O Estado português está a falhar na função essencial de apoiar os cidadãos no momento em que mais necessitam e têm sido, até ao momento, “algumas bolsas de privados” que estão a pagar a crise económica resultante da pandemia. Quem o diz é Paulo Soares Pinho, professor da NOVA SBE e diretor académico do LisbonMBA, sublinhando que a crise de Covid-19 apanhou o Estado demasiado endividado, pelo que todas as opções estão condicionadas à partida.
Em entrevista ao Observador, por skype, o economista diz que “o Estado está a tornar-se em algo super-poderoso que, em vez de apoiar os cidadãos (que seria a sua função, redistribuir, regular), apenas zela pela sua própria capacidade de financiamento”. A resposta à crise tem sido marcada por “assimetrias” e situações de justiça social e económica muito questionável – e a procissão ainda vai no adro. Sobre o tema das moratórias bancárias – a 31 de março acabaram as moratórias para os créditos à habitação de 86 mil famílias – Paulo Pinho admite que vai haver “muitas empresas que vão fechar a porta e abrir, ao lado, livre de dívidas“.
“Vejo muita gente na banca preocupada com este tipo de situações”, afirma, lamentando, ainda, que aquilo que se sabe sobre como vai ser gasto o dinheiro da “bazuca” – o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) – não dá grande ânimo: “Voltamos à política do passado“.
A cada semana se fala mais sobre as moratórias bancárias, que nos bancos portugueses são das mais elevadas da Europa. Vê o tema com preocupação?
No tema das moratórias fala-se muito do impacto para os bancos, e é um ponto importante. Mas há uma questão a priori que se discute menos que é a distribuição dos custos e dos benefícios, no contexto do combate à pandemia. É evidente que uma parte dos custos está a ser passada para os bancos – mas neste momento temos um conjunto de setores de atividade que foram sacrificados pelo bem comum, portanto mandaria o mais elementar bom senso que fossem os beneficiários desse sacrifício a suportar os custos.
Os beneficiários que são, no fundo, todos os cidadãos?
Sim, todos aqueles que beneficiam do facto de não termos um Serviço Nacional de Saúde a abarrotar, aqueles que beneficiam de ter, caso precisem, de uma cama num hospital, toda a nossa sociedade. Numa ótica precipitada, podíamos ir ver quem são os principais beneficiários individuais, isto é, as pessoas mais velhas, com fatores de risco – mas isso seria uma forma tonta de ver a questão, porque essas pessoas têm famílias, estão inseridas numa comunidade e deram um contributo ao longo da sua vida à comunidade. Ou seja, não se pode dizer que quem tem um benefício privado – como pessoas as mais vulneráveis – tem de pagar a conta.
Quem deve “pagar a conta”, na sua opinião?
Quem deveria estar a apoiar fortemente estes setores seria o Estado, que em última instância tem um papel redistributivo na economia. O Estado recolhe dinheiro dos cidadãos, através de impostos cobrados em função dos níveis de rendimento, regra geral, e esta é uma situação onde claramente todos têm um benefício.
E o Estado português está a prestar esse “apoio forte”?
Repare, se um Estado tiver finanças públicas saudáveis isto pode ser feito sem aumentos de impostos. O Estado emite mais dívida e seriam os cidadãos que iriam ter uma espécie de moratória, pagando esta dívida pública de forma diluída no tempo, este custo de um benefício que todos tivemos, como sociedade. O problema é que quando contrastamos o Estado português com outros Estados – incluindo alguns que gostamos muito de criticar, como o Estado alemão – o que vemos é que o Estado alemão deu muito mais apoios diretos às atividades mais afetadas, deu apoios diretos aos cidadãos mais afetados e pôde fazê-lo porque o seu nível de endividamento é baixo, existe flexibilidade financeira para fazer face a uma situação como esta.
Moratórias bancárias. Vai ficar (quase) tudo bem, garantem os bancos
E é por isso que há poucas moratórias (bancárias) na Alemanha, proporcionalmente falando.
Têm poucas moratórias porque, ao contrário do que está a acontecer em Portugal, é o Estado que está a apoiar diretamente os cidadãos. Há uns anos houve muito quem criticasse o Estado alemão, dizendo que era muito parcimonioso na despesa, que era pouco recetivo a apoiar a economia – o que é facto é que o Estado alemão está a apoiar os cidadãos no momento em que eles estão a precisar. É evidente que vai implicar alguma dívida pública, mas será um custo que será amortizado ao longo do tempo.
E em Portugal?
Ora, é como se viu ainda agora recentemente com a promulgação do diploma dos apoios sociais a sócios-gerentes e trabalhadores independentes… Não estou a falar da justiça deste pagamento, acho que ainda ninguém questionou a justiça deste pequeno apoio, quem questiona essa promulgação é o Governo numa ótica estritamente orçamental – o que só reforça a ideia de que o nosso Estado não tem capacidade de apoiar os seus cidadãos num momento de necessidade. Isto não é uma crítica ao governo A, B ou C, é uma crítica ao facto de ter sido feita uma gestão de finanças públicas que levou a que Portugal esteja sistematicamente com níveis de endividamento que colocam em causa o rating da República – algo que, a baixar, coloca em causa todo o financiamento à economia portuguesa.
É a economia refém do Estado?
É uma situação em que o apoio aos cidadãos está subordinado à necessidade de manter o Estado solvente. Isto devia levar-nos todos a uma reflexão – o Estado está a tornar-se em algo super-poderoso que, em vez de apoiar os cidadãos (que seria a sua função, redistribuir, regular), apenas zela pela sua própria capacidade de financiamento, num processo que se repete, à semelhança do que se passou no tempo da troika, em que tudo girava à volta do rating da República.
Não houve preparação para momentos de crise? Em janeiro de 2020, o Observador entrevistou Vítor Bento e ele avisava que não se estava a descer a dívida pública e viria o dia em que o mar voltaria a “encapelar”. Um ou dois meses depois…
Exatamente. Ora, chegados aqui, a questão é: se o Estado não paga os custos que alguns setores estão a ter, como é que esses custos estão a ser distribuídos? Penso que estão a ser distribuídos de forma completamente assimétrica, na economia, sem critério e de forma totalmente ad hoc.
Então, voltando atrás, quem é que está a pagar a crise, até agora?
Até agora são dois grupos. Em primeiro, os setores mais penalizados, as pessoas que trabalham neles, que criaram negócios nos setores. E, por outro lado, os custos estão a ser pagos por aqueles a quem foi imposta uma situação de moratória – e não são só os bancos. São os senhorios, são as companhias de seguros, é o próprio Estado em alguns impostos (embora se tenha visto que o Estado não está muito disponível para aceitar moratórias, veja-se o caso do Pagamento Especial por Conta). Têm sido, sobretudo, algumas bolsas do setor privado a pagar a crise até ao momento.
“Há um dia em que o mar se voltará a encapelar”, avisa Vítor Bento, em entrevista
E não só bancos e empresas grandes.
Pense num senhorio que tem lojas para arrendamento e tem alojamento local para turistas. Ora, esse senhor, por um lado, deixou de ter receitas com os turistas e, por outro, é obrigado a dar moratórias aos seus inquilinos. Paga pelos dois lados, tem os custos próprios de estar num setor afetado mas, por outro lado, tem de dar apoio a outro setor porque o Estado não cumpre o seu papel. Não defendo, claro, novos impostos. Mas é por estas situações que os Estados têm de ter folga financeira.
É uma questão ideológica, de contexto político atual? Olha-se para esses senhorios que referiu como grandes capitalistas?
Quem investe em lojas e coisas do género não são grandes bancos ou grandes fundos, são pessoas simples. Se o Estado quiser lançar um imposto sobre os capitalistas, que o faça, e assume as consequências de o fazer. O que não pode fazer é, de forma indireta, dizer que “por acaso como você estava naquele setor àquela hora, vai pagar a crise; se concedeu mais crédito ao setor A do que ao setor B, vai perder mais.” Isso é que não pode ser.
E as empresas maiores?
Sim, depois temos as seguradoras, que acumulam milhões em prémios que não estão a ser pagos e provavelmente nunca serão pagos. E os bancos, os acionistas dos bancos também estão a ser chamados – porque as cotações bolsistas dos bancos traduzem, obviamente, o facto de haver no mercado uma perceção de que algum deste crédito vai chegar ao dia em que não vai ser pago.
Não vai?
Empresas como restaurantes, ginásios, por exemplo, têm a porta fechada ou praticamente fechada, mas estão a acumular boa parte dos custos da atividade como se estivessem em atividade normal, com exceção para alguns custos do trabalho. E vai chegar um dia, quando acabarem as moratórias, em que o empresário vai estar na seguinte situação: vai ver que volta à atividade a meio-gás, eventualmente, o turismo leva algum tempo a retomar, as pessoas levam algum tempo a ganhar a confiança, mas todos os custos – com a exceção (não total) do custo-trabalho – que estavam acumulados ao longo dos meses estão lá para serem pagos. Será que, nessa altura, com um cash flow reduzido, vai conseguir pagar aquilo que é devido, normalmente, e somar a isso toda a dívida do passado?
O que acha que vai acontecer?
Muita gente vai ter de necessariamente colocar a questão: não é mais viável fechar a porta e abrir outra ao lado? Acho que isso é que algumas pessoas não estão a ver. E, mais: nessa altura podem gerar-se outros mecanismos capazes de gerar assimetria: por exemplo, um empresário que tenha prestado garantias pessoais, avales pessoais aos bancos, não vai poder ir por esse caminho. Mas se outro empresário, ao lado, que não tenha dado garantias pessoais, por qualquer razão, pode ir por esse caminho e liberta-se de boa parte deste custo que lhe foi imposto (pelo bem comum, repita-se) e transfira esse custo para o banco, para o senhorio que nunca vai recuperar nada da renda, para a companhia da eletricidade ou a seguradora etc, etc.
Isso pode acontecer com empresas viáveis e não-viáveis (mesmo sem pandemia)?
Tenho ouvido algumas pessoas falarem sobre como se estima a viabilidade económica de empresas que estão com moratórias. Alguns até tentam fazer isso de forma estatística, com modelos e coisas desse género. Quanto a mim, a viabilidade económica não se vê assim – temos de ver qual é o negócio em que a empresa está, que recursos são necessários para poder competir e se a empresa tem ou não condições para competir. Se estivermos a falar de uma refinaria, a refinaria está lá, é preciso ter ali aqueles tanques, aquela capacidade instalada. Nesse caso, não consigo desligar a atividade económica e a sua viabilidade da empresa que ali está. Porém, numa economia cada vez mais dominada pelo conhecimento e onde o fator muitas vezes mais importante é a gestão e o capital humano…
Está a referir-se a quais setores, por exemplo?
É válido para o setor tecnológico mas, muito mais, vale para restaurantes e todo o tipo de pequenas atividades em que o negócio é o dono. O negócio de um restaurante é o seu gestor, é o seu know-how, é a equipa que consegue reunir à sua volta. Ora, o capital humano é muito mais móvel do que o capital físico, do que um tanque de uma refinaria. E, portanto, quem opera sobretudo com capital físico vai ser obrigado a sofrer com o fim das moratórias, eventualmente ir para um PER [Processo Especial de Revitalização] e, aí, para reduzir o nível de endividamento dessa empresa em PER vamos, mais uma vez, impor perdas a todas aquelas entidades a quem foi pedido para dar moratórias – o senhorio, a companhia de seguros, o banco. Todos aqueles que suportaram um custo de algo cujo benefício foi comum. Voltamos ao mesmo.
Antecipa um grande aumento do número de empresas a entrar em PER?
A lógica do PER, que é uma cópia mal feita do Chapter 11 norte-americano, é promover a viabilidade económica da empresa melhorando a sua viabilidade financeira, ou seja, através da redução das suas dívidas. Ora, naqueles setores onde o principal ativo é o capital humano, nós sabemos que o capital humano é muito móvel. Essas empresas não vão para PER nenhum, as pessoas a menos que tenham prestado avales pessoais, preferirão fechar a empresa do que ficar o resto da vida a pagar os custos de meses de atividade nula ou reduzida. O que é que têm a ganhar ao ficar agarrados ao prejuízo dessa atividade, quando podem recomeçar a atividade logo ao lado?
Esse efeito tem potencial para ter um impacto sistémico?
Vejo muita gente na banca preocupada com este tipo de situações. Nós tivemos uma recuperação económica assente em atividades de baixíssimo valor acrescentado, com uma força de trabalho pouco qualificada e, portanto, são negócios que facilmente se fecham e “renascem”, na porta ao lado, com outro nome.
Sim, mantêm-se os clientes, os fornecedores, o know how…
Rapidamente se restabelece o negócio. E é por isto que vamos ter um problema com as moratórias nos bancos mas não apenas nos bancos – fala-se muito nos bancos, mas esquecemo-nos das outras partes da sociedade de que já falámos. Essas, se calhar, vão ter menos apoio do que os bancos.
Preocupa-o mais, pelo que se percebe, o crédito às empresas e não tanto o crédito particular e habitação, certo?
Não estou tão preocupado com o crédito à habitação porque de uma ou de outra os bancos vão estender o crédito, vão dar às pessoas condições e, com bom senso de ambas as partes, as coisas vão-se resolver. A experiência da última crise fez com que muita gente perceba que a melhor solução é estender. Por outro lado, nas empresas é bem mais complicado, porque nas empresas estender é, simplesmente, acumular dívidas não só aos bancos mas aos seus fornecedores, por exemplo. E quanto mais tempo se estender menor é a capacidade de recuperação do banco. O Estado vai compreender que isto isto pode ter consequências sistémicas graves.
Faz sentido prolongar as moratórias mais tempo, para os setores mais afetados?
Não é o Estado português que define o fim das moratórias – é a Autoridade Bancária Europeia, a EBA. Com a introdução da nova diretiva da resolução [bancária], o Estado já não pode, simplesmente, fazer aquilo que fez noutros colapsos bancários que houve anteriormente: chegar e colocar dinheiro no problema. Isso está fora de questão: há uma hierarquia de ativos financeiros e que vão, sequencialmente, sendo anulados até que a solvência do banco esteja assegurada. Na primeira linha estão os acionistas dos bancos – mesmo quando não são “grandes capitalistas”, mas são pequenos aforradores que têm nas carteiras dos seus fundos de pensões ações de bancos. Nessa hierarquia, sobretudo em Portugal, onde os bancos desse ponto de vista não têm ainda balanços muito sofisticados, não há muitos amortecedores entre esse capital (o capital próprio dos bancos, ou seja, as ações) e os depósitos das empresas. Portanto, se isto não for gerido com bom senso correm-se riscos na estabilidade financeira no sentido em que algumas empresas podem querer tirar os seus depósitos de alguns bancos. É um dos problemas da nova diretiva europeia da resolução bancária.
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Acha, então, que vai haver soluções para evitar esse possível problema sistémico?
Acho que o Estado português vai ter bom senso e vai tentar evitar quaisquer problemas sistémicos. E como é que o Estado pode intervir? Apoiando os bancos. De acordo com o que disseram aqueles que parecem ter-se tornado o canal oficial de comunicação do Governo – isto é, comentadores políticos na televisão – já se fala em garantias públicas, estender a créditos em moratória o regime das linhas de crédito do sistema da garantia mútua, etc.
Faz sentido?
Bem, implica outras considerações. Em primeiro lugar, a garantia pública é, sobretudo, suportada por garantias do Estado e, portanto, em caso de incumprimentos que venham a surgir, o Estado não vai ter outro remédio senão… pagar. Uma vez que estamos a passar risco privado para o Estado, que era de algum modo o que eu estava a defender, a questão é se esta é a melhor maneira de o fazer? Será a forma mais justa, do ponto de vista social e económico? Se me dizem que quem vai precisar de mais garantia do Estado são os mais endividados então pergunto porque é que hei de apoiar mais os endividados face àqueles que estão menos endividados?
Gera-se, quase, uma questão de “moral hazard“.
Não é bem moral hazard, porque é a posteriori, no sentido em que vou apoiar mais aqueles que até poderiam ter menos viabilidade financeira. Quem é que vai escolher quem vai ser apoiado e quem não vai? Quem é que escolhe quem é que vai para insolvência e quem não vai, quem tem garantia pública e quem não tem? Não irei beneficiar, eventualmente, aqueles que preferiram endividar a empresa em vez de lá colocar capital próprio, como deviam ter capitalizado a empresa? Porque é que hei de estar a apoiar essas empresas e não as que tiveram um comportamento mais correto, ou, melhor, menos arriscado? Vou, basicamente, divergir o dinheiro dos futuros impostos – cobrados a pessoas e empresas – para pagar as dívidas daqueles empresários que tiveram comportamentos de mais risco.
Que papel é que pode ter, aí, o plano de recuperação e resiliência (PRR)?
Também aí temos escolhas muito surpreendentes. É que, tendo Portugal uma economia tão aberta ao exterior, tão dependente do turismo e dos serviços, o PRR praticamente não toca esses setores. Aposta, mais uma vez, em grandes obras públicas, algumas das quais com valor atual líquido económico negativo, o que significa que agora vamos pagar essas obras públicas com o dinheiro de Bruxelas cujos beneficiários vão ser as grandes empresas do costume. E ficam, depois, os custos dessas iniciativas para ser pagos pelos contribuintes.
Receia que será uma oportunidade perdida?
Voltamos à política do passado, outra vez com aposta em tecnologias que estão na sua infância e cuja viabilidade ainda não está comprovada – recorde-se o erro que foi a política de expansão da energia solar em Portugal demasiado, agora estamos com um parque de energia caríssima quando, pelos vistos, o Alentejo é dos melhores sítios para colocar painéis solares com a tecnologia atual e não com a tecnologia que existia há 10 anos. Vamos, ao que parece, investir em mais obras públicas que nos vão trazer perdas no futuro e a pressionar as contas públicas – basta lembrarmo-nos das SCUT, que iam ser integralmente pagas pelos privadas e veja lá quanto é que nos custam todos os anos no Orçamento do Estado.