O apelo chega de uma mãe através do grupo de troca de mensagens dos “Médicos pela verdade Portugal” na aplicação de telemóvel Telegram: tem um filho de 22 anos que foi chamado para fazer o teste de rastreio para o SARS-CoV-2 porque contactou com uma pessoa infetada durante uma viagem de trabalho. O que pode fazer? A resposta chega de alguém identificado como “Maria de Oliveira – Médica”, com uma receita que passa por tomar alguns suplementos e fazer várias lavagens ao nariz e à garganta.
A ideia será conseguir eliminar “todos os restos virais” dos locais onde é feita a recolha das amostras com a zaragatoa, como se lê numa outra mensagem também atribuída à mesma médica e com a mesma receita, de forma a que o teste PCR para deteção do vírus dê negativo — mesmo que a pessoa esteja infetada. Na recomendação, é dito que “é importante limpar as fossas nasais e a orofaringe de todos os restos virais”. “Se o fizer regularmente e depois imediatamente antes de ir fazer a zaragatoa verá que testará negativo”, conclui.
O Observador sabe que esta mensagem já chegou à Ordem dos Médicos, numa denúncia enviada por email.
Mas voltemos ao pedido de ajuda da mãe preocupada com o teste que o filho terá de fazer. Mesmo antes de saber o resultado do teste, a mãe do jovem já perguntava onde podia adquirir hidroxicloroquina (um medicamento que, até ao momento, não demonstrou ser eficaz no tratamento da Covid-19). A médica Maria de Oliveira — conforme vem indicado na comunicação a que o Observador teve acesso — responde à mãe que a hidroxicloroquina não deve ser usada num assintomático, mas lembra que ninguém pode obrigar o jovem a fazer o teste.
E acrescenta: “Se a pressão pidesca for muita e o jovem não se conseguir escapar”, pode seguir aquela receita.
Quem é, afinal, “Maria de Oliveira – Médica”, como se lê na identificação do remetente das mensagens? Uma outra mensagem enviada pela mesma pessoa (nesse caso, sobre o uso de máscaras), a que o Observador também teve acesso, traz uma informação mais completa: está assinada como “Maria Gomes de Oliveira” e com a indicação da cédula da Ordem dos Médicos — “O.M. 34309”. E uma pesquisa na base de dados da Ordem indica que essa célula pertence a “Maria Margarida Gomes de Oliveira”, uma anestesiologista registada na secção Sul.
O Observador questionou, por isso, a anestesiologista sobre as recomendações em questão, detalhando a receita que está a ser partilhada. A co-fundadora do movimento Médicos pela Verdade, que desvaloriza a gravidade da Covid-19, recusou responder, alegando que as questões caíam “no âmbito da relação médico-doente que é privada e sigilosa”. E acrescentou: “Não confirmo nem desminto. Simplesmente, não respondo”.
O Observador, no entanto, teve acesso a documentação que comprova que foi, de facto, a médica quem recomendou aquela receita a pelo menos uma pessoa e que depois essa receita começou a ser partilhada por outros.
Mais: a recomendação que a médica diz ter sido feita no âmbito da relação médico-doente aconteceu numa plataforma de comunicação, o Telegram, permitindo que outros utilizadores tivessem acesso à informação e que, posteriormente, a replicassem. O princípio da confidencialidade enunciado pela médica e previsto no Código Deontológico da Ordem dos Médicos não foi, assim, respeitado.
A receita em causa inclui suplementos alimentares, gargarejos e lavagens nasais nos dias que antecedem o teste de PCR, e muita água e jejum de duas ou três horas antes do exame. Convém, no entanto, explicar que o SARS-CoV-2 entra dentro das células, onde usa a maquinaria celular para produzir novos vírus. Mesmo que fosse possível eliminar os vírus que estão fora das células com as lavagens, os vírus no interior das células mantêm-se e as zaragatoas são capazes de recolher algumas dessas células.
Ainda assim, não é de todo impossível que aquela recomendação seja bem sucedida no objetivo de enganar o teste — permitindo que uma pessoa infetada seja um risco não só para si mas também para os outros, por não ser obrigada ao isolamento. O que os especialistas ouvidos pelo Observador explicam é que, a acontecer, será num número mínimo de casos.
“A probabilidade é mínima de o resultado de um teste com uma colheita bem feita ser alterado por uma lavagem das fossas nasais”, diz ao Observador Vasco Ricoca Peixoto, médico interno de Saúde Pública. Para isso acontecer a quantidade de vírus teria de ser realmente muito pequena — no início ou final da infeção, quando o risco de contágio também é menor. Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, também tem dúvidas de que estas lavagens tenham qualquer efeito na detenção do vírus, mas destaca que, mesmo que tivessem, só se estaria a eliminar o ponto de colheita. O vírus continua no organismo e o risco associado também.
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Os riscos de uma grávida esconder a infeção
No mesmo grupo de conversação no Telegram também se encontra o caso de uma futura mãe que pede ajuda perante a necessidade de fazer um teste. No seu caso, a testagem é obrigatória: em contexto hospitalar, todas as intervenções passíveis de gerar aerossóis obrigam à realização de teste de rastreio para o SARS-CoV-2, explica a médica Maria de Oliveira à futura mãe, acrescentando que o marido, se quiser acompanhá-la, também tem de fazer o teste.
O objetivo da grávida é claro: sente-se saudável, mas está preocupada com a possibilidade de ela ou o marido poderem ter um teste positivo. Se isso acontecer, explica, “tem que ter o bebé no público e o contacto com o bebé é limitado”. E, no caso do pai, “fica privado de qualquer contacto com a mãe e o bebé”.
Na resposta, a anestesiologista volta a recomendar a receita — com uma ligeira modificação: a grávida não deve tomar os suplementos alimentares recomendados ao marido. Tudo o resto é semelhante.
A importância de saber se a mãe está infetada visa proteger a mãe, o bebé e os profissionais de saúde. “[Nos casos positivos,] o parto deve ocorrer num bloco de partos com pressão negativa, dedicado a casos suspeitos ou confirmados de Covid-19” e os profissionais de saúde devem usar o equipamento de proteção individual adequado à situação, refere uma orientação da Direção-Geral da Saúde (DGS).
O Observador expôs a situação a alguns médicos (sem, no entanto, identificar a médica visada) com o objetivo de perceber as implicações que pode ter uma ideia como esta no contexto de pandemia que atravessamos. Do outro lado da linha, os médicos tiveram dificuldade em acreditar que alguém, médico ou doente, pudesse ter algum interesse em ter um teste falso negativo.
No caso da grávida, o objetivo é evitar que, estando infetados, pai e mãe fiquem supostamente impedidos de estar juntos ou com o bebé. Mas não é exatamente isso que dizem as orientações da DGS: a não ser que a mãe apresente uma doença grave, não deve ser afastada do bebé. É possível que o bebé e a mãe fiquem no mesmo espaço, em quarto individual, desde que a mãe cumpra as medidas de controlo da infeção (máscara e higiene das mãos e mamas), e, se a mãe quiser, pode mesmo haver contacto pele a pele após o nascimento e amamentação, conforme o documento divulgado em maio. Já o pai, acompanhante, cuidador, familiar ou qualquer outra pessoa que tenha um teste positivo para o SARS-CoV-2 deve ficar em isolamento — como qualquer outra pessoa infetada — e, como tal, ele sim não deve contactar com a mãe ou o bebé durante esse período.
Os Médicos pela Verdade contestam, no Manifesto do Movimento, o uso de testes PCR no diagnóstico do SARS-CoV-2, com a acusação de que os testes têm um elevado número de falsos positivos por detetarem muitos assintomáticos. A agência norte americana do medicamento (FDA) destaca, no entanto, que os testes PCR são altamente específicos — o que reduz a probabilidade de serem positivos por outro motivo qualquer que não a presença do vírus —, assim como são altamente sensíveis — o que reduz a probabilidade de falsos negativos. E são estes falsos negativos que a receita divulgada procura. No email enviado a Maria Gomes de Oliveira, o Observador também perguntou qual a sua motivação, mas a médica pediu para não voltar a ser incomodada.
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É uma ideia “perigosa”, dizem os médicos
Os médicos ouvidos pelo Observador foram unânimes: a ideia de se tentar falsear o resultado do teste de diagnóstico para o SARS-CoV-2 é grave. Não só em termos éticos, uma vez que a mensagem está a ser difundida por uma médica, mas também porque a ideia de querer esconder um caso positivo pode colocar terceiros em risco. Basta pegar num exemplo recente de Portimão, em que uma pessoa foi trabalhar, mesmo sabendo que estava infetada, e infetou outras 17 pessoas, segundo noticiou a TVI24 na semana passada.
“Uma pessoa que tenha um teste negativo pode continuar a ter contactos”, diz ao Observador Carlos Martins, especialista em Medicina Geral e Familiar. Ao contrário de uma pessoa com o teste positivo, com sintomas ou não, que deve ficar em isolamento com o objetivo de evitar transmitir o vírus a outras pessoas que, eventualmente, até podem vir a desenvolver uma doença grave. “Não cabe na cabeça de qualquer médico nesta fase não identificar os contactos [as pessoas que potencialmente tenham estado expostas ao vírus]”, diz ao Observador Teresa Leão, especialista em Saúde Pública. O médico de Saúde Pública Ricardo Mexia não tem dúvidas ao afirmar: “Estamos a brincar com uma situação que pode custar a vida às pessoas”.
Carlos Martins voltou ao início dos anos 1980 para recordar a crise do VIH/sida. Não que os dois vírus tenham qualquer comparação, mas as consequências do comportamento das pessoas tem. “Um dos problemas com que a sociedade teve de lidar foi o facto de haver pessoas que, sabendo que eram seropositivas, tentavam ocultar ao máximo essa verdade das famílias, o que gerou muitas infeções desnecessárias.”
O caso da grávida que quer ter um teste negativo juntamente com o marido é um bom exemplo para a crise atual. Se testassem negativo, mesmo estando infetados, as medidas de proteção usadas pelos médicos não seriam tão grandes como no caso de uma mãe infetada, o que colocaria os profissionais de saúde em risco. Se a mãe não revelar estar doente, o bebé poderá não ter outra indicação para fazer o teste. É certo que as crianças são, normalmente, assintomáticas ou têm doença ligeira, mas não se sabe o suficiente sobre o efeito que pode a Covid-19 ter sobre um recém-nascido. E isto se não se colocar também na equação que todos os familiares e amigos que pudessem, eventualmente, visitar o casal e o bebé corriam também o risco de serem expostos ao vírus.
Teresa Leão entende que o isolamento imposto nos casos positivos “é danoso para o dia a dia da pessoa”, desde o núcleo familiar que quer estar próximo, às pessoas que não querem deixar de trabalhar ou fazer a sua vida social. Mas lembra que “é perigoso tentar criar a ideia de que podemos ocultar os resultados”. Os riscos podem ser grandes para as próprias pessoas, para os contactos e para a comunidade. “Sendo que a comunidade são também os familiares e amigos, que podem ser infetados, adoecer ou, até, ter um desfecho negativo”, enfatiza a médica.
Sem conseguir “qualificar uma pessoa que queira falsear os resultados e que pode colocar terceiros em risco”, Ricardo Mexia lembra que esta atitude pode ser punida por lei. De facto, o artigo 283.º do Código Penal prevê que uma pessoa que propague doença contagiosa, ou o profissional de saúde que “forneça dados ou resultados inexatos”, e que “crie, deste modo, perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física de outrem é punido com pena de prisão de um a oito anos”. Uma pena que pode ser agravada caso resulte na morte de terceiros.
A própria Convenção Europeia dos Direitos do Homem prevê a detenção nestas situações. “Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal”, lê-se no artigo 5.º, que aponta como um dos casos, “se se tratar da detenção legal de uma pessoa suscetível de propagar uma doença contagiosa”.
Teresa Leão apela a que haja uma responsabilização individual de cada um. “Uma pessoa que tem um teste positivo sabe que tem de ficar em isolamento, não precisa de um médico para lhe dizer isso”, diz a médica de Saúde Pública. Se as pessoas ocultarem os resultados ou não cumprirem o isolamento, vamos criar “surtos que não é possível controlar”. E com a sobrecarga que já tem o Serviço Nacional de Saúde, Carlos Martins considera que é “um desrespeito para com os profissionais de saúde, que estão a tentar salvar vidas e a tentar minimizar os danos”.
“Nunca pensei ver colegas meus irem contra a verdade científica, contribuírem para gerar confusão e maus comportamentos por parte das pessoas”, confessa, desanimado, o médico de Medicina Geral e Familiar, para quem os últimos meses têm sido de angústia ao tentar mostrar às pessoas a gravidade da doença. Para Ricardo Mexia, a atitude de um médico que promove uma solução para falsear um teste é “inaceitável”. “Deontologicamente, é muito difícil aceitar que um colega esteja a tentar fazer isto, atendendo à situação em que estamos.”
Maria de Oliveira tem um processo a decorrer na Ordem dos Médicos
Maria Margarida Gomes de Oliveira é um dos seis fundadores do movimento Médicos pela Verdade que têm um processo a decorrer nos conselhos disciplinares regionais da Ordem dos Médicos (OM) pelas ideias defendidas no âmbito do movimento, que contrariam as medidas de prevenção e combate à pandemia de Covid-19. Outro dos médicos, conforme aqui reportado pelo Observador, é o neurorradiologista Gabriel Branco.
O Observador sabe que foi enviada uma queixa à Ordem dos Médicos sobre a receita para testes PCR negativos, mas os serviços da Ordem ainda não a receberam. A presidente do Conselho Disciplinar do Sul da Ordem dos Médicos, Maria do Céu Machado, explicou ao Observador que, se entrarem outras queixas relacionadas com estes médicos ou com o movimento a que estão ligados, serão adicionadas aos processos já existentes por se tratarem de situações semelhantes ou relacionadas.
Médico do Egas Moniz que é contra as máscaras passa declarações para doentes não terem de as usar
A médica anestesiologista foi uma das protagonistas de uma reportagem da TVI sobre “o grupo polémico que contesta os perigos da Covid-19”, emitida na semana passada. Além disso, tem sido um membro bastante ativo do movimento, com uma participação frequente na plataforma de comunicação do movimento, com vídeos no grupo de Facebook ou nos artigos que escreve para o blogue do movimento — onde defende, por exemplo, que a segunda vaga não existe e que a ilusão criada se deve ao excesso de testes. Uma opinião que contrasta com a subida do número de internamentos em enfermaria e cuidados intensivos, registada nas últimas semanas.
Maria de Oliveira é também presença frequente e acalorada nas manifestações contra o uso de máscaras ou de outras medidas implementadas pelo Governo e autoridade de saúde. Numa das manifestações, em cima de um palanque, enquanto rejeita o uso de máscaras afirmou: “É como os fumadores, alguns acabam por ter cancro do pulmão. É verdade. Há quem escolha como quer morrer”.
Nota: o Observador recebeu um direito de resposta a este artigo.