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“Não é tolerável”. Os argumentos que fizeram um juiz mandar julgar Luís Filipe Vieira, Rui Rangel e todos os arguidos da Operação Lex

Decisão de 1064 páginas assinada pelo juiz conselheiro Sénio Alves refere que relação mantida entre ex-presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, e juiz da Relação Rui Rangel não é "tolerável".

Quando decidiu mandar para julgamento os 17 arguidos da “Operação Lex”, o juiz conselheiro Sénio Alves do Supremo Tribunal de Justiça não considerou apenas haver indícios suficientes para que viessem a ser julgados. Ao analisar as provas, o magistrado ficou mesmo convicto de que todos eles — entre os quais três juízes que à data dos alegados crimes trabalhavam no Tribunal da Relação de Lisboa, o antigo presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, e o empresário José Veiga — poderão vir a ser condenados.

Pelo menos é essa a afirmação que o juiz faz no despacho de pronúncia a que o Observador teve acesso, e que foi dado a conhecer numa sessão de mais de duas horas na última sexta-feira. “Para a decisão de pronúncia a lei não impõe a exigência de verdade requerida pelo julgamento final, bastando-se com um juízo de indiciação. Mas também não se basta com um juízo subjetivo, antes exigindo que da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito resulte a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido venha a ser condenado pelos factos que lhe são imputados”, lê-se.

Operação Lex. Supremo pronuncia Luís Filipe Vieira por recebimento indevido de vantagem e juízes da Relação por corrupção

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Só cinco dos 17 arguidos do processo saído da “Operação Lex” pediram a abertura de instrução, ou seja, que a acusação fosse apreciada e confirmada (ou não) por um juiz. Mas a decisão foi extensível a todos os envolvidos no processo e culminou num desfecho idêntico para todos: serão todos julgados pelos crimes de que vinham acusados pelo Ministério Público.

Nas 1064 páginas de decisão o juiz conselheiro Sénio Alves — o processo corre num tribunal superior por ter entre os arguidos três juízes desembargadores — considerou que ao longo desta fase processual se concluiu que as provas que existem “em nada foram abaladas” e que todos “os elementos probatórios existentes constituem indícios suficientes de que os arguidos agiram do modo descrito na acusação”.

Lex. Como os juízes Rui Rangel, Fátima Galante e Vaz das Neves são acusados de terem viciado o sistema judicial

Os arguidos que pediram a abertura de instrução, entre eles o oficial de justiça Octávio Correia, a sua companheira Elsa Correia, o antigo presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, o dirigente Fernando Tavares e o advogado Jorge Barroso, não quiseram prestar declarações e limitaram a sua defesa aos requerimentos de abertura de instrução e a algumas testemunhas que indicaram.

O juiz Rui Rangel e a sua primeira mulher, a juíza Fátima Galante

ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

Os restantes arguidos, os juízes Rui Rangel, Fátima Galante e Luís Vaz das Neves, assim como o empresários José Veiga, o advogado José dos Santos Martins e o seu filho, o comerciante Nuno Ferreira, a advogada e antiga companheira de Rangel, Bruna Amaral e o economista Oscar Lopez não requereram a abertura de instrução. Já os pedidos de instrução feitos por Rita Ferreira, antiga companheira de Rangel, e pelo pai desta não foram admitidos. Mas o tribunal decidiu que havia indícios contra todos eles e que deviam ir a julgamento.

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Mas que argumentos usou o juiz Sénio Alves para manter os crimes daqueles que pediram a sua intervenção?

Crime de Recebimento Indevido e Oferta Indevida de Vantagem: bilhetes só serviam para “criar proximidade”

O antigo presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, o seu então assessor e advogado, Jorge Barroso, e o dirigente Fernando Tavares foram acusados, em coautoria com o então juiz desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa, Rui Rangel, do crime de recebimento indevido de vantagem. Segundo o Ministério Público, entre 2014 e 2017 este núcleo duro do Benfica ofereceu vários bilhetes e viagens para jogos ao magistrado. A acusação acredita que o fizeram para se tornarem mais próximos do juiz e assim poderem pedir-lhe alguns favores, como aconteceu depois com um processo que Vieira tinha pendente no Tribunal Administrativo de Sintra e sobre o qual ainda não tinha decisão.

Os três arguidos ligados ao Benfica– assim como o oficial de justiça do Tribunal da Relação e a companheira, também arguida – foram os únicos a tentar evitar o julgamento.

No requerimento de abertura de instrução, Fernando Tavares argumentou que essas ofertas faziam parte do protocolo, eram registadas e extensíveis a vários adeptos. “A tribuna de honra do Clube (ou Camarote Presidencial) é o local do Estádio onde se sentam as individualidades que o “Sport Lisboa e Benfica” convida para os seus jogos, como dirigentes, jogadores e treinadores que se destacaram ao seu serviço, com especial destaque aos Campeões Europeus, membros do Governo, do Executivo Camarário e da Freguesia de São Domingos de Benfica, dirigentes da equipa adversária e, por fim, sócios que assumiram papel de destaque no Benfica”, explicou.

As mensagens de Vieira a “apertar” com Rui Rangel para resolver um processo e as exigências do juiz para ajudar

“Não foi só o arguido Rui Rangel que beneficiou de convites para assistir a jogos de futebol: todos os ex-Presidentes do ‘Sport Lisboa e Benfica’, bem como os candidatos derrotados a esse cargo, têm beneficiado, ao longo dos anos, desses convites, justamente numa praxe institucional e comummente enraizada. O arguido Rui Rangel era convidado, amiúde, para esses jogos, como era também, convidado para programas de televisão, rádio, para escrever artigos de imprensa, quer como Magistrado, quer como Presidente da Associação de Juízes pela Cidadania, quer enquanto interveniente político e ilustre Benfiquista”, lê-se no resumo que agora consta no despacho de pronúncia assinado pelo juiz Sénio Alves.

Fernando Tavares lembrou ainda que em 2014 não existia sequer processo em Sintra e também na altura comprou bilhetes para Rangel, no jogo de Turim. Só mais tarde acabou por sugerir Jorge Barroso como advogado para o processo de Sintra por aquele ser um especialista em Direito Fiscal.

Luís Filipe Vieira escudou-se na exclusão da ilicitude, porque só queria ver o seu processo em Sintra resolvido

LUSA

Mas o juiz de instrução do Supremo Tribunal (onde decorre esta fase do processo que tem três juízes desembargadores como arguidos), no entanto, não se deixou convencer. Para o juiz conselheiro, assim como para o Ministério Público, esta “entrega/dádiva a Rui Rangel de bilhetes/convites para jogos nacionais e jogos a serem realizados no estrangeiro, sem qualquer justificação para o efeito” servia somente  para “criar um clima de proximidade e granjear a permeabilidade e disponibilidade de Rui Rangel”, por ele ser juiz.

E, independentemente de Rangel ter ou não conseguido influenciar, que é “irrelevante”, sublinha-se o facto de o ter tentado, socorrendo-se de “relações de amizade e/ou outras com colegas de profissão”. “Não resulta indiciado qualquer facto que permita enquadrar as ofertas num contexto de pessoalidade que justifique as vantagens ofertadas”, lê-se no despacho de pronúncia.

“Se atendermos à valoração ético-socialmente dominante da conduta sob escrutínio, aos olhos do cidadão comum, o comportamento não é tolerável”, afirma o juiz.

Luís Filipe Vieira, por seu turno, ainda recorreu a uma figura da lei para desculpar os seus contactos com Rui Rangel sobre o processo que corria em Sintra: a exclusão de ilicitude. Em sua defesa, o empresário argumentou que mesmo que tivesse havido o crime de recebimento indevido de vantagem, estaria exluída a ilicitude da conduta por exercício de um direito, pela demora do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra

Mas nem esta tese vingou. O Supremo reconheceu que Vieira, como todos os utentes da Justiça, têm direito a uma decisão num prazo razoável e que a lei até estabelece o prazo de 20 dias para uma decisão. Mas, “tornear e ultrapassar a ordem em que os autos estariam colocados para prolação de sentença” também não é uma forma de se conseguir uma decisão mais célere.

Crime de corrupção passiva para ato ilícito: todos os arguidos “contribuíram”

Octávio Correia, o oficial de justiça do Tribunal da Relação de Lisboa acusado pelo Ministério Público do crime de corrupção passiva para ato ilícito, em coautoria com os juízes desembargadores Rui Rangel e Luís Vaz das Neves e o advogado António Martins, recusou, por seu turno, ter sido corrompido pelo empresário José Veiga.

Em sua defesa, o funcionário afirma que nunca recebeu qualquer vantagem de José Veiga para que se considere que tenha sido corrompido. Mas, no entender do tribunal, não basta ter recebido, basta ter contribuído para que Rui Rangel recebesse. O Ministério Público acusa o empresário de ter pagado 250 mil euros ao juiz para que este interviesse num processo que tinha a correr no tribunal superior.

“Todos os co-arguidos contribuiram de forma essencial para a decisão e execução conjunta do ilícito criminal, existindo uma ligação/nexo de causalidade entre os factos que cada um executou”, refere o juiz conselheiro, lembrando que no crime de corrupção passiva a contrapartida do crime não tem que ser repartida por todos.

E, para não deixar dúvidas, o magistrado descreve o que cada um fez. Octávio terá estabelecido contacto com José Veiga por e-mail, servindo de intermediário de Rui Rangel, recebeu as alegações de recurso e reencaminhou-as para Rangel – e para o juiz sorteado manualmente para ficar com o caso: Rui Gonçalves (que em tribunal garantiu não ter lido este e-mail).

Já Luís Vaz das Neves, lê-se no despacho de pronúncia, terá retirado o processo da distribuição eletrónica, “onde devia estar”, e realizou a distribuição manual daquele processo, determinando a escolha de Gonçalves. Em tribunal Vaz das Neves, o único que prestou declarações, explicou que optou pelo sorteio manual precisamente para aquele processo não ir parar às mãos de Rui Rangel e não causar uma má imagem ao Tribunal da Relação de Lisboa. Mas o tribunal não encontrou explicações para Rangel receber uma cópia das alegações.

Já o advogado José Santos Martins, segundo o despacho de pronúncia, terá facultado contas bancárias para receber as quantias e depois fazê-las chegar a Rui Rangel.

Para o juiz que olhou para as provas do caso e mandou o caso para julgamento, há evidências de que tanto Octávio Correia como Luís Vaz das Neves sabiam que António Veiga pagava as despesas da Campanha de Candidatura de Rui Rangel à Presidência do Sport Lisboa e Benfica e tinham conhecimento que Rui Rangel recebia vantagens e benefícios (patrimoniais ou não patrimoniais) do empresário. Todos sabiam e pretendiam a viciação da distribuição.

O empresário José Veiga vai ser julgado enquanto corruptor ativo

AFP via Getty Images

Crime de abuso de poder: foram violados deveres funcionais

Otávio Correia ainda tentou derrubar da acusação o crime de abuso de poder de que é acusado (um crime também imputado a Rangel e às suas duas antigas companheiras, a também juíza Fátima Galante e a advogada Bruna Garcia Amaral) por considerar que este crime concorria com o de corrupção. Mas mais uma vez não conquistou o juiz Sénio Alves.

“Estamos perante uma pluralidade de ações com total autonomia entre elas (pluralidade de sentidos sociais de ilicitude), e não uma única realidade e consequentemente foram violados diferentes tipos legais”, argumentou.

O Ministério Público imputou este crime a Octávio Correia por considerar que desde 2014 ele beneficiava de contrapartidas pelo auxílio prestado a Rui Rangel no âmbito da atividade ilícita deste. Mais. Há provas que mostram que em várias ocasiões deu informações várias sobre o estado de processos judiciais a José Veiga. “Fê-lo sempre com o propósito de obter vantagens clubísticas no SLB, nomeadamente o acesso a bilhetes para jogos, tendo tirado proveito pessoal da circunstância de desempenhar as funções de Escrivão Adjunto do TRL”, lê-se na pronúncia.

“O arguido Octávio Correia violou os seus deveres funcionais porque violou objetivamente o dever de reserva a que está sujeito, quanto à natureza das matérias que lhe são confiadas enquanto funcionário judicial (em razão do lugar que ocupava na 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa)”, lê-se no despacho.

O Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa,  Luis Maria Vaz das Neves, durante a  leitura da sentença sobre o processo Csa Pia, 23 fevereiro 2012, em Lisboa.  MANUEL DE ALMEIDA / LUSA

Luís Vaz das Neves justificou o sorteio manual precisamente para o processo de Veiga não calhar a Rangel

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Crime de fraude fiscal e contra-ordenação fiscal: os deveres de “transparência fiscal e verdade”

Outro dos crimes que o juiz conselheiro Sénio Alves teve analisar foi o de fraude fiscal, imputado não só a Octávio Correia e à sua companheira, Elsa Correia, como a oito outros arguidos do processo que ficou conhecido como “Operação Lex”.

O casal argumentou que por serem casados tinham um regime específico de dever coletivo de declaração de rendimentos, lembrando que parte foi auferido pelo negócio da pastelaria da mulher. O juiz até admitiu alguma razão no regime aplicado a ambos, mas lembrou que tinham o dever de declarar perante a Administração Fiscal os rendimentos auferidos “ancorado nos deveres de transparência fiscal e verdade”. E manteve a acusação, embora sobre outro pressuposto jurídico, levando-os a julgamento.

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