampla informação que seria importante que os nossos dirigentes seguissem (exemplos aqui e aqui).
Diplomacia e políticas internacionais. A COVAX e a distribuição internacional da vacina
Apesar do enorme esforço feito pelas farmacêuticas na descoberta, testagem e criação de capacidade de manufatura, e o notável papel da Operation Warp Speed de Trump, documentada no nosso ensaio anterior, a escassez da oferta de vacinas devido às dificuldades iniciais no seu fabrico levou os EUA a proibirem a exportação de vacinas do Covid-19 e inputs necessários ao seu fabrico. Para fazer esta proibição, o Governo norte-americano lançou mão de um War Act, que não tinha sido utilizado desde a II Guerra Mundial, dando prioridade aos seus cidadãos. Também no caso do Reino Unido, o Governo de Boris Johnson não só proibiu a exportação, por contrato com a única produtora, a AstraZeneca, como beneficiou largamente da importação de vacinas da UE.
Mas estas proibições fazem cada vez menos sentido. Os EUA têm neste momento um stock de vacinas de cerca de 40 milhões de doses da AstraZeneca que não administra porque esta vacina ainda não foi aprovada pelos reguladores americanos. E o Reino Unido, ao importar a vacina, também deveria abrir mão das exportações, pois o comércio internacional não é apenas num sentido.
Só a UE é que, apesar do ritmo lento da administração das vacinas e do descontentamento e protestos que tem levantado, já exportou cerca de um terço da sua produção. Segundo várias fontes, já terá exportado 34 milhões de doses para todo o mundo, a maioria para o Reino Unido, mas também para Israel, Chile, México, Canadá, Austrália e vários países do Médio Oriente.
A nível mundial existe um acordo, conhecido pela Iniciativa COVAX, para ajudar os países subdesenvolvidos a receberam as vacinas desenvolvidas pelas grandes farmacêuticas. Os países mais pobres recebê-las-iam gratuitamente e os restantes ao preço de custo. De acordo com as nossas projeções, mesmo no cenário mais conservador, e apenas com a produção das grandes farmacêuticas ocidentais, seria possível já inocular cerca de 23% da população do resto do mundo ainda em 2021.
A UE está na frente desta iniciativa meritória, tendo já oferecido 2.2 mil milhões de euros para o seu financiamento e acordado com as farmacêuticas o fornecimento ao preço de custo, nos seus próprios contratos, em benefício da COVAX.
Entretanto, a China está a utilizar as suas vacinas na corrida diplomática contra a pandemia, tendo o Presidente Xi Jinping oferecido aos países de África vacinas no valor de 2 mil milhões de dólares, e à América Latina e Caribe um empréstimo de 1 mil milhões para aquisição das vacinas. Esperemos, pois, que nos finais de 2021 o mundo possa respirar de alívio desta tremenda pandemia.
P.S. Não podemos deixar de insistir que a campanha de vacinação entre nós deve usar critérios de prioridade simples, transparentes e facilmente controláveis, enquanto é necessário racionar as vacinas. Desde o início que temos defendido que o critério de prioridade às pessoas com mais de 60 anos deve ser o único critério, depois dos profissionais da saúde. Entre nós mais de 96% das mortes por Covid ocorrem em pessoas com mais de 60 anos, pelo que se se pretende reduzir o risco de morte este é o critério a usar. Não podem ser critérios políticos ou de grupos de interesse (políticos, forças de segurança, bombeiros, professores e outros) a sobrepor-se ao único que uma política de saúde pública deve prosseguir: reduzir a mortalidade da pandemia.
Professor Universitário de Economia. Doutorado pela Universidade de Pennsylvania, EUA. Foi economista sénior do Banco Mundial e administrador do Banco de Portugal. Presidiu à Autoridade da Concorrência