Das mais de 700 testemunhas arroladas neste julgamento, já foram ouvidas quatro, mas ainda nenhuma tinha questionado a pertinência ou mesmo a relevância das perguntas feitas — quer pelo Ministério Público, quer pelos advogados que representam os assistentes e os arguidos. Foi preciso chegar ao quinto dia de julgamento para ouvir Fernando Ulrich, presidente do conselho de administração do BPI: “O que é que interessa o que me está a perguntar quando estouraram 18 mil milhões de euros?”. E o espanto na sala — que contou com apenas dois arguidos, Amílcar Morais Pires e Francisco Machado da Cruz — foi outra das novidades desta terça-feira.
Menos surpreendente foi o testemunho de Pedro Queiroz Pereira cujo depoimento ao Ministério Público foi gravado no início de 2018, cerca de seis meses antes de o líder da Semapa morrer, e ouvido durante a manhã. Numa gravação de duas horas e meia, foram muitas as críticas a Ricardo Salgado, não fossem os dois conhecidos pela inimizade que durou longos anos.
A indignação de Ulrich: “Essa pergunta serve para quê?”
O Ministério Público chamou Fernando Ulrich para perceber o que aconteceu poucos anos antes da resolução do BES, uma vez que a ESI – Espírito Santo International tinha um crédito no BPI. Mas o presidente do conselho de administração do BPI não percebeu a pertinência das questões. E foi muito direto para a sala que partilhou o espanto.
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O Ministério Público quis saber, logo para começar, quais as ligações entre o BPI e as empresas do GES. Mas a procuradora foi travada por Fernando Ulrich que referiu que, fruto das suas funções, não ia responder a algumas questões: “Amanhã levo com um processo por violação do segredo bancário”. E continuou: “Não sou eu que estou a ser julgado, nem o BPI. Essa pergunta serve para quê? Porque é que tenho de justificar as operações que o BPI faz ou fez com os seus clientes?”.
Ulrich ainda teve resposta da procuradora Carla Dias: “Não são questões diversas às questões que lhe foram colocadas em sede de inquérito. Queremos perceber as relações de empréstimo com o BPI, para percebermos a vida da ESI e do GES”. Ulrich não ficou convencido.
E a sessão da tarde foi avançando assim, com mais barulho do que é normal, com advogados a comentar a prestação do presidente do conselho de administração do BPI. Mas a procuradora do Ministério Público não desistiu e continuou a perguntar pelas relações de empréstimo do BPI à ESI, que é arguida neste processo. Só que Fernando Ulrich continuou a não responder e ainda deixou críticas: “Assim nunca vamos chegar a lado nenhum. Isto é de tal maneira monstruoso. O que é que interessa o que me está a perguntar [empréstimo de 100 milhões de euros] quando estouraram 18 mil milhões de euros? A resposta é sim, mas de que é que isso adianta?”, questionou.
A procuradora ainda tentou mais uma vez, questionando Fernando Ulrich sobre quem era o intermediário da ESI para renegociar o crédito. “Acho que era o dr. Salgado”. No entanto, Ulrich voltou a criticar este julgamento: “Posso mandar-lhe amanhã. Isto vai durar anos, qual é a diferença entre mandar hoje ou amanhã?”
E nem os advogados escaparam. Miguel Pereira Coutinho, advogado que está do lado dos assistentes, ouviu as críticas de Ulrich: “Estouraram com mais de 20 bi [mil milhões de euros]. Isto é uma coisa absolutamente extraordinária”. “Os contribuintes não suportaram um cêntimo, nem vão suportar [a resolução do BES]. Foram os acionistas, os bancos e os clientes que compraram os produtos. O Fundo de resolução já meteu 8,3 mil milhões de euros ao Novo Banco. Se os bancos tivessem sido obrigados a refletir nas contas o prejuízo que isto significa, isto limpava mais de um terço dos bancos de Portugal.”
E voltou a insistir: “Não respondo a esta pergunta. É uma pergunta opinativa. Não percebo o que é que estou aqui a fazer para este tipo de perguntas”.
“Extraordinariamente trabalhador, ambicioso desmedido e um mentiroso compulsivo”
Durante duas horas e meia — o equivalente à parte da manhã da sessão — ouviu-se a voz de Pedro Queiroz Pereira, o antigo líder da Semapa, empresa que Ricardo Salgado tentou dominar. E foi precisamente por isso que o seu depoimento foi exibido esta terça-feira: para mostrar como o antigo presidente do Banco Espírito Santo conseguia tudo aquilo que desejava.
O depoimento feito em 2018, poucos meses antes de Pedro Queiroz Pereira morrer, deu algumas luzes ao tribunal, referindo que Ricardo Salgado tinha “características boas e más”. “É extraordinariamente trabalhador, mas é também ambicioso desmedido — é capaz de matar o pai e a mãe —, e depois a principal característica é ser um mentiroso compulsivo.”
“Quer convencer o interlocutor de que dois mais dois dá cinco. Ele é capaz de chegar aqui e de dizer que esta folha de papel é preta, é doentio. É um caso gritante em que diz coisas, se convence daquilo que diz e isso passa a ser a verdade suprema.”
Além de caracterizar Ricardo Salgado, Pedro Queiroz Pereira referiu ainda que a continuidade de António Ricciardi como chairman do banco, era “completamente conveniente” para “Ricardo Salgado fazer o que quisesse no BES”.