Como é que uma operação que já estava prevista, contratualizada e tinha até sido previamente sinalizada pode resultar num caso de divergência, pelo menos aparente, entre o primeiro-ministro e o ministro das Finanças, em plena crise da Covid-19?

Mário Centeno, na primeira intervenção pública após ser conhecida a operação, desvalorizou as razões por detrás do erro que o primeiro-ministro cometeu quando, na semana passada, garantiu ao Bloco de Esquerda que a injeção só seria feita após o resultado da auditoria especial aos créditos em curso. Foi um “erro de comunicação”, mas não uma falha financeira, disse em entrevista à TSF.

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Mas dificilmente estas explicações convencem a oposição, como sublinhou logo a coordenadora do Bloco de Esquerda, e o ministro deverá voltar a ser apertado com o assunto já esta quarta-feira, em audição parlamentar.

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As injeções financeiras no Novo Banco são sempre polémicas, é dinheiro do Estado que é emprestado a uma entidade pública que continua a ter de capitalizar a instituição bancária, dois anos depois de esta ter sido vendida a um grupo privado. Mas desta vez o potencial de polémica é mais elevado. Primeiro porque a entrada de mais de mil milhões de euros de capital coincidiu com o período crítico da gestão da pandemia, quando já se sabe que o Estado vai ter de suportar uma enorme fatura com os impactos económico da Covid-19. E, segundo, porque os partidos da oposição queriam, e quase o conseguiram na discussão do Orçamento do Estado, sujeitar cada novo apoio público dado ao Novo Banco a uma autorização expressa do Parlamento.

No meio deste dossiê sempre quente, há ainda incerteza sobre o futuro de Mário Centeno. O ministro das Finanças estaria a caminho do Banco de Portugal antes de rebentar a crise do vírus, e agora há duvidas sobre a renovação da sua liderança do Eurogrupo.

Quando foi identificada a necessidade de meter mais dinheiro no Novo Banco?

Desde o ano passado que se sabia que a limpeza do balanço que o Novo Banco estava a fazer dos créditos mais problemáticos, e que passou pela venda de carteiras a investidores institucionais, ia obrigar a reconhecer perdas devido ao desconto feito no preço desses ativos. E com essas perdas viriam mais necessidades de capital para cumprir os rácios de solidez financeira, uma situação que está coberta pelo mecanismo de recapitalização negociado na venda do banco à Lone Star.

Em fevereiro deste ano, Luís Máximo dos Santos, o presidente do Fundo de Resolução, a instituição que tem de meter dinheiro ao abrigo deste mecanismo, confirmou no Parlamento que o pedido de injeção ia ser de 1.037 milhões de euros.

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Dois dias depois, o Novo Banco confirma a chamada de capital desta dimensão após apresentar os resultados de 2019. Os prejuízos consolidados, que incluem os ativos problemáticos legados pelo antigo Banco Espírito Santo (e cujas perdas são as únicas que dão direito a cobertura de capital pelo Fundo de Resolução), atingiram 1.059 milhões de euros. Foi para neutralizar o impacto destas perdas nos rácios de capital de 2019 que o Novo Banco pediu a injeção de 1.037 milhões de euros em 2020.

Quando foi concretizada e do que dependeu a sua concretização?

Conhecida a dimensão do “buraco”, o próximo passo foi a aprovação em assembleia geral do relatório e contas de 2019 do Novo Banco, devidamente sustentados e validados pela auditoria às contas. Essa aprovação aconteceu a 3 de abril. Três dias dias depois, o Novo Banco faz o pedido formal de injeção de capital ao Fundo de Resolução, que tem 30 dias para validar e executar a operação. E este prazo é uma obrigação contratual.

Neste período, as necessidades de capital identificadas pelo Novo Banco são validadas pela comissão de acompanhamento da instituição, uma entidade independente na qual tem assento o Fundo de Resolução, e pelo agente externo de verificação, a empresa especializada Oliver Wyman. A 6 de maio, o último dia do prazo previsto no contrato, é feita a transferência do Fundo de Resolução para o Novo Banco. No ano passado, o pagamento também foi feito por esta altura.

O que é que o Governo tem a ver com o processo?

Para além do Fundo de Resolução ser uma entidade pública, o Estado português é parte dos contratos de venda do Novo Banco e está comprometido com as obrigações ali previstas, que foram também assumidas perante a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu. O Novo Banco foi objeto de uma resolução, a primeira feita na era da união bancária, e este processo envolveu ajudas de Estado, que tiveram de ser aprovadas por Bruxelas.  Além disso, o Estado entra também como financiador nesta operação.

Apesar de a obrigação de recapitalizar o banco ser do Fundo de Resolução, uma entidade cujas receitas resultam das contribuições dos bancos, estas são insuficientes para fazer face a todos os compromissos financeiros resultantes de processo de resolução. Como tal, o Estado tem de emprestar dinheiro ao Fundo de Resolução. E no caso do mecanismo de recapitalização contingente do Novo Banco, esses empréstimos têm sido feitos todos os anos. Logo, antes de o Fundo passar o cheque de 1.037 milhões (que até foi menos, mas já lá vamos) ao Novo Banco, tem de receber um cheque do Tesouro, com uma parte desse montante. Neste caso foram 850 milhões de euros.

É uma decisão política ou administrativa?

Num ano normal, de “business as usual”, o pagamento ao Novo Banco feito em maio, em resposta aos prejuízos do ano anterior, seria uma decisão administrativa, ainda que tivesse de ser autorizada no que toca ao empréstimo do Estado, por um membro do Ministério das Finanças. Isto porque todas as decisões políticas que fundamentam a operação estavam já tomadas. E neste caso, a mais importante é a atribuição de um empréstimo pelo Estado ao Fundo de Resolução com a finalidade de capitalizar o Novo Banco.

A operação está inscrita no Orçamento do Estado para 2020 e foi amplamente discutida no Parlamento antes de ser aprovada. O Bloco de Esquerda tentou fazer passar também pelo Parlamento a autorização para a injeção concreta a fazer em cada ano no Novo Banco, mas esta alteração acabou por não passar. O partido já anunciou que a vai voltar a propor.

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Dito isto, e em ano de Covid-19, o incómodo de mais 850 milhões de euros do Estado para o Novo Banco, que já era controverso, ganhou ainda mais força na discussão política. O primeiro-ministro tem sido questionado, sobretudo pelo Bloco de Esquerda, sobre esta injeção e argumentou que ela estaria dependente de uma auditoria que ainda estava em curso. Foi, aliás, essa a explicação dada no último debate quinzenal em que António Costa acabou por dar uma informação errada a Catarina Martins. E pela qual depois pediu desculpa.

Mas para esta recapitalização entrar na esfera da decisão política, para além das explicações que são exigidas todos os anos, seria necessário que o Governo tivesse colocado em cima da mesa o cenário de não fazer o pagamento já previsto e contratualizado. E pela informação recolhida pelo Observador, essa possibilidade não foi suscitada, pelo menos junto das autoridades que intervêm diretamente na transação.

Se a hipótese foi levantada em privado, entre o ministro das Finanças e António Costa, não o sabemos ainda. E se foi apenas um argumento para o debate político por parte do primeiro-ministro, também não é claro. Há várias leituras possíveis, como a que Marques Mendes fez este domingo, quando disse que Centeno desautorizou o chefe do executivo.

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O pagamento poderia não ter sido feito? Quais as consequências?

Se é certo que esta necessidade de capital estava prevista desde fevereiro, a verdade é que ela só foi executada em maio. No entanto, uma consulta às contas de 2019 do Novo Banco mostram que o valor já estava reconhecido no balanço ao nível do ativo, até porque sem este capital, a instituição entraria em incumprimento dos rácios. Se se esperou até maio, foi porque existem passos formais e processuais a realizar após as contas de 2019 serem aprovadas, mas que têm de se cumprir no prazo contratual.

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Se não fosse feita, corria-se o risco de o Novo Banco não cumprir os rácios exigidos pelos supervisores, o que poderia ter consequências graves para o banco e até para a economia, numa altura em que a banca está a ser chamada a facilitar as condições de crédito, via moratórias e linhas de de apoio à tesouraria. E o Novo Banco mantém no seu ADN uma tradição comercial junto das pequenas empresas que não existirá noutras instituições.

De que auditoria fala António Costa e porquê esperar?

Há várias auditorias, ou processos de verificação/validação, em causa neste processo, mas tudo indica que António Costa estava a referir-se a uma auditoria especial que foi pedida pelo Ministério das Finanças no ano passado, depois de serem conhecidas as necessidades de recapitalização referentes ao ano de 2018, e que ascenderam a 1.149 milhões de euros.

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Na altura, o Estado queria identificar o processo de decisão e gestão dos créditos ruinosos que tinham vindo ainda do tempo do BES e que, depois de uma primeira triagem para o chamado banco mau, estavam ainda a gerar perdas no Novo Banco.

No entanto, e por força de uma lei aprovada pelo Parlamento também no ano passado, foi imposta a obrigação de realizar uma auditoria especial de cada vez que um banco tem ajuda pública. Logo, a auditoria aos créditos recua até 2000, com créditos decididos no tempo do BES – como a que foi feita pela E&Y na Caixa entre 2018 e 2019 – mas inclui já a gestão que o Novo Banco tem feito desses créditos problemáticos. Em particular, pretende-se apurar se as perdas nestes ativos estão a ser ampliadas para que o banco continue a poder ir buscar o máximo de recursos financeiros enquanto está disponível o mecanismo de recapitalização contingente. Esta auditoria deveria ter terminado em maio, mas foi adiada para julho por causa dos condicionamentos impostos pela Covid-19.

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Mas se havia vontade política de aguardar por estes resultados antes de colocar o dinheiro relativo a 2019, isso não se traduziu em atos concretos do Governo, para além das intenções manifestadas por António Costa no Parlamento. Além de que esta operação também foi objeto – como já vimos – de auditoria e verificação externa no quadro do Fundo de Resolução que até decidiu, como contou o Expresso, cortar dois milhões de euros ao valor pedido. Estes dois milhões correspondem aos prémios de gestão atribuídos aos administradores do Novo Banco e que estes só poderão receber depois de concluído com sucesso o plano de reestruturação negociado com a Comissão Europeia.

Agora, e com mais uma injeção de capital público, terá de haver uma nova auditoria às contas de 2019. Só que estas auditorias previstas na lei só são pedidas após a decisão de apoios públicos, não podendo estar concluídas antes desse apoio ser concretizado. É o que diz a lei:

“No prazo de 30 dias após a data da tomada da medida ou decisão que determine a aplicação ou disponibilização direta ou indireta de fundos públicos em instituição de crédito abrangida, o Governo manda realizar uma auditoria especial por entidade independente, por si designada sob proposta do Banco de Portugal, a expensas da instituição auditada e que abranja as seguintes categorias de atos de gestão.”

E haverá mais dinheiro para o Novo Banco?

O mecanismo de recapitalização contingente tem ainda disponíveis recursos da ordem dos 900 milhões de euros. No ano passado, ainda foi discutida a possibilidade de acelerar a entrega dos fundos ao Novo Banco numa operação única que fecharia o deve e o haver entre a instituição e o Fundo de Resolução, e por arrasto o dinheiro do Estado.

Agora, com o agravamento do quadro económico do país e uma recessão de dimensão histórica, é provável que o incumprimento no crédito aumente, gerando novas perdas no Novo Banco. E essas perdas levarão à necessidade de recorrer à totalidade da verba ainda não gasta, depois de conhecidos os resultados de 2020. Mas desta vez, a auditoria pela qual António Costa espera, já estará concluída e poderá dar outros argumentos ao Governo para questionar ou recusar o pagamento que foi feito este ano.