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Oito anos após o início da investigação, quatro anos após a acusação e dois anos após a pronúncia para julgamento, a Operação Lex arrasta-se nas secretárias dos juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Trata-se de um caso que teve uma decisão disciplinar logo em 2019 do Conselho Superior da Magistratura, que culminou com a pena de expulsão para Rui Rangel e a aposentação compulsiva de Fátima Galante, mas a tramitação do processo judicial está nos antípodas dessa celeridade.
Quando o julgamento parecia estar, finalmente, mais perto de começar, após um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) ter rejeitado a 28 de novembro os recursos de dois arguidos e confirmado a composição do coletivo de juízes conselheiros, eis que dois dos três conselheiros que compõem o coletivo designado para fazer o julgamento pediram a jubilação: António Latas, juiz conselheiro presidente do coletivo, e João Rato, juiz conselheiro adjunto.
E agora há uma de duas soluções, sendo que qualquer uma delas representará mais um atraso na tramitação dos autos: ou o processo é sujeito a uma nova distribuição para um novo coletivo ou o processo passa para as mãos do adjunto que resta, o conselheiro Jorge Gonçalves, tendo de ser encontrados outros dois conselheiros da 5.ª Secção para integrar o coletivo, seguindo a ordem de antiguidade.
Ao que o Observador apurou, o Conselho Superior da Magistratura segue com preocupação a tramitação dos autos do caso Lex — que colocou em causa a imagem da Justiça pelas suspeitas de corrupção que incidem sobre Rui Rangel e pela alegada manipulação de sorteios na Relação de Lisboa. Joaquim Piçarra, presidente do Supremo Tribunal de Justiça na altura da acusação do Ministério Público, garantiu mesmo na altura que “a macieira da Justiça não” tinha sido “infetada por quatro ou cinco maçãs podres”.
O que é a Operação Lex? E por que razão o julgamento ainda não começou?
A investigação ao processo iniciou-se em 2016, ou seja, há cerca de oito anos. O caso envolve o ex-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, o juiz jubilado Luís Vaz das Neves, dois antigos juízes desembargadores, Rui Rangel e Fátima Galante — aos quais o Conselho Superior da Magistratura aplicou as penas de expulsão e aposentação compulsiva —, e o ex-presidente do Benfica Luís Filipe Vieira, num total de 16 arguidos. Eram 17, mas o empresário Ruy Moura morreu em novembro de 2020.
Entre os crimes imputados pelo Ministério Público (MP) na Operação Lex encontram-se corrupção, abuso de poder, recebimento indevido de vantagem, fraude fiscal, branqueamento de capitais, falsificação de documento e usurpação de funções, num caso que afetou a imagem da justiça portuguesa.
Só o ex-desembargador Rui Rangel, o principal arguido da Operação Lex, foi acusado de 21 crimes. A procuradora-geral adjunta Maria José Morgado, que liderou a investigação, imputou-lhe a alegada prática de dois crimes de corrupção passiva para ato ilícito, um crime de recebimento indevido de vantagem, quatro crimes de abuso de poder, seis crimes de falsificação de documento, seis crimes de fraude fiscal, um crime de branqueamento de capitais e um crime de usurpação de funções.
Desde a acusação que o processo se tem arrastado no STJ, com decisões judiciais contraditórias pelo meio relacionadas com a separação do processo: por duas vezes foi alvo de separação e por duas vezes viu tais decisões foram revogadas. Tudo no mesmo tribunal superior: o STJ.
Eis uma breve cronologia da Operação Lex:
- Os autos tiveram início em 2 de setembro de 2016, a partir de uma certidão extraída do inquérito Rota do Atlântico (ainda sem acusação ou arquivamento), que tem como principal arguido o empresário José Veiga. As buscas revelaram documentação comprometedora para Rui Rangel, levando a este novo inquérito.
- A acusação, com 961 páginas, foi proferida no dia 8 de setembro de 2020.
- A 12 de julho de 2021, o juiz de instrução Sénio Alves determinou a primeira separação do processo, ao considerar que o Supremo Tribunal de Justiça deveria ficar apenas com os factos relacionados com Luís Vaz das Neves (devido ao foro especial de magistrado) e que não tinha competência para apreciar as questões relativas aos restantes arguidos, que seguiriam desta forma para a primeira instância.
- No dia 24 de fevereiro de 2022, os conselheiros Cid Geraldo (relator) e António Gama decidiram revogar a separação do processo, após recurso do MP e dos arguidos Octávio Correia (funcionário judicial na Relação de Lisboa) e a sua mulher, Elsa Correia, decretando que o processo decorra na íntegra no STJ e que fosse aberta a fase de instrução.
- A 16 de dezembro de 2022, a decisão instrutória do conselheiro Sénio Alves remeteu todos os arguidos para julgamento “nos exatos termos da acusação”. Mas os avanços e recuos não terminaram.
- A 10 de março de 2023, o conselheiro António Latas —a quem o processo foi distribuído em 20 de janeiro — voltou a separar o processo, contrariando a decisão anterior de voltar a juntar o processo, e declarou o STJ competente só para a análise de crimes associados a Vaz das Neves e a outros arguidos.
- No dia 19 de dezembro de 2023, o STJ voltou a anular a separação processual e manteve o julgamento do processo na íntegra naquela instância.
Desde então, num processo que já contava sete anos desde a abertura do inquérito, consumiu-se mais um ano, essencialmente, devido aos recursos apresentados em março pelos arguidos Octávio Correia e Rui Rangel contra a composição do coletivo de juízes encarregados do julgamento: os conselheiros António Latas (relator), João Rato e Jorge Gonçalves (adjuntos).
O despacho de 6 de fevereiro a indicar a composição do coletivo, no qual dois adjuntos eram diferentes daqueles que constaram da distribuição original em janeiro de 2023, foi contestado pelas defesas dos dois arguidos. A decisão de rejeição dos recursos surgiu apenas no dia 28 de novembro e, assim, passaram cerca de oito meses, deixando o processo praticamente parado no STJ.
Todavia, a história dos atrasos no processo pode ainda não ter chegado ao fim. Na sequência desta decisão, o Observador sabe que a defesa de Octávio Correia, a cargo do advogado Paulo Graça, interpôs já um recurso para o Tribunal Constitucional (TC) e pediu “efeito suspensivo”. Por sua vez, o advogado João Nabais, mandatário de Rui Rangel, indicou que não vai recorrer para o TC.
A jubilação de dois dos três conselheiros na mesma semana
Agora, o problema dá pelo nome de “jubilação”. Dois dos três juízes conselheiros que compõem o coletivo que deveria liderar o julgamento da Operação Lex vão jubilar-se. Fonte oficial do STJ confirmou ao Observador os pedidos de jubilação dos conselheiros António Latas e João Rato.
“Informamos que o conselheiro António Latas requereu a jubilação no dia 4 de novembro de 2024, para produzir efeitos a 1 de março de 2025. O conselheiro João Rato pediu a jubilação em 8 de novembro de 2024 para produzir efeitos em 1 de janeiro de 2025”, explicou fonte oficial.
Ou seja, na mesma semana de novembro, os dois magistrados solicitaram a jubilação mas produzem efeitos em tempos diferentes.
O STJ realçou, todavia, que o pedido de jubilação dos conselheiros António Latas e João Rato não se reflete na tramitação do processo… ainda. “Esses pedidos para já não têm qualquer consequência no processo, nem é possível dizer se virão a ter, desde logo porque ainda não transitou em julgado a decisão que confirmou a composição do coletivo que deve proceder ao julgamento”, reiterou.
Contudo, há um pormenor fundamental para a evolução deste processo: se o juiz começar o julgamento, tem de o acabar. É essa a interpretação unânime do Código de Processo Penal e do Estatuto dos Magistrados Judiciais feita por várias fontes judiciais contactadas pelo Observador.
Ou seja, se o conselheiro António Latas iniciar o julgamento até 1 de março, terá de o concluir. Mas com um recurso da defesa de Otávio Correia ainda pendente, é improvável que o julgamento se inicie até março.
Um processo que ‘queima’: 5 conselheiros pediram escusa e 5 juízes são testemunhas
Num processo em que estão antigos juízes ‘no banco dos réus’, sucedem-se os magistrados no processo sem que arranque o julgamento no Supremo Tribunal de Justiça.
Primeiro, foi o conselheiro Sénio Alves a separar o processo na instrução, que reservaria àquela instância apenas os factos ligados a Luís Vaz das Neves e deixaria para a primeira instância grande parte da factualidade do caso. Uma decisão, como referido acima, que foi anulada. Quando chegou a hora da distribuição, Sénio Alves declarou-se impedido por ter conduzido a instrução.
Depois, o atual conselheiro relator António Latas, de 64 anos, adotou a mesma solução e, tal como acontecera com a decisão do magistrado responsável pela instrução, o STJ anulou a separação processual, mantendo todo o processo nas suas mãos. Agora, submeteu um pedido de jubilação para produzir efeitos já a 1 de março.
Os juízes conselheiros adjuntos que constaram da primeira distribuição, Helena Isabel Moniz e António Gama, também se afastaram entretanto do julgamento.
Helena Isabel Moniz — que já tinha realizado diversos atos na fase de inquérito e pediu escusa, mas que seria recusada — foi eleita presidente da 5.ª Secção em maio de 2023 (e reeleita em janeiro de 2024 para o cargo) e deixou, por isso, de integrar o coletivo. Já António Gama cessou as suas funções por aposentação/jubilação no dia 19 de abril de 2023.
Ainda antes da fase de instrução, a atual ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, então juíza conselheira do STJ, pediu escusa de intervir no processo por ser amiga de um dos arguidos, um pedido ao qual o Supremo acedeu.
Também o conselheiro jubilado Eduardo Loureiro se declarou impedido após a decisão instrutória, por ter tido ligação ao processo enquanto antigo magistrado do MP e por ocupar no início de 2023 a posição de presidente da 5.ª secção criminal.
Além de vários outros magistrados que já intervieram de alguma forma no processo, a Operação Lex apresenta ainda o aspeto particular de ter vários conselheiros arrolados como testemunhas no processo.
De acordo com a consulta dos autos pelo Observador, são os casos de: António Barateiro Martins (STJ), Joaquim Condesso (Supremo Tribunal Administrativo), Maria da Conceição Gomes (jubilada do STJ), Rui Manuel Gonçalves (STJ) e Orlando Nascimento (STJ), que chegou a ser sancionado pelo CSM por atos ligados a este processo, mas não foi acusado pelo MP, apesar de continuar a ser investigado.
Elevada rotatividade no STJ não ajuda a estabilizar coletivo
A elevada rotatividade dos juízes conselheiros no STJ não ajuda a estabilizar um coletivo que tem de conduzir o julgamento deste processo como se se tratasse de um tribunal de primeira instância.
Presidente do Supremo diz que Justiça não precisa de reformas estruturais mas pontuais
A situação foi já denunciada em junho pelo atual presidente do Supremo, João Cura Mariano, no seu discurso de tomada de posse. “Desde há algum tempo temos assistido à renovação contínua do quadro de juízes do Supremo Tribunal de Justiça, num ciclo de grande rotatividade, como consequência de sucessivos pedidos de jubilação“, afirmou o conselheiro, sublinhando a “idade tardia” de entrada nesta instância e um “abuso de direito” nos recursos apresentados.
“É uma realidade com tendência a agravar-se, até ao limite do caricato, se nada for feito. Corremos o risco previsível de o Supremo Tribunal de Justiça ser um Tribunal onde a quem ele ascende vem apenas entregar o seu pedido de jubilação”, frisou.
Na entrevista exclusiva que deu ao Observador, Cura Mariano apresentou argumentos idênticos e anunciou que quer alterar o sistema de promoção ao STJ, tendo revelado que tal teria de ser feito “imediatamente” e que já tinha falado sobre o tema com “o sr. primeiro-ministro [Luís Montenegro] e com a sra. ministra da Justiça [Rita Alarcão Júdice]”.
Questionado se os conselheiros António Latas ou João Rato manifestaram intenção de continuarem em funções, o órgão de gestão e disciplina dos juízes disse que “não dispõe de informações quanto à intenção dos juízes conselheiros relativamente à continuidade em funções”.
Os alegados esquemas que abalaram a imagem da justiça
O antigo desembargador Rui Rangel está no epicentro do processo Lex e foi acusado em 2020 da alegada prática de 21 crimes.
Rangel é o elo em comum que une magistrados, advogados e ex-dirigentes desportivos numa aparente teia de cumplicidades, que se traduziu na alegada viciação da distribuição de processos na Relação de Lisboa. Essa é a visão do MP no despacho de acusação assinado pela procuradora-geral adjunta Maria José Morgado.
Rangel e Luís Vaz das Neves terão sido alegadamente corrompidos por José Veiga a propósito de um recurso do chamado caso João Vieira Pinto, no qual o ex-empresário de jogadores de futebol foi absolvido pela segunda instância. Segundo a acusação, Veiga funcionou como uma espécie de “patrocinador” da campanha de Rui Rangel à presidência do Benfica em 2012, pagando todas as despesas da candidatura.
No entanto, enquanto Rui Rangel terá recebido uma contrapartida de 350 mil euros para alegadamente favorecer Veiga, o antigo presidente da Relação de Lisboa não é suspeito de ter recebido qualquer tipo de contrapartida. Foi acusado porque a lei permite que um funcionário que tenha beneficiado um terceiro com conhecimento de que essa pessoa iria receber contrapartidas ilícitas seja tido como coautor do crime de corrupção.
O esquema estendeu-se alegadamente à Relação de Lisboa, onde a ex-mulher de Rangel, Fátima Galante, terá redigido acórdãos do antigo desembargador, e em que o funcionário judicial Octávio Correia foi também acusado de corrupção passiva, fraude fiscal e abuso de poder pela alegada conivência com Rangel.
Já Luís Filipe Vieira, o seu então assessor e advogado, Jorge Barroso, e o dirigente Fernando Tavares foram acusados por terem oferecido bilhetes e viagens ao magistrado entre 2014 e 2017, com vista a criar proximidade e procurar a obtenção de favores.
Uma das alegadas contrapartidas está relacionada com um processo que o ex-presidente do Benfica tinha pendente no Tribunal Administrativo de Sintra e sobre o qual ainda não tinha decisão. Rangel terá tentado ajudar Vieira, procurando informação sobre o estado dos autos junto dos serviços daquele tribunal.
As mulheres do “esquema” de Rui Rangel e as contas por onde terão passado milhares de euros