Portugal está à beira de voltar a ter um défice das contas públicas, apenas com as medidas que já foram anunciadas e aprovadas, alertou o Banco de Portugal nesta sexta-feira. O alerta, porém, não se refere apenas às medidas aprovadas pelo Governo mas também às que têm o dedo da oposição, em “maiorias negativas”. “O Banco de Portugal não faz distinção“, respondeu Mário Centeno na apresentação do Boletim Económico de junho, um relatório que vê Portugal a entrar em 2025 com um “hiato” de pelo menos três mil milhões de euros nas contas públicas, que vão ter de cumprir exigentes novas regras orçamentais europeias.
A seleção portuguesa ainda está a alguns dias de pisar o relvado no Europeu de futebol mas há uma matéria em que Portugal já foi “campeão na Europa”, afirmou Mário Centeno, em conferência de imprensa no Museu do Dinheiro: foi “campeão no excedente [orçamental] e na redução da dívida” para menos de 100% do Produto Interno Bruto (PIB). Porém, apesar dessa redução da dívida, que foi a segunda maior (face a 2019) em toda a zona euro, a entrada em vigor (em pleno) das novas regras orçamentais europeias coloca Portugal numa situação “desafiante”, sobretudo porque o País continua a ter uma dívida superior à fasquia dos 60% do PIB.
O Banco de Portugal sublinha que “apesar do excedente orçamental registado em 2023, não deverá haver margem, segundo as novas regras orçamentais, para aumentos de despesa ou reduções de impostos que não sejam compensados por outras medidas, especialmente se cenários macroeconómicos adversos se concretizarem”. “O rácio da dívida pública ainda é muito elevado e os efeitos do envelhecimento da população na despesa pública, já visíveis, irão acentuar-se nas próximas décadas”, acrescenta o supervisor financeiro.
No boletim apresentado por Mário Centeno, que foi ministro das Finanças entre finais de 2015 e meados de 2020 e agora é governador do Banco de Portugal, foi feita uma simulação “ilustrativa” do desafio orçamental que se coloca ao Estado português, à luz das novas regras europeias, a partir do próximo ano. É uma simulação que parte de um “excedente de 1,2% do PIB em 2023 (1,6% sem medidas extraordinárias)” que recuaria para 1% em 2024 – mas só se não fossem as “medidas recentemente anunciadas” que não entram nestes cálculos.
Fala-se de medidas apresentadas por Luís Montenegro mas, também, aprovadas por partidos da oposição. O supervisor trabalhou com a informação disponível até 21 de maio, ou seja,a as medidas não incluídas no relatório “referem-se à redução do IRS, ao pacote de apoio aos jovens, ao alargamento da redução do IVA na eletricidade, ao apoio à habitação e reforço da saúde, bem como às revisões salariais de diversas carreiras na função pública“.
“Relativamente às medidas apresentadas recentemente, o exercício de projeção inclui apenas a abolição das portagens nas ex-SCUT (180 milhões de euros a partir de 2025) e as alterações ao Complemento Solidário para Idosos (220 milhões de euros, num ano completo)”, diz o Banco de Portugal.
Entre medidas quantificadas e não-quantificadas, fosso supera 3.000 milhões
A conclusão do Banco de Portugal é “preocupante”, palavra usada várias vezes por Mário Centeno na conferência de imprensa: tendo de cumprir as novas regras europeias, Portugal entra em 2025 com um “hiato” de 2.070 milhões de euros nas contas públicas, a que acrescem “pelo menos” 1.100 milhões em medidas que cujo impacto ainda não foi quantificado.
[Já saiu o quarto episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio e aqui o terceiro episódio]
O fosso refere-se ao facto, detetado pelo supervisor financeiro, de que a margem disponível não será suficiente para cobrir os aumentos da despesa (e perdas de receita) previstos. As contas são as seguintes: “estimamos que para 2025 exista uma margem de acréscimo da despesa e/ou redução de impostos discricionária de 5.400 milhões de euros“, disse Mário Centeno, salientando que “apenas a Comissão Europeia pode definir essa margem” com exatidão mas este é o número que é “ilustrativo face àquilo que tem sido aplicado nos últimos anos”, disse o governador.
E quanto vale, na prática, essa margem? Não vale o suficiente. “Se nós utilizarmos as regras normais, regulares, de evolução para a despesa pública (pensões, consumo intermédio, despesas com pessoal, outras despesas correntes e de capital) essa evolução estimada pelo Banco de Portugal implica um consumo desta margem na ordem dos 5.200 milhões“, afirmou Mário Centeno, usando “um certo abuso de linguagem” para explicar que isso seria o consumo de margem num cenário de “políticas invariantes”.
“Ou seja, sobravam 200 milhões de euros para novas medidas“, resumiu o governador do Banco de Portugal, comparando os cerca de 5.400 milhões de margem com o aumento de cerca de 5.200 milhões na despesa regular.
Porém, lembrou Centeno, os cálculos adensam-se porque “também temos no Orçamento de Estado de 2024 um conjunto de reversões de medidas temporárias, como o ISP [Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos], que continua com uma taxa de imposto inferior à que existia antes da crise energética, medidas de créditos fiscais a empresas (em sede de IRC) que irão expirar por si ao longo do tempo” e, por outro lado, há “efeitos desfasados de medidas do lado da receita”. São dois efeitos que, em termos líquidos, tiram mais 55 milhões à margem disponível.
O conjunto destas duas — reversões de medidas temporárias e efeitos desfasados têm um efeito orçamental praticamente nulo. Se aumentarmos o ISP para valores anteriores à crise energética e a medida de IRC que ainda está em vigor não for renovada teremos um aumento da receita de 520 milhões de euros. Já o efeito desfasado da reforma de IRS em 2025 tem um impacto orçamental (positivo) de 575 milhões de euros. Tudo somado consumimos 55 milhões de euros da margem orçamental”, disse Mário Centeno.
Do lado da receita fiscal, o Banco de Portugal afirma que “as medidas discricionárias desse lado incluem reduções de impostos no valor de 2.330 milhões de euros, mas também 520 milhões de euros de aumentos de impostos, justificados pela reversão de medidas temporárias de alívio fiscal”. Assim, em termos líquidos, o conjunto de medidas do lado da receita implicam uma redução de 1.820 milhões de euros, como se pode ver com mais detalhe na página 33 do Boletim Económico de junho.
Ou seja, “a variação do referencial para a despesa ascende a 7.455 milhões de euros“, nos cálculos do Banco de Portugal. E “ficam fora deste exercício as diversas medidas com impacto orçamental significativo ainda em fase de negociação que abrangem mais de 220 mil trabalhadores da administração pública, os planos de emergência nas áreas da saúde e habitação, entre outras medidas setoriais de menor dimensão”, acrescenta o supervisor.
Contas feitas, “a ausência de novas medidas que permitam reduções na despesa e/ou aumentos da receita, o excesso do referencial da despesa face à margem disponível será superior a 2.070 milhões de euros (superior a 0,7% do PIB)”.
O problema, porém, agrava-se quando se soma o impacto das medidas que estão por quantificar mas que o Banco de Portugal estima no valor de “pelo menos 1,1 mil milhões de euros“. Fala-se, aqui, explicou o governador do Banco de Portugal, de “todas as medidas de negociação sindical, essencialmente, com incidência salarial que abrangem cerca de 220 mil trabalhadores, todo o pacote da habitação que não está quantificado e todas as medidas que têm sido apresentadas com mais ou menos detalhe”.
Para o Banco de Portugal, o tal “diferencial” excede o limite máximo de 0,3 pontos percentuais (num dado ano) que está inscrito no atual procedimento por défice excessivo para economias com um rácio da dívida superior a 60%. Nas novas regras europeias, que entram em vigor no próximo ano, os países podem ter uma situação mais negativa num ano mas isso teria sempre de ser corrigido nos anos seguintes e o Banco de Portugal avisa que “a eventual correção deste desvio exigiria a adoção de medidas restritivas“,
O Banco de Portugal não usou a palavra austeridade, mas avisou que essas “medidas restritivas” poderiam ter de ser tomadas “numa fase descendente do ciclo económico” – que não é a que se vive neste momento mas que pode estar no horizonte, avisou Mário Centeno.
Banco de Portugal não mexe nas previsões económicas
↓ Mostrar
↑ Esconder
Sem alterações significativas face às projeções anteriores, o Banco de Portugal prevê que a economia irá crescer “entre 2% e 2,3% nos anos de 2024 a 2026, um desempenho superior ao da área do euro”.
A inflação reduz-se para 2,5% este ano, 2,1% em 2025 e 2% em 2026, refletindo menores pressões externas e internas sobre os preços.
O mercado de trabalho mantém uma evolução favorável, com um aumento anual do emprego de 0,9% até 2026. A taxa de desemprego permanece em 6,6%.
“Prevê-se um crescimento positivo mas acontece num contexto desafiante”, afirmou Mário Centeno na apresentação do Boletim Económico trimestral, pedindo “prudência” na gestão da política económica e das contas públicas.