O dia terminou com três longas horas de reunião entre o primeiro-ministro e o ministro das Finanças, no meio do desentendimento público com António Costa a assumir publicamente que não foi informado da transferência de 850 milhões de euros que Mário Centeno autorizou para o Novo Banco. Terminou com Centeno a manter-se no Governo e a conseguir que Costa acertasse passo com ele sobre a transferência que caiu mal na oposição, por acontecer quando país entra numa grave económica.
O primeiro-ministro veio dizer que sim, as contas do banco foram auditadas antes da concessão do empréstimo e que sim, estava tudo esclarecido entre os dois. Tentaram encerrar o assunto com uma fotografia da saída lado-a-lado do Palacete de São Bento, mas nem tudo está explicado nesta mini-crise que começou com uma suposta “falha de comunicação” e terminou sem um abraço de paz porque a o distanciamento físico assim o exige. O afastamento entre os dois é mais do que físico e são várias as contradições e dúvidas que António Costa e Mário Centeno foram deixando pelo caminho por estes dias.
Contradições
Costa.”O que está no orçamento é para ser cumprido”, cinco dias depois já fazia depender da auditoria
A 22 de abril, durante um debate quinzenal, Catarina Martins repetiu uma pergunta “feita várias vezes nos últimos dias” ao Governo, que continuava sem resposta: “Pensa fazer nova injeção no Fundo de Resolução antes de conhecer a auditoria do Novo Banco”. Na opinião do BE, “seria um erro”, dizia a deputada e líder do partido sem ter logo uma resposta do primeiro-ministro. Isso só aconteceu mais adiante no debate, depois de André Silva (PAN) ter voltado ao tema Novo Banco, mas sem referir a auditoria. O deputado queria saber se o Governo estava a ponderar, num momento de crise como o atual, suspender a injeção de 850 milhões de euros (que está no Orçamento do Estado para este ano) no Novo Banco.
Esta foi resposta de Costa nesse dia, virando-se também para a líder do BE que tinha falado concretamente da auditoria: “Aproveito também para responder a uma pergunta formulada antes pela senhora deputada Catarina Martins. A auditoria sobre o Novo Banco que determinámos está em curso e só estará concluída em julho e é fundamental para tomarmos as decisões que temos de tomar nos termos, aliás, do que está contratado”.
Esta foi a primeira vez que o primeiro-ministro fez, publicamente, a relação direta entre a auditoria independente ao Novo Banco e o cumprimento do que estava no contrato — segundo o que ficou definido em 2017, na venda do banco à Lone Star, sempre que os créditos mais problemáticos do Novo Banco desequilibram os rácios da instituição, o Fundo de Resolução pode ser chamado a transferir até 3,89 mil milhões de euros, ao longo de 8 anos, e isso tem acontecido nos três últimos anos – no ano passado foi em maio. O contrato prevê que a transferência seja pedida depois de aprovadas as contas, este ano a assembleia-geral foi a 3 de abril. O Fundo de Resolução, que recebeu o pedido a 6 de abril, meteu-se um fim de semana pelo meio, tem 30 dias para executar a operação, se esta cumprir as condições contratuais.
O que explica a nova polémica com a injeção de apoios do Estado no Novo Banco
Mas cinco dias antes de ter feito depender decisões futuras do Novo Banco da auditoria, em entrevista ao Expresso, o mesmo António Costa nunca levantou essa questão. Aliás, questionado sobre se, em cenário de crise pandémica e das suas consequências na economia, mantinha essa transferência, o primeiro-ministro disse que sim. “O Orçamento que entrou em vigor a 1 de abril é para ser cumprido… como sabe essa verba é um empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução. O empréstimo não tem a mesma natureza de uma despesa realizada”, argumentou.
E mesmo quando questionado sobre o atual contexto económico do país, diferente do de fevereiro, altura em que foi aprovado o Orçamento, Costa respondeu que “felizmente, as condições de financiamento do Estado têm vindo a ser asseguradas, já fizemos desde o início desta crise duas emissões de dívida. A intervenção do BCE foi muito pronta, determinado a evitar que haja uma nova crise de dívidas, isso é essencial. Não podemos é começar a desestabilizar tudo. Para que todos os mecanismos de financiamento à economia funcionem, temos de ter os bancos a agir depressa e bem, e não voltar a pôr em causa a estabilidade do sistema financeiro. Já temos problemas suficientes”.
Costa não foi questionado sobre a auditoria, nem falou dela, mas disse claramente que um novo problema de falta de liquidez de um banco era um elemento que queria manter fora da linha, daí a garantia de cumprir com o que estava no contrato. Dias depois, entra a questão da auditoria ser importante para definir o futuro da relação com o banco. E só a 7 de maio, já a transferência estava feita (sem o primeiro-ministro saber) foi totalmente claro sobre o assunto. No debate quinzenal, novamente perante uma insistência de Catarina Martins, disse que não tinha “grande novidade relativamente à última vez” (22 de abril) e explicava que a “auditoria está em curso e até haver resultados da auditoria não haverá qualquer reforço do empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução para esse fim”.
Naquele momento, já Centeno (que não estava nesse quinzenal) tinha dado autorização à transferência, o que fez com que António Costa tenha vindo pedir desculpa pela informação errada que tinha dado a Catarina Martins no parlamento. O primeiro-ministro “desconhecia que o Ministério das Finanças já tinha feito o pagamento contratualmente previsto”.
Injeção feita em maio no Novo Banco foi previamente aprovada em Conselho de Ministros e por António Costa?
O próprio ministro das Finanças admitiu na terça-feira, à TSF, o lapso de comunicação com o gabinete do primeiro-ministro sobre a ordem dada para executar o empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução para permitir a injeção de capital no Novo Banco. Um dia depois, no parlamento, Mário Centeno acrescentava que a ficha de apoio ao primeiro-ministro sobre o tema chegou com um par de horas de atraso. Ou seja, não estava na posse de António Costa quando fez a intervenção no debate quinzenal em que afirmou que não haveria mais dinheiro para o Novo Banco, sem o resultado da auditoria especial. Mas quando questionado se tinha tomado a decisão à revelia do primeiro-ministro, Centeno foi claro: “Não, não foi à revelia. Não há nenhuma decisão que não passe pelo Governo e pelo Conselho de Ministros”.
Mas que decisão política sobre esta capitalização do Novo Banco passou no Conselho de Ministros? Mário Centeno não concretizou, mas pode-se deduzir que estaria a remeter para a aprovação do Orçamento do Estado de 2020 onde estava inscrito o empréstimo de 850 milhões de euros ao Fundo de Resolução com destino ao Novo Banco. Aliás, na entrevista ao Expresso quando é questionado sobre se a transferência prevista vai acontecer, Costa remete para o Orçamento que entrou em vigor a 1 de abril e que “é para ser cumprido”.
Ou seja, para Mário Centeno, a decisão política estava tomada e o que estava em causa era a sua execução, embora reconheça que a informação sobre esta operação não foi dada ao primeiro-ministro em tempo útil para o debate. O Observador sabe, no entanto, que em nenhum Conselho de Ministros foi colocada a questão concreta da injeção de capital realizada maio por Mário Centeno. O que mais incomodou António Costa, segundo apurou o Observador, foi o timing da transferência (além de ter sido apanhado em falso no quinzenal) e o facto de as finanças terem autorizado a injeção num momento económico e social delicado, “como se o país estivesse em tempo de business as usual“, comenta-se no Governo.
Que auditoria (s) deviam ter sido feitas antes da injeção?
Mas esta última não é a única contradição do Governo no discurso sobre o tema. E nem a mais importante. Aquela que parece ser a principal divergência entre Centeno e Costa é se esta injeção deveria ter sido autorizada, sem se saber o resultado da auditoria que o próprio Governo pediu no ano passado. Esta é uma auditoria especial, que recua até ao ano 2000, no tempo do BES. Mas visa também apurar como têm sido geridos os créditos que estão a causar as perdas que obrigam, nos termos do contrato de venda, o Fundo de Resolução a capitalizar o banco com recurso a financiamento público.
O que se pretende saber, para além da decisão de atribuir esses créditos, é se a gestão feita já com os acionistas privados pós-acordo de 2017 tem empolado as perdas nos ativos cobertos pelo mecanismo de capitalização de forma a ir buscar os recursos financeiros contratados na operação de venda à Lone Star, e que em parte têm sido financiados com empréstimos do Estado.
No debate quinzenal de 22 de abril, e em resposta a Catarina Martins que condiciona a injeção financeira à auditoria, o primeiro-ministro concorda, ao assumir que a mesma é fundamental para a tomada das decisões do Governo previstas contratualmente. Ainda que não tenha sido tão claro como no debate seguinte a 7 de maio, quando assumiu o compromisso de que a operação não seria feita sem o resultado da auditoria especial. E esta posição mereceu o apoio claro do Presidente da República, para quem António Costa “esteve muito bem”.
Ora Mário Centeno não subscreve esta visão. E deixou isso claro na audição de quarta-feira quando se referiu ao “lapso freudiano”, em resposta a Mariana Mortágua e ao “S que faz toda a diferença”: auditoria ou auditorias.
Para o ministro das Finanças, a transferência de fundos para o Novo Banco foi feita depois de ser auditada e verificada por cinco entidades: auditor do Novo Banco, Fundo de Resolução, comissão de acompanhamento, agente externo de verificação — a empresa Oliver Wyman — e o próprio Banco Central Europeu. Estas eram as “auditorias” que tinham de ser feitas antes da injeção de 1035 milhões de euros para cobrir as perdas de 2019 do Novo Banco. A auditoria especial a que se referiu António Costa é “uma matéria diferente” para Centeno e da qual não decorre qualquer condicionalidade no mecanismo de capitalização previsto no contrato de venda do Novo Banco. A lei determina que esta deve ser feita sempre que há uma ajuda pública a um banco. E por isso, a auditoria pedida pelo Governo em 2019, e que abrange o período desde 2000 até 2018, terá de ser estendida agora ao ano passado, porque o banco recebeu nova ajuda pública.
Era possível esperar pela auditoria especial como António Costa defendeu?
Para Mário Centeno, não. E se esta auditoria a cargo da Deloitte só está pronta em julho, (chegou a estar prevista para maio) o que aconteceria se o Estado não cumprisse o contrato que prevê a recapitalização no prazo de um mês, após validadas as perdas do Novo Banco em 2019?
O mesmo que aconteceu em 2015, respondeu Mário Centeno. Perante o incumprimento de rácios do Novo Banco, o Banco de Portugal teve de promover uma “capitalização desordenada” ou “selvagem” que impôs perdas aos investidores institucionais detentores de obrigações do Novo Banco e que custou 1.500 milhões de euros em juros nas emissões de dívida da República portuguesa. O ministro das Finanças acenou mesmo com o cenário de uma crise bancária auto-infligida por incumprimento das obrigações financeiras no Novo Banco.
Mário Centeno teve ainda palavras duras para os que não “teimam em não aprender “e criticou os políticos que querem aparecer dez segundos nos telejornais e não sabem o que estava em causa no contrato de venda assinado em 2017 e que compromete o Estado na recapitalização do Novo Banco. Farpas que, para os deputados da oposição, terão como destinatário o primeiro-ministro. Uma leitura que Mário Centeno não desmentiu durante a audição.
O que ficou por explicar
- O ministro das Finanças deixou claro ao primeiro-ministro que, do seu ponto de vista e com base nos contratos assinados pelo Estado, a atribuição do empréstimo de 850 milhões de euros com destino ao Novo Banco não podia aguardar pelo resultado da auditoria que só chegaria em julho?
No comunicado emitido após a reunião com Mário Centeno, o gabinete do primeiro-ministro reconhece dois pontos que dão sustentação à posição do ministro das Finanças. Primeiro, a “concretização do empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução, que já estava previsto no Orçamento de Estado para 2020, que o Governo propôs e a Assembleia da República aprovou”. Em segundo, ficou confirmado que as contas do Novo Banco relativas ao exercício de 2019, para além da supervisão do Banco Central Europeu, foram ainda auditadas previamente à concessão deste empréstimo.
- E, mais importante que a falha na comunicação: existe uma divergência entre o ministro das Finanças e o primeiro-ministro sobre a gestão do dossiê do Novo Banco? Ou seja, António Costa queria condicionar o novo apoio público à auditoria? E Mário Centeno recusou este cenário? O ministro das Finanças sublinhou a necessidade de cumprir os compromissos assumidos pelo Estado no contrato de venda do Novo Banco, e que envolvem não só um investidor privado, mas também a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu.
No comunicado do primeiro-ministro são recuperados os cinco níveis de verificação das necessidades de capital identificados por Centeno no Parlamento. Mas também se acrescenta: “Este processo de apreciação das contas do exercício de 2019, não compromete a conclusão prevista para julho da auditoria em curso a cargo da Deloitte e relativa ao exercício de 2018, que foi determinada pelo Governo nos termos da Lei nº 15/2019, de 12 de fevereiro”.
- Centeno fica na pasta das Finanças, mas até quando? No mesmo comunicado, António Costa “reafirma publicamente a sua confiança pessoal e política no Ministro de Estado e das Finanças, Mário Centeno”. Mas estabelece também um horizonte temporal para uma eventual saída quando refere que a reunião de trabalho serviu para discutir a preparação da próxima reunião do Eurogrupo, onde o tema do fundo europeu de reconstrução estará em cima da mesa, e a “definição do calendário de elaboração do Orçamento Suplementar que o Governo apresentará à Assembleia da República durante o mês de Junho”.
Dia de pressões que acabou na reafirmação de confiança, até ver
O episódio Novo Banco facilmente acendeu o rastilho de um Parlamento que está há três meses afastado de casos políticos. Os protagonistas eram de topo e a dissonância grande. De manhã foi ouvido o ministro das Finanças e à tarde o secretário de Estado das Finanças, Mourinho Félix. Com Presidente da República à mistura, Centeno saía fragilizado de um dia em que só já depois de Rui Rio, líder do PSD, ter vindo pedir a sua cabeça, é que o PS saiu finalmente em sua defesa clara (no plenário da tarde tinha-se afastado dessa defesa).
Ao fim do dia foi a São Bento, chamado por Costa. Saiu de lá com a “confiança pessoal e política” do primeiro-ministro reafirmada. Não é a primeira vez que desacertam passo nestes cinco anos de convívio no Governo, mas este caso surge numa altura que chegou a estar planeada como aquela em que Centeno deixaria o Governo, com passaporte direto para governador do Banco de Portugal. Depois deste novo desacerto, a saída antes de tempo do ministro Centeno não desaparece dos cenários possíveis da política nacional nos tempos próximos. Com ou sem pandemia.
Centeno fica no Governo. “Ficou esclarecida falha de informação ao primeiro-ministro”