Malas e caixotes com dez milhões de dólares, 700 mil euros e 800 milhões de kwanzas. Tudo em notas, inclusive com selos do Banco Nacional de Angola, e muitas delas ainda em caixas seladas. Todo este dinheiro foi encontrado quando as autoridades angolanas entraram na residência do major Pedro Lussaty, o responsável pelas finanças da banda musical da Presidência, no final de maio. Era o início de um caso que abalou a política angolana e que já chegou a figuras próximas de João Lourenço, levando os analistas e a oposição a apontarem as falhas no combate à corrupção, a grande bandeira do mandato do Presidente angolano.
A operação policial foi transmitida numa reportagem da Televisão Pública de Angola (TPA), onde, além dos milhões de euros, dólares e kwanzas na posse de Pedro Lussaty, ficou também a saber-se que o major tinha em seu nome 45 apartamentos de luxo em Luanda, cinco apartamentos em Lisboa, um apartamento na Namíbia e uma série de carros de gama alta. Antes de a reportagem ser transmitida, a Procuradoria-Geral da República (PGR) angolana anunciava a “Operação Caranguejo”, que resultou na detenção de Lussaty e na qual estão a ser investigados oficiais das Forças Armadas pelos crimes de peculato, retenção de moeda ou associação criminosa.
Após a reportagem da TPA e o anúncio da PGR angolana, no entanto, uma questão ficou no ar: como é possível que uma só pessoa consiga desviar e guardar tanto dinheiro sozinho? As dúvidas agudizaram-se e começaram a ganhar outra projeção quando o Presidente angolano, João Lourenço, começou a anunciar exonerações de vários oficiais da sua Casa de Segurança, dias depois da “Operação Caranguejo”. O caso ganhou uma proporção ainda maior quando, na passada segunda-feira, Lourenço exonerou, sem dar explicações, Pedro Sebastião, ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança do Presidente. Mais de dez oficiais foram exonerados em pouco mais de uma semana, sem que fosse apresentada oficialmente uma ligação entre a detenção de Lussaty e o seu afastamento.
“Como o assunto teve de vir a público, mais cedo ou mais tarde esta ligação seria feita e o Presidente ficava com mais um problema grave por resolver. É na sequência disto que o general Pedro Sebastião é demitido”, afirma ao Observador Filomeno Vieira Lopes, professor da Universidade Católica de Luanda e membro do partido Bloco Democrático, acusando o major Pedro Lussaty de ser um “testa de ferro” de outras figuras do regime. “Lussaty não é proprietário de tudo aquilo que a TPA nos mostrou. É alguém que deu o nome e a cara pelos negócios de outras pessoas”, reitera Vieira Lopes.
O Observador questionou a PGR angolana sobre qual a ligação entre Pedro Sebastião e Pedro Lussaty, bem como se o ex-ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança do Presidente ou outros oficiais exonerados por João Lourenço estão a ser investigados no âmbito da “Operação Caranguejo”. No entanto, até à data de publicação deste artigo, as perguntas não tiveram qualquer resposta. Também o gabinete da Presidência de João Lourenço se escusou a fazer qualquer declaração no sentido de explicar o que levou o Presidente angolano a exonerar Pedro Sebastião e outros oficiais da sua Casa de Segurança dias depois da detenção de Pedro Lussaty e da abertura de uma investigação a crimes cometidos dentro das forças de segurança.
Contudo, no Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), conforme comunicado do secretariado do bureau político do partido citado pela agência Lusa, enaltece-se a “coragem e convicção demonstradas” por João Lourenço neste processo, apresentado como uma prova de que o Presidente angolano está a fazer progressos no combate à corrupção no país. Isto apesar de ser adensarem as dúvidas sobre como foi possível que uma quantidade tão elevada de dinheiro tenha sido desviada e escondida sem o conhecimento das autoridades ou de figuras importantes do regime.
Combate à corrupção: a bandeira de João Lourenço que se tornou numa espada de dois gumes
“Das duas uma. Se já se sabia e se não se atuou, então estamos diante de uma perversão. Se não se atuou porque não se sabia, estamos diante de uma impotência”, reitera ao Observador o sociólogo angolano Paulo Inglês. “Uma parte do dinheiro de Lussaty foi conseguido depois de 2017. E para movimentar essa quantia seria preciso a cumplicidade de muita gente. É isso que torna o sistema perverso. A questão não é só a pessoa arrecadar esse dinheiro. A questão é como consegue movimentar este dinheiro. Como é que consegue guardar este dinheiro sem que o sistema se dê conta?”, questiona o também vice reitor para a área científica e pós-graduação da Universidade Jean Piaget de Angola, em Luanda.
UNITA acusa João Lourenço de proteger os “nomes grandes”
Na reportagem transmitida pela TPA é referido que a operação alegadamente montada por Pedro Lussaty, em conluio com outros membros das forças de segurança, deu-se entre 2011 e 2017, uma tese que tem vindo a ser desmentida por alguns analistas e pela oposição a João Lourenço, que notam que parte do dinheiro foi desviado já depois de o Presidente angolano suceder a José Eduardo dos Santos.
“A moeda que foi apanhada é moeda nova. Isto significa que as instituições estão por trás deste tipo de jogo e que muitas personalidades deviam ser responsabilizadas no final da investigação”, afirma ao Observador Adalberto da Costa Júnior, presidente da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), maior partido da oposição em Angola, acusando o regime angolano de montar uma “propaganda institucional” que tem como objetivo convencer a opinião pública de que a responsabilidade é de um “ilustre desconhecido”, referindo-se a Pedro Lussaty, que disse às autoridades ser o único proprietário dos bens apreendidos pelas autoridades.
Nesse sentido, e por considerar que “por trás deste nome [Pedro Lussaty] estão não só ilustres personalidades como instituições”, Adalberto da Costa Júnior critica João Lourenço por não ter apresentado justificações para a exoneração de Pedro Sebastião e de outros oficiais das forças de segurança, e acusa o Presidente angolano de proteger “os nomes grandes” e de não levar a cabo um verdadeiro combate à corrupção.
UNITA exige demissão do governador do Banco Nacional de Angola
“Se, por alguma razão, houvesse um verdadeiro combate à corrupção, nós agora não tínhamos toda uma propaganda institucional direcionada à responsabilização de uma pessoa. Neste momento, já teríamos uma série de ilustres seguramente na cadeia e as respetivas instituições envolvidas responsabilizadas ou com uma investigação a este nível”, atira o líder da UNITA. “Se as demissões [na Casa de Segurança] tiverem a ver com o caso, não estão a vir acompanhadas de responsabilização”, realça.
O maior partido da oposição angolana veio também, através do seu grupo parlamentar, exigir a demissão do governador do Banco Nacional de Angola (BNA), José de Lima Massano, e pedir uma comissão parlamentar de inquérito ao BNA e ao Ministério das Finanças “para se determinar a extensão das conexões fraudulentas com os órgãos auxiliares do Presidente da República”. Na sequência da “Operação Caranguejo”, o BNA anunciou um inquérito para apurar as circunstâncias que levaram a que o dinheiro angolano fosse encontrado na casa de Pedro Lussaty, apesar de o banco central negar qualquer responsabilidade, referindo que o dinheiro em causa tem origem num banco comercial.
Os dois objetivos de João Lourenço com as exonerações
Remetendo para o funcionamento da sociedade e da economia angolanas, onde existem “muitas barreiras à iniciativa privada” e “circuitos muito controlados”, Precioso Domingos, economista do Centro de Estudos de Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, referindo-se aos milhões de dólares, euros e kwanzas apreendidos na residência de Pedro Lussaty, considera que “não é possível atingir em Angola aquele tipo de valores sem que isso seja do conhecimento de vários órgãos”.
“Ao nível da Presidência da República, nomeadamente na Casa de Segurança, ou no BNA, essas informações existem. O problema não é saber quem está envolvido, o problema é saber se vai ou não haver coragem para se revelar ou deixar cair essas pessoas”, sublinha o economista angolano ao Observador, antevendo que “tudo o que cause prejuízo político vai ser evitado” nos próximos tempos, tendo em conta as eleições do próximo ano.
A detenção de Lussaty e as consequentes exonerações, sem que tenham sido dadas explicações por parte do MPLA ou da Presidência de João Lourenço que permitam fazer uma ligação clara entre os dois casos, têm levantado, precisamente, questões quanto ao timing escolhido pelas autoridades angolanas e aos objetivos políticos associados ao caso.
Para o sociólogo Paulo Inglês, existem duas razões que justificam a exoneração de Pedro Sebastião e dos restantes oficiais da Casa de Segurança do Presidente. “O primeiro [objetivo de João Lourenço] é livrar-se de algumas pessoas que, eventualmente, possam beliscar a sua imagem de alguém que luta contra a corrupção. Em segundo lugar, tem fins eleitorais. Tentar tirar proveito disso para ter ganhos políticos”, salienta o sociólogo angolano.
As próximas eleições presidenciais estão previstas para 2022 e é expetável que o atual Presidente angolano seja candidato, sendo que Angola, conforme notou ao Observador Adalberto da Costa Júnior durante uma passagem por Portugal no final de abril, já está em pré-campanha eleitoral, com a oposição ao MPLA a ultimar uma “frente democrática” unida para enfrentar João Lourenço no próximo ano.
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Além dos objetivos eleitorais, Filomeno Vieira Lopes, do Bloco Democrático, acrescenta que, com a exoneração de uma figura muito próxima [Pedro Sebastião], João Lourenço pretende “ficar com o prestígio de estar a combater a corrupção”. “A ideia é recuperar terreno, tentar dizer que o combate à corrupção não é seletivo, porque as pessoas do seu próprio gabinete estão a ser implicadas em casos e a ser punidas”, sublinha.
Combater a corrupção em Angola “não é apenas uma questão de boa vontade”
Quando tomou posse em 2017, sucedendo a José Eduardo dos Santos, João Lourenço fez do combate à corrupção a principal bandeira do seu mandato. Quase quatro anos depois, apesar de ter visado figuras próximas do seu antecessor (nomeadamente os filhos de José Eduardo dos Santos), o Presidente angolano tem demonstrado maior resistência em tomar medidas contra figuras importantes do MPLA ou mais próximas de si, o que tem levado a oposição a falar em dualidade de critérios e em dois pesos e duas medidas no combate à corrupção.
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No que pode ser encarado como uma tentativa de responder às críticas dos últimos dias, na terça-feira, na tomada de posse de Francisco Pereira Furtado, que substituiu Pedro Sebastião enquanto chefe da Casa de Segurança do Presidente, Lourenço apelou ao fim dos oficiais “fantasmas” (um esquema de pagamentos fraudulento) no seio das forças de segurança angolanas e pediu ao BNA e à Unidade de Informação Financeira para aumentarem o controlo das operações bancárias, de forma a evitar que casos como os que estão a ser investigados na “Operação Caranguejo” se repitam.
“[João Lourenço] pode ter boa vontade, mas o problema da corrupção em Angola não é uma apenas uma questão de boa vontade, mas sim de fazer reformas que façam com que as instituições renasçam. E essas reformas nunca foram feitas”, lamenta o economista Precioso Domingos.
O sociólogo Paulo Inglês, por seu turno, acrescenta que Lourenço, desde que chegou ao poder, apercebeu-se de que a corrupção em Angola “não se trata de um desvio”, mas sim de “algo entranhado na própria estrutura do Estado”, o que levou o Presidente angolano a optar por uma “operação de charme”.
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“Se [João Lourenço] tivesse de mexer entre as pessoas que estiveram metidas em casos de corrupção, isso abalaria o regime. A minha interpretação é que, de vez em quando, há algumas pessoas que são sacrificadas e apresentadas como exemplo de luta contra a corrupção”, sublinha o sociólogo angolano, notando que “as figuras que estão presas ou foram apanhadas são figuras de segunda linha”, dando como exemplos de pessoas em liberdade, apesar de envolvidas em escândalos de corrupção, Manuel Vicente, Hélder Vieira Dias Júnior e Leopoldino Fragoso do Nascimento, mais conhecidos, respetivamente, como os generais “Kopelipa” e “Dino”.
Ao contrário do que aconteceu quando houve acusações de corrupção contra o ministro da Energia e Águas, João Baptista Borges, ou contra o chefe de gabinete de Presidente angolano, Edeltrudes Costa, desta vez João Lourenço exonerou uma figura de topo muito próxima de si, embora sem afirmar claramente que essa decisão está relacionada com o escândalo de desvio de dinheiro do erário público atribuído a Pedro Lussaty.
A oposição e a sociedade civil angolana exigem que sejam revelados outros nomes relacionados com a “Operação Caranguejo”, nomeadamente se Pedro Sebastião está ou não envolvido. Além disso, a detenção do major Pedro Lussaty está a ser vista como um exemplo de uma figura de segunda linha detida no âmbito do combate à corrupção prometido por João Lourenço.
“Há alguma coisa nesse combate cerrado à corrupção que não está a correr como devia, mas também devemos reconhecer que existe uma vontade política”, afirma ao Observador João Malavindele, diretor da organização não-governamental angolana Omunga, acrescentando que “não se muda um regime que está no poder há mais de 40 anos de um dia para o outro”.
Malavindele fala da “Operação Caranguejo” como um exemplo de que, em Angola, não existem “instituições fortes” e que “há muita coisa a melhorar dentro da estratégia e da política de combate à corrupção”, não hesitando em acusar João Lourenço de estar a protagonizar “mudanças cosméticas”.
“Estamos a falar de uma questão que se tornou num cancro para a nossa sociedade. É essa corrupção que hoje faz com que não tenhamos medicamentos nos hospitais, que as crianças continuem fora do sistema de ensino e que vivam mal-nutridas, o que tem provocado mortes sem fim. São situações que têm inviabilizado aquilo que deveria ser o crescimento e desenvolvimento de Angola. Tudo por causa do cancro da corrupção”, lamenta o diretor da Omunga.