Uma “deselegância”, um “recadinho” inconsequente, um “gesto confrangedor” e “imprudente” que lhe pode vir a custar muito. A forma como Luís Montenegro procurou exorcizar o fantasma de Pedro Passos Coelho, enclausurando-o nos gabinetes da universidade (“o meio académico português não está a tirar partido do potencial que ele tem nessa área”), gelou alguns destacados dirigentes do partido, que viram nessa frase uma perfeitamente dispensável declaração de guerra, e irritou — e de que maneira — os homens mais próximos do antigo primeiro-ministro. A tentativa de matar o pai político, não sendo uma absoluta novidade na liderança de Montenegro, tornou definitiva a fratura no PSD. Não há ponto de retorno: se o partido falhar nas próximas europeias, vão ser exigidas cabeças.
Pedro Passos Coelho não terá gostado nada do que ouviu, mas manter-se-á em silêncio — não dará essa importância ao líder do PSD. Entre os homens que rodeiam Montenegro, e mesmo reconhecendo que o contexto poderia permitir retirar uma leitura mais cínica daquela frase, jura-se a pés juntos que não houve qualquer intenção de atingir ou menorizar Passos. Pelo contrário: foi um gesto “absolutamente genuíno” de respeito pelo antigo primeiro-ministro e não deve ser interpretado de outra forma. Há quem recorde, aliás, que esta não foi sequer a primeira vez que Montenegro falou nas vantagens para o país do percurso académico de Passos, o que é efetivamente verdade.
Mesmo antigos ministros do passismo, que preferem manter o anonimato, relativizam o momento. “Perante uma pergunta dessas que poderia Montenegro responder que não gerasse especulação mediática quando esta é inerente à própria pergunta? É um interesse jornalístico que compreendo do ponto de vista mediático. Mas não podem ao mesmo tempo presumir e querer que Luís Montenegro acabe com essa especulação”, anota um antigo governante. No entanto, esta tese mais benevolente não convence todos no partido.
“Roçou a deselegância”, lamenta um destacado dirigente social-democrata, insuspeito de nutrir qualquer antipatia por Luís Montenegro. “Pior: mostrou medo da sombra do Passos e a urgência de tentar despachá-lo”, continua a mesma fonte. “Montenegro deve deixar de ler jornais e concentrar-se em ganhar as europeias. Os eleitores não querem saber de recadinhos. Os políticos que andam atrás da notícia do dia acabam mal”, sublinha um passista convicto. “Não está no ponto de ser agressivo, devia ser mais cuidadoso. Faltam oito meses para as europeias e vai comer o pão que o diabo amassou”, avisa outro. “Fiquei surpreso com a desarticulação que cresce todos os dias na grande família passista”, ironiza um homem do rioísmo. “Prometeram-nos um ‘Top Gun’ e deram-nos um ‘Hamlet’.”
A verdade é que, intencional ou não, a tirada de Montenegro surge num momento em que poucos no PSD ignoram o risco (ou a oportunidade, dependendo da perspetiva) de um regresso de Pedro Passos Coelho. Ainda no início de setembro, o Observador dava conta disso mesmo: Passos já não esconde que pode ponderar deixar o banco das reservas onde se sentou por vontade própria se o partido escorregar nas europeias e precisar dele. Na sua última edição, o Expresso reforçava esta tese, com Miguel Relvas, antigo braço direito de Passos e cada vez mais cético dos méritos da liderança de Montenegro, a corporizar a coisa nestes termos: “O regresso de Passos é um boato. Mas é simpático”.
Ora, o núcleo duro de Luís Montenegro não ignora a existência deste movimento em torno do “mito sebastiânico” de Passos e irrita-se com o clima de guerrilha interna que se instalou (outra vez) no partido. Apontam-se aos conspiradores de sempre e aos oportunistas de ocasião – muitos homens do rioísmo, que nasceu em parte como movimento de rutura em relação ao passismo, estão agora a fazer força para que Pedro Passos Coelho regresse. Ou melhor: para que Luís Montenegro caia. Até Salvador Malheiro, vice-presidente de Rui Rio e um dos operacionais do rioísmo, apareceu a dar um ar da sua graça para dizer que “Montenegro tem falhado” e que o país precisa de “políticos com coragem”.
No quartel-general do partido, lamenta-se a autofagia que tem emperrado o partido e a vertigem de sempre para a “destruição”. E é à luz destas circunstâncias que o anúncio precoce de recandidatura à liderança do PSD deve ser lido: com o aparelho do partido domado, e mesmo sendo verdade que Luís Montenegro sempre assumiu que seria candidato a primeiro-ministro em 2026, o que implica necessariamente uma recandidatura à liderança do partido em 2024, poucos se atrevem a negar que foi efetivamente uma forma de condicionar críticos e de tentar esvaziar pretensões alheias. “Montenegro não dá tiros sem querer”, reconhece-se na sede do partido. Mas poderá não chegar.
“Se Passos quiser ir, passa um camião por cima de Montenegro”
Existe uma convicção que conforta os mais próximos de Montenegro: Passos nunca será candidato contra o atual presidente do partido – certeza confirmada, aliás, por quem conhece bem o antigo primeiro-ministro. Montenegro teria de sair de cena para que Passos tivesse caminho livre, algo que manifestamente não vai acontecer. De resto, o líder social-democrata já vinha dizendo, em privado, que, salvo num cenário de hecatombe nas próximas europeias, não sairia pelo próprio pé. Na entrevista à TVI/CNN, limitou-se a ser cristalino. “Vou ser recandidato nas próximas eleições após as europeias. Sou recandidato porque faço uma avaliação muito positiva daquilo que temos vindo a fazer.”
Mas o contexto, mais uma vez, importa. Na semana que trouxe duas más sondagens (que são relativizadas pela direção do partido) e um Orçamento do Estado generoso para segmentos eleitorais expressivos (pensionistas, funcionários públicos e classes mais desprotegidas), este anúncio precoce de Montenegro é percecionado por alguns setores do PSD como uma “tentativa óbvia de condicionar” os que lhe cobiçam o lugar. Ou, numa visão mais crítica, o “reflexo do náufrago” de alguém que se tenta agarrar ao bote para não submergir. “Não se anunciam recandidaturas a oito meses. Ou ganha eleições e é recandidato; ou não ganha e logo se vê se sai ou não”, sentencia um senador do partido.
“Mostrou receio. Quando se anuncia que se é candidato em qualquer circunstância assume-se como cenário uma possível derrota”, concorda um destacado dirigente social-democrata. “Se não ganhar as eleições, não tem condições para continuar. Isso parece-me óbvio. Se não fosse óbvio, não estaria a dizer que será candidato”, nota um influente passista. “Está em processo de negação. Dizer que é recandidato não muda nada. Se o Passos quiser ir, passa um camião por cima de Montenegro”, remata outro senador social-democrata.
No meio de tudo isto, há quem ainda vá tentando pôr algum gelo no partido. “A dúvida é a perspetiva de quando serão as próximas legislativas. Sempre defendi que as legislaturas devem ser levadas até ao fim. Se cumprirem o calendário estabelecido, estamos a falar não só em longo prazo (2026), como ainda teremos várias eleições até lá. Considero prematuro este tipo de discussão”, diz Carlos Carreiras ao Observador. Traduzindo, o partido tem de se focar e deixar-se de anúncios, pré-anúncios, candidaturas e proto-candidaturas. Um aviso que serve para todos: os que conspiram para derrubar e os que lutam para sobreviver.
Montenegro transformou europeias em referendo pessoal
Ainda assim, para lá de todas as considerações que possam ser feitas, é inequívoco que Luís Montenegro acabou por pessoalizar as próximas eleições europeias e fazer delas uma espécie de plebiscito à sua liderança. E isso comporta riscos, como anotou José Miguel Júdice, no seu habitual espaço de comentário, na SIC Notícias. “Na eleição de junho de 2024 o incumbente não é António Costa, mas Luís Montenegro. Ou seja, o voto de muita gente será em resposta à pergunta: ‘Queremos Montenegro para liderar a direita? Ou Passos Coelho? Ou Carlos Moedas?”.
Se Passos está em silêncio, Moedas deu mais uma entrevista a prometer lealdade a Montenegro, tentando esconder a óbvia pretensão de o substituir (em 2024 ou depois) com frases vagas como “o meu futuro é sempre o presente e o meu presente é a Câmara de Lisboa”. O autarca teria sempre um desafio: qualquer candidatura à liderança do partido teria de ficar fechada no segundo semestre de 2024; as autárquicas acontecem um ano depois e as legislativas em 2026. A alternativa mais séria seria deixar a Câmara de Lisboa no final do primeiro mandato para se dedicar ao PSD e às legislativas – uma aposta de alto risco, que poderia implicar perder ambas. Portanto, um calendário (quase) impossível.
Por tudo isto (e não só), os homens de Montenegro consideram que Moedas não representa uma verdadeira ameaça. Pedro Passos Coelho, no entanto, é todo um outro nível. Precisamente por estar no plano da mitologia, ninguém ignora que a popularidade de Passos não se apaga, nem se combate; só se resolve com resultados nas urnas. E, na cabeça do líder do PSD, a questão fica resolvida até com uma derrota honrosa nas europeias. Montenegro disse-o, há muito tempo, ainda em maio de 2022, em entrevista ao Observador. “Não é obrigatório que, perdendo as eleições, o líder saia”. “Ninguém avançará contra nós, mesmo que percamos por pouco as europeias”, repete-se agora. A ver se o partido concorda.
Ignorar a bolha e chegar às pessoas reais
Até às europeias (e possivelmente depois), a palavra de ordem da atual direção do partido é ignorar as críticas que vão surgindo da bolha político-mediática, que junta num ecossistema muito próprio as empresas de sondagens, os comentadores, os jornalistas e os críticos internos, que vão alimentando os dois últimos grupos e vivendo do primeiro para justificar aquilo que dizem ser o defraudar de expectativas de Montenegro. As “ruas”, jura-se na São Caetano, dão nota mais positiva ao desempenho de Luís Montenegro. “Aos poucos, a capacidade dele, a tranquilidade, a moderação e a firmeza q.b. vão entrando”, argumenta um elemento próximo do presidente do partido.
As críticas da bolha, embora frustrantes, pouco importam. Mas, na política, ninguém pode viver de costas para a bolha. A preocupação em melhorar a forma e o conteúdo das intervenções tem merecido uma renovada aposta por parte da equipa do líder social-democrata. A agência de comunicação Cunha Vaz tem colaborado esporadicamente com o partido; mais recentemente, há cerca de 10 dias, Luís Montenegro foi entrevistado pelos jornalistas batidíssimos Filipe Santos Costa e Inês Serra Lopes, como exercício virtual para outros embates.
E também foi essa preocupação que motivou a grande aposta em fazer um brilharete no Town Hall da CNN, um formato que permite, num primeiro momento, mais tempo para responder às perguntas (sem o sentido de urgência de uma entrevista convencional e com espaço para explicar as ideias); e, na segunda parte, a possibilidade de responder às perguntas de um público previamente selecionado.
Na segunda-feira, Montenegro apareceu com a lição estudada. Levantou-se (coisa que António Costa não fez), tratou as pessoas pelo nome e os mais jovens por tu, falou de Saúde, Habitação e Educação, sem cometer qualquer gafe. “Foi um êxito estrondoso. Teve a oportunidade de mostrar o domínio dos vários dossiês, de A a Z”, celebra-se na sede do partido. A ideia é que, sem o ruído habitual que condiciona a afirmação dos líderes da oposição, Montenegro consegue de facto chegar às pessoas e aos potenciais eleitores. Resta saber se as urnas vão confirmar isso.
Passos mantém-se na reserva, mas não para alimentar o peditório das presidenciais