Ignorar, desvalorizar e, finalmente, infantilizar André Ventura. Nunca ignorar, desvalorizar ou infantilizar os eleitores do Chega. Se Ventura provoca, Montenegro ignora. “Ninguém o ouve.” Se Ventura lança suspeitas sobre a regularidade das eleições, Montenegro desvaloriza. “Nem sei bem o que isso é, sinceramente.” Se Ventura recupera a conversa das “forças vivas” do PSD que lhe prometeram uma aliança, Montenegro infantiliza-o. “Não participo no recreio.” Frases telegráficas para um adversário que, ainda há uns meses, era o elefante na sala de porcelanas do PSD. Deixou de ser. Até domingo, pelo menos.
Em dez dias de campanha oficial, as provocações de André Ventura quase nunca foram tema na caravana da Aliança Democrática. Quando foram, Montenegro enterrou o assunto sem grandes contemplações. Já o apelo aos eleitores do Chega, sem nunca os hostilizar ou hostilizar o partido, tem sido uma nota permanente nesta campanha. Montenegro sabe que precisa de se reconciliar também com eles, com os que se sentem esquecidos e revoltados, para vencer as eleições. E tem apostado muitas fichas nesse diálogo muito próprio.
Esta terça-feira, à noite, num jantar-comício com mais de duas mil pessoas nas Caldas da Rainha, e pela primeira vez nesta campanha eleitoral, Montenegro fez um apelo direto aos eleitores e aos potenciais eleitores do Chega. “Respeito aqueles que sentiram o impulso de dar força àquele partido. Compreendo que muita dessa força vem da revolta que muitas portuguesas e portugueses sentem porque os poderes públicos não está a dar a resposta que essas pessoas exigem. Não confundo esse partido e a sua liderança com esses eleitores.”
“Como presidente do PSD tenho humildade de reconhecer que esse sinal aos dois partidos que governam o país desde o 25 de Abril. Não tenho nenhum problema em assumir que possa haver algum protesto dirigido ao PSD. Não fizemos sempre tudo bem. Somos corresponsáveis. Compreendo essas pessoas e sei que elas não são extremistas, racistas e xenófobas. E também sei que elas acham que o líder deste partido não vai resolver nada e que o programa deste partido não vai trazer soluções. É tempo de reponderarem e contribuírem ativamente para terem uma mudança política em Portugal”, apelou Montenegro. Nunca o líder do PSD tinha ido tão longe neste exercício.
Apesar de nunca ter sido tão explícito, tem sido esta a estratégia de Luís Montenegro na corrida particular que vai mantendo com André Ventura: separar o líder dos eleitores, isolá-lo. De resto, existe um antes e um depois do “não é não”, e, de forma ainda mais evidente, existe um antes e um depois dos Açores na relação entre PSD e Chega. Há uns meses, quem apostasse que a campanha social-democrata iria estar refém do tabu sobre alianças com o Chega não estaria muito longe da verdade. No entanto, muito mudou com a recusa definitiva de Montenegro e com a decisão de José Manuel Bolieiro de fugir do abraço do Chega-Açores.
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O frente a frente, na RTP, confirmou a cisão definitiva entre os dois. Um dia depois de André Ventura ter dito que o partido liderado por Luís Montenegro era uma “prostituta política”, o social-democrata aproveitou para cortar em definitivo. “O PSD nunca alinhará com o entendimento político de alguém que tem políticas e opiniões muitas vezes xenófobas, racistas, populistas, excessivamente demagógicas. É uma questão de decência política. Isto não é uma linguagem própria. Isto é mesmo o grau zero da política. Eu não aceito isto. Eu não compactuo com esta linguagem.”
Daí para cá, o presidente do Chega deixou de ocupar um minuto de atenção do líder do PSD. Numa raríssima exceção, as diatribes de Ventura voltaram a ser assunto ao décimo dia de campanha da Aliança Democrática, depois de o líder do Chega ter voltado a falar do PSD, de Passos e de Relvas. Montenegro gastou meia dúzia de minutos com ele. Primeira resposta: “Não entro no recreio“. Segunda resposta: “Não entro no recreio”. A ordem era para fazer seguir a caravana.
Mais uma vez, no entanto, Montenegro distinguiu entre líder e apoiantes, sugerindo que a Aliança Democrática está aberta a “acolher os eleitores que ali atrás ainda pensaram a votar no Chega” e repetindo que pretende fazer uma campanha que “não divide”, mas antes que “agrega, junta, soma”. No mesmo dia, em entrevista à RTP, abriu uma exceção para dizer que as conversas sobre alianças entre PSD e Chega são coisas da “cabeça” do “doutor André Ventura”, pronunciando um nome que foi apagado das intervenções oficiais. Sem mais.
Ao contrário do que foram fazendo outros partidos da família política do PSD, como o Partido Popular em Espanha, por exemplo, tem havido o cuidado particular de não deixar que a campanha eleitoral se transforme numa luta entre Montenegro e Ventura. Fundamentalmente, por duas razões: competir diretamente com o Chega fragilizaria a posição dos sociais-democratas que se querem bater com o PS; e, em teoria, poderia repelir aqueles eleitores que, à direita, se mudaram para o Chega e que ainda podem estar à procura de um pretexto confortável para voltar para o espaço ocupado pela AD.
A razão deste cuidado especial em separar o líder dos eleitores do Chega é relativamente simples de compreender: é mais fácil voltar para uma casa que não trata mal quem de lá saiu. Mas também é possível assumir que este discurso só é possível para quem sente que está e parece estar à frente da corrida e não a lutar pela sobrevivência como força hegemónica à direita como, em muitos momentos, pareceu ser o destino inevitável do PSD.
Em grande medida, Montenegro tem regressado à ideia que marcou aquele que foi o seu primeiro discurso enquanto líder do PSD, no 40.º Congresso do PSD. “Algumas coisas têm de estar mal connosco e nós temos de ter a humildade de o reconhecer para o poder corrigir. Não são os eleitores que estão errados. Somos nós que não os estamos a conseguir convencer. Nós podemos achar que os eleitores não tomaram a melhor opção. Mas os eleitores tomaram a opção que para eles era a melhor. Se o PSD não perceber isto, os eleitores vão continuar a não perceber o PSD”, disse então Montenegro. Por outras palavras: a culpa de quem fugiu do PSD para o Chega não é (só) de quem fugiu; é de quem não soube agarrar.
Guia de como pedir um voto do Chega na AD
Isto não quer dizer que o crescimento do Chega não preocupe a Aliança Democrática. Em muitos momentos da campanha, Montenegro tem dito que vencer as eleições é importante, mas que é preciso conseguir nas urnas condições de “estabilidade” e “governabilidade”. Nas entrelinhas: é preciso que PSD, CDS e IL (eventualmente) tenham uma maioria que lhes permita tornar o Chega absolutamente irrelevante. Daí a importância de esvaziar ao máximo o partido de André Ventura, que, olhando para as sondagens, parece ter estagnado nas intenções de voto, mas está longe de ter sido neutralizado.
Tal como explicava o Observador, de acordo com os estudos de opinião, o número de indecisos continua a ser maior do que seria de esperar. Entre esses indecisos, há dois grupos: os indecisos que oscilam entre o PSD e o PS, e que são na sua maioria mulheres e com qualificações superiores; e os indecisos que estão entre o Chega e a Aliança Democrática – maioritariamente homens, com o 12.º ano de escolaridade ou menos.
Sabendo que o eleitorado feminino é mais difícil de conquistar – Montenegro fará um derradeiro apelo ao voto a 8 de março, num almoço em Lisboa, para assinalar o Dia da Mulher –, o líder social-democrata tem feito questão de falar recorrentemente para os eleitores que estão “frustrados”, “desiludidos”, “zangados” com o estado do regime e do país — os tais indecisos que precisam de um incentivo para voltarem a votar nos sociais-democratas (e democratas-cristãos).
Foi precisamente isso que Montenegro fez num almoço-comício organizado no sábado, na Trofa, uma das maiores ações da Aliança Democrática até ao momento. “Sentimos que há uma grande força de mudança. Mas também sentimos em muitos eleitores que estão desgastados, desiludidos e frustrados. Eu compreendo. É apelativo utilizar o voto para dar nota dessa desilusão. Mas as eleições devem ser aproveitadas para exprimir uma opção de solução. A dispersão do voto vai favorecer o PS. O único voto que muda de governo é o voto na Aliança Democrática”, apelou Montenegro.
Antes, a 29 de fevereiro, num mega-jantar comício ao lado de Assunção Cristas, em Ourém, já tinha ensaiado o mesmo. “Quando uma pessoa fica indignada é compreensível que queira expressar esse sentimento de revolta. Eu compreendo. Sendo legítimo e compreensível esse protesto, aquilo que é desejável para o país, além de castigar o PS, é muito importante que se contribua para mudar de governo. O único voto viável é a Aliança Democrática.”
A 27 de fevereiro, em Évora, já tinha deixado a mesmíssima ideia. “Muitos não concordam com o Chega e nem com tudo o que o seu protagonista diz. Estão cansados, querem dar um murro na mesa. Querem enviar uma mensagem, não de confiança no Chega, mas uma mensagem de desconfiança no PSD. Tenho a humildade de reconhecer. Mas esse voto de protesto não resolve os problemas, nem muda o Governo. Só o voto na Aliança Democrática é seguro.”
O movimento de Montenegro provocou um contra-movimento na campanha de Ventura, como assinalava aqui o Observador. Depois de meses e meses em que o presidente do Chega dizia estar na iminência fazer parte de um governo, a realidade foi estragando os planos a Ventura, que acabou afastado de tudo e todos — e sem parceiros à direita disponíveis para negociar.
O Chega ainda quer esse lugar, mas não vê maneira de o ter e André Ventura acabou obrigado a mudar a forma e o conteúdo. Se nos últimos dias o presidente do partido se focou numa estratégia de colagem do PSD e PS, também deixou de falar sobre uma solução de governo à direita. Pelo caminho, vai apostando nos exageros de linguagem e atacando Montenegro.
Ventura já não fala sobre presença no governo e tenta menorizar Montenegro
A “verdadeira direita” junta-se contra o “vírus do ódio”
Tem sido este o tom predominante de Montenegro. Além disso, na campanha da AD, tem havido uma evidente separação de tarefas entre Nuno Melo e Luís Montenegro. Como sidekick do líder social-democrata, uma espécie de Robin do Batman, o presidente do CDS tem assumido boa parte das despesas dessa marcação cerrada a André Ventura — e também a Pedro Nuno Santos. No entanto, o líder do CDS tem evitado o tom mais duro que utilizara em momentos anteriores para se referir a André Ventura (nunca nomeado), prova de que há orientações claras para não entrar num carrossel de ataques entre a coligação e o Chega.
Exemplo disso mesmo aconteceu quando a caravana da AD parou no Mercado de Famalicão, para um encontro com jovens – segmento eleitoral onde o Chega é cada vez mais forte e que estará, em teoria, mais disponível para a ideia de “mudança” que a coligação quer vender. Disse Melo: “Muitos jovens optam hoje pelos extremismos. Não se permitam transformar em protesto que não resolve coisa nenhuma. Um partido que é mais taxas, mais impostos, mais Estado, que quer a TAP nacionalizada, um partido que quer de repente o Estado a ser fiador dos privados, que quer o PRR transformado em subsídio e quer as forças de segurança a fazer greve, um partido assim não é de direita; a direita somos nós, a direita lúcida e que pensa no vosso futuro”.
Ao mesmo tempo, as muitas figuras que se vão juntando à campanha da Aliança Democrática – e os temas que trazem – têm permitido consolidar esse apelo aos eleitores desiludidos com os partidos de direita e de centro-direita. Se Luís Montenegro fala da importância do trabalho, da recuperação do rigor na escola pública, se se cruza com antigos combatentes do Ultramar e promete repostas para os que foram “esquecidos”, se insiste em não esquecer a valorização do interior — faixa do território onde o PSD está particularmente pressionado pelo Chega –, os convidados de honra vão cobrindo outros temas caros à direita.
Esta terça-feira, nas Caldas da Rainha, Paulo Portas, perante mais de duas mil pessoas que o ouviram atentamente durante mais de 30 minutos, e sem nunca referir o nome de André Ventura ou o do Chega, o antigo vice-primeiro-ministro lembrou que André Ventura e os seus apoiantes “ameaçaram fazer uma moção de rejeição contra a AD”, depois “suspenderam a decisão”, depois disseram “‘logo vejo caso a caso’”, e a seguir acrescentam “‘não governam porque não deixo’”. “Pingue, Pongue, Pingue, Pongue”, foi repetindo, antes de deixar a derradeira provocação: “Como é que alguém se diz de direita com esta inconstância permanente?”.
Numa nota mais pessoal, e lembrando o exemplo do Papa Francisco, quando disse “todos, todos, todos”, Portas lamentou as referências permanentes de André Ventura a figuras como Francisco Sá Carneiro ou Adelino Amaro da Costa como fontes inspiracionais do Chega. “Foram sempre espíritos liberais. Nenhum deles, jamais, distinguiu os portugueses pela cor da sua pele, pela sua etnia, condição ou orientação. Não deixem que na política portuguesa se instale o vírus no ódio.
Portas foi apenas o último da campanha da AD a fazê-lo. Além de assumirem os ataques mais vocais contra o PS (Luís Filipe Menezes e Pedro Santana Lopes fizeram-no, por exemplo), de tentarem a reconciliação com o passado recente do PSD/CDS como forma de mostrarem que a direita não tem vergonha de ser de direita, sobretudo por oposição a um PS cada vez “radicalizado”, as estrelas dos (muitos) comícios que a Aliança Democrática tem organizado vão tentando recuperar as bandeiras que foram monopolizadas por André Ventura.
Passos Coelho e Carlos Moedas puxaram temas como a imigração, Assunção Cristas falou da valorização da Agricultura e José Manuel Durão Barroso da importância da família e dos símbolos nacionais, por exemplo. Todos têm procurado responder aos possíveis anseios desse segmento eleitoral, ao mesmo tempo que vão alertando para os riscos que uma eventual dispersão de votos terá na manutenção do PS no poder. “Quanto mais dispersos os votos, mais desperdiçados serão. Há um risco real de protestar e depois isso não ter qualquer tradução no Parlamento. Não chega um voto de protesto”, acrescentaria Durão Barroso.
“A todos os que acham que é preciso uma liderança política violenta, que hostiliza e humilha adversários, que instila ódio, quero deixar uma mensagem clara: olhem para os melhores políticos que conhecemos; de Sá Carneiro a Amaro da Costa, de Margaret Thatcher a Ronald Reagan, de De Gaulle a Adenauer, nenhum deles ficou conhecido por meter medo aos seus adversários por gritar muito, por fazer do ódio um motivo político. Pelo contrário, a força desses líderes estava na força das suas políticas. Se queremos meter medo aos nossos adversários, a AD tem de ganhar, tem de ficar em primeiro lugar. A todos os que acham que é possível experimentar algo de radical, que venha para destruir tudo, que podemos experimentar o populismo de direita, quero deixar uma mensagem muito clara: não vivemos tempos para isso”, sintetizou Adolfo Mesquita Nunes.
O plano era este desde o início
No fundo, esta é a concretização da estratégia de Luís Montenegro. Em boa verdade, o líder do PSD sempre torceu o nariz a eventuais acordos com o Chega. Logo na primeira vez em que se candidatou à liderança do PSD, em 2020, repetiu várias vezes que o partido “não tinha condições para fazer qualquer entendimento com o Chega» e que não contava com André Ventura para eventuais soluções. Todavia, quando chegou à presidência social‐democrata, dois anos depois, começou por optar por uma estratégia menos fechada, recusando‐se a nomear o Chega e limitando‐se a dizer que não contava com “políticos racistas, xenófobos, oportunistas e populistas”.
O objetivo era, precisamente, aquele que trouxe para esta campanha: o de não se colocar no mesmo plano de Ventura, ignorá‐lo. As coisas não correram particularmente bem – a relativa ambiguidade tornou‐se tema central de todas as entrevistas a Luís Montenegro, o cerco mediático estava a contaminar a mensagem e algumas das figuras mais influentes do partido exigiram clarificação.
O presidente do PSD sentiu a necessidade de adaptar o discurso, e foi aí que surgiu o “não é não” a Ventura. Depois, o que aconteceu nos Açores esvaziou, em grande medida, as conversas sobre a governabilidade à direita – e o chega‐centrismo que tomou a relação entre o PSD e a comunicação social, e que tantas vezes irritou Montenegro, deixou praticamente de ser tema.
É verdade que ainda sobrou um último tabu – o que fará Montenegro se ficar em segundo lugar nas próximas eleições e mesmo assim tiver uma maioria à direita. A essa pergunta Montenegro não respondeu, nem vai responder até ao final da corrida. E é certo que o tema animou o período de debates e os primeiros dias de campanha, mas o líder social-democrata resistiu sempre em responder com clareza, convicto de que a pressão mediática ia diminuir – e diminuiu.
Como no judo, Montenegro ainda usou o peso do adversário contra ele: de cada vez que Pedro Nuno Santos insistia na ideia de uma possível aliança entre PSD/Chega, os elementos da equipa da coligação esfregavam as mãos de contentes e Montenegro aproveitava cada intervenção para dizer que, ao contrário do rival socialista, estava preocupado com o país e acima dos “jogos partidários”. Só será possível perceber se é mesmo assim depois de domingo. Faltam cinco dias até lá.