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Austen Ivereigh é uma porta de entrada privilegiada para o pensamento do Papa Francisco. O jornalista inglês de 53 anos é o biógrafo do líder da Igreja Católica (a biografia Francisco, o grande reformador é uma das obras de referência para conhecer a vida do pontífice argentino), mas agora assume a função de ghost-writer do Papa. Em entrevista ao Observador, o britânico reconhece o peso da responsabilidade, mas diz-se um privilegiado por poder “facilitar” a transmissão da mensagem de Bergoglio — e garante que “o conteúdo é inteiramente” do Papa.
Sonhemos Juntos é o livro mais recente do Papa Francisco. Trata-se de uma profunda reflexão sobre as transformações operadas pela pandemia da Covid-19 no mundo moderno, ponto de partida para uma proposta do caminho a seguir depois do ponto de inflexão que a pandemia representa na Humanidade. O livro foi editado simultaneamente em várias línguas e publicado em diversos pontos do globo entre o fim de dezembro e o início de janeiro deste ano (a edição portuguesa é da editora Planeta). A obra foi ideia do jornalista britânico, que durante o verão de 2020 manteve um conjunto de conversas com o Papa Francisco a propósito dos desafios levantados pelo último ano. A partir das respostas, gravações e documentos que Francisco partilhou com ele, Austen Ivereigh compilou o documento final, que chegou na semana passada às livrarias portuguesas.
Embora seja o reflexo do mais profundo pensamento do Papa Francisco sobre o mundo moderno, o texto é propositadamente publicado fora da esfera oficial da Igreja Católica. Em vez de uma encíclica ou de uma carta apostólica — que vinculariam o Papa ao ensinamento formal da Igreja —, o livro comercial dá a Francisco espaço para ser íntimo, garante Ivereigh. A obra está repleta de histórias pessoais do argentino, que lembra as suas “Covid’s pessoais” e partir delas sugere caminhos de futuro para a economia. Mas 2020 não foi só pandemia: o livro debruça-se sobre o caso George Floyd e o problema do racismo, sobre os populismos que capturam os argumentos cristãos e sobre os abusos sexuais.
No fim de contas, 2020 foi um ponto de inflexão. Se é certo que ficou marcado por momentos terríveis, o Papa Francisco encontra neles um fator de otimismo: em múltiplos aspetos da sociedade, ficaram expostos os problemas e os valores do mundo atual, estando dado o primeiro passo rumo à solução. Numa longa entrevista ao Observador a partir do Reino Unido, Austen Ivereigh explica como escreveu o livro com o Papa durante a pandemia e clarifica alguns pontos do pensamento de Francisco. Diz que o Papa está preocupado com a emergência do “nacionalismo cristão” propagado por líderes populistas que acham que estão a defender os valores cristãos — de Trump a André Ventura — e garante que Francisco está a abrir caminho a uma maior presença das mulheres em cargos de liderança: ainda que a igualdade total ainda esteja longe, o argentino não se demite de incluir cada vez mais mulheres na hierarquia da Igreja, para que a possam mudar por dentro.
Antes de ir ao conteúdo do livro, gostava de lhe perguntar pelo próprio livro. Escreveu-o com base nas reflexões do Papa Francisco, mas é o nome do Papa que surge na capa. Sente o peso da responsabilidade de ser uma espécie de — talvez não seja esta a melhor expressão — ghost-writer do líder espiritual de mil milhões de pessoas?
A resposta curta é: sim. Na verdade, é um privilégio. O privilégio de ser um canal, para facilitar e permitir que o Papa fale à Humanidade num formato muito diferente dos pronunciamentos papais normais. Sobre o formato do livro, há, como sabe, uma tradição de livros-entrevista com os papas. João Paulo II, com Atravessar o Limiar da Esperança, por exemplo. O Papa Francisco fez um em 2016, com Andrea Tornielli, chamado O Nome de Deus é Misericórdia, e esse também tinha “Papa Francisco” na capa — e, depois, lá dentro, dizia “em conversa com Andrea Tornielli”. Nesse sentido, este livro segue o mesmo formato de outros livros anteriores. O que o torna diferente é que não há perguntas e respostas.
Não é uma entrevista formal…
Exatamente. Não é uma entrevista. Diria que fui o colaborador dele. Ajudei a facilitar e a permitir, mas é o texto dele, são os pensamentos dele, os contributos dele. O conteúdo é inteiramente dele. Por isso, não senti a necessidade de colocar questões, não precisava de estar no texto.
Ajudar a pandemia e ultrapassar a crise
O livro é um enquadramento espiritual para enfrentar os tempos atuais, o Papa expõe um modo de pensar e agir sobre o que se passa nos nossos tempos. Mas continuo com esta curiosidade: porquê um livro “comercial” como este e não uma encíclica?
Há, obviamente, a tradição da doutrina formal do Papa, que são as encíclicas, as exortações apostólicas, entre outros, que têm diferentes níveis de autoridade, mas são todos considerados como doutrina da autoridade do Papa. Nesses, o Papa fala com o espírito da Igreja. Ele está sempre a ensinar, mas esses documentos pontifícios formais têm o peso do magistério associado. Os livros dos papas deste tipo são deliberadamente, outra coisa que não isso. O Papa pode ser pessoal, pode dar reflexões pessoais sobre os assuntos…
Falar da sua própria história.
É isso. Pode ser pessoal, pode ser íntimo de um modo que não pode fazer num documento pontifício. Ao mesmo tempo, penso que ele pode ser acessível, pode falar como um ser humano normal, como um cidadão normal, em diálogo com outros seres humanos. Claro que ele continua a ser o Papa e, como digo, está sempre a ensinar. Porém, penso que tem uma liberdade e uma flexibilidade num formato destes que não teria na doutrina papal. É por isso que todos os papas, pelo menos desde João Paulo II, recorreram a esta plataforma para comunicar.
E foi o Austen que teve a ideia?
Sim, foi ideia minha. Apresentei-lhe a ideia do livro depois de lhe ter feito uma entrevista na Páscoa, que foi publicada no The Tablet, no Reino Unido, e na Commonweal, nos Estados Unidos. Foi, especificamente, sobre a pandemia e tinha cerca de três mil palavras. Saiu mesmo antes da Páscoa, no ano passado, e foi uma entrevista muito, muito profunda, na qual ele fez algumas reflexões fantásticas, mas, necessariamente, devido ao modo como foi publicada, ele falava sobretudo para os católicos no mundo anglófono. Quando lhe escrevi em abril, disse-lhe que a entrevista tinha sido muito bem recebida e muito útil, mas que pensava que aquilo de que precisávamos da parte dele era que falasse para toda a Humanidade e que tivesse mais espaço para o fazer. Não seria necessariamente um livro longo, mas ainda assim um livro, que lhe desse espaço para desenvolver as reflexões sobre a pandemia. Disse-lhe ainda que as pessoas normais, além da Igreja, também se estavam a virar para ele em busca de orientação espiritual. Qual é o sentido desta crise? Onde está Deus nela? Como é que navegamos? Como é que saímos dela melhor?
O livro baseia-se numa série de conversas que teve com ele. Propôs-lhe que se encontrassem algumas vezes?
Esse foi um problema. Essa entrevista da Páscoa foi toda feita por correio eletrónico, porque eu estava em confinamento em Inglaterra, tal como ele estava em confinamento em Roma. Não havia modo de, simplesmente, ir lá e sentar-me com ele. Na entrevista da Páscoa, eu enviei-lhe perguntas e ele gravou as respostas, que me foram enviadas na forma de ficheiros de som. Isso funcionou muito bem para a entrevista. Para o livro, fizemos o mesmo — ou, pelo menos, começámos dessa maneira. Mas, na verdade, o que aconteceu foi que, à medida que o livro foi avançando, ele começou a dizer-me: “Olha, tu sabes o que penso sobre isto, sabes que eu escrevi sobre isto aqui, disse isto ali”. Claro que eu conheço os escritos dele. Enquanto biógrafo dele, conheço muito bem os escritos da vida dele, do período dele enquanto jesuíta, enquanto arcebispo. Por isso, em alguns momentos eu próprio poderia sugerir alguma coisa. Podia dizer-lhe para usar determinado pronunciamento dele num determinado lugar do livro. E ele também me enviou documentos que eu nunca tinha visto e que nunca ninguém tinha visto antes. Ele partilhou alguns documentos privilegiados comigo, textos sobre determinados assuntos, cartas que enviou a alguém, coisas que podiam ser úteis.
Que documentos foram esses?
Por exemplo, um dos documentos que ele partilhou comigo foi uma carta que ele enviou a um bispo — ou bispos, não tenho a certeza — da América Latina, na qual ele refletia sobre um dos sínodos. Enfim, mas isso foram exceções. Na maioria das vezes, ele encaminhou-me para artigos, fez-me sugestões ou eu fiz-lhe sugestões. Tornou-se muito mais uma colaboração, em que ele me guiava pelos seus próprios escritos. É por isso que, à medida que o livro avançou, foi ganhando uma forma diferente e nunca foi uma entrevista direta.
A partir do exterior, durante aquele primeiro período negro da pandemia, em março, abril de 2020, fomos vendo igrejas vazias em todo o mundo, a Praça de São Pedro no Vaticano vazia, o Papa isolado do mundo, sem falar às multidões como habitualmente. Mas, tendo estado pessoalmente com ele, como é que o encontrou? Como é que o Papa viveu o confinamento?
Tenho de deixar claro que, também no caso do livro, não nos encontrámos pessoalmente.
Ah! Pensava que na segunda parte do processo se tinham encontrado.
Não, não. Depois da entrevista da Páscoa, fiquei sempre em Inglaterra, durante toda a escrita do livro. Começámos a trabalhar nele em junho e acabámos no fim de agosto, início de setembro. Durante todo esse tempo, eu estava em Inglaterra e ele em Roma. Os contactos foram, quase sempre, ele a enviar-me gravações com os pensamentos dele.
Mas, como foi estando em contacto com ele, mantenho a pergunta sobre como o Papa viveu o confinamento.
Claro, claro. Tivemos conversas pelo telefone também — e, no final de setembro, acabei por vê-lo pessoalmente, com efeito. Houve um período em que nem Roma nem nós estávamos em confinamento, e fui a Roma por outro motivo, para dar uma conferência, encontrei-me com ele e até lhe dei o PDF do rascunho. Encontrei-o, nessa ocasião, incrivelmente em grande forma. Estava enérgico, muito alegre, de muito bom humor. Durante a escrita do livro, foi interessante. Às vezes, conseguia ouvir, pelas gravações, que ele estava muito cansado. Outras vezes, estava divertido e animado. Foi muito interessante, encontrei-me com ele virtualmente de modos muito diferentes. Mas, no geral, se me pergunta “como estava o Papa durante a pandemia?”, digo-lhe: estimulado por ela. Na Argentina, nos anos 70, os jesuítas costumavam chamar-lhe um “piloto de tormentas”, porque, como muitos líderes, as crises estimulam-no. Ele vê as escolhas que enfrentamos e ajuda-nos a navegar por essas escolhas, mostra-nos o horizonte distante, avisa-nos dos obstáculos e das tentações pelo caminho. Num certo sentido, a metáfora que tenho usado frequentemente sobre Francisco é a de que ele é o guia espiritual da Humanidade a guiar-nos num retiro. Penso que em nenhum momento isto foi tão claro como nesta pandemia.
O populismo e os católicos apanhados na onda
Ele também ficou, de certa forma, paralisado. Vivendo em Itália, que foi um dos países inicialmente mais afetados pela pandemia, tinha um olhar muito próximo sobre a pandemia à volta dele.
Absolutamente. Mas queria acrescentar uma coisa. Na sua questão, disse que ele estava isolado do mundo. Acho que é importante ter a noção de que os encontros semanais na Praça de São Pedro, as audiências gerais, são apenas uma parte do modo como o Papa está próximo das pessoas. Ele tem muitos outros instrumentos à disposição. Durante a pandemia, durante o primeiro confinamento, ele transmitiu a missa diária a partir da Casa de Santa Marta, que foi vista por milhões de pessoas. O telefone, o correio eletrónico… E penso que este livro também se transformou, para ele, num meio para estar próximo da Humanidade.
O livro propõe um método com três partes para abordar os complexos tempos que vivemos. Obviamente, não quero revelar demasiado do livro, ao ponto de impedir as pessoas de o quererem ler. Mas pode explicar de que modo este método pode ajudar a Humanidade a ultrapassar a crise?
A estrutura ver-julgar-agir do livro foi sugestão minha porque é uma estrutura que ele usa com frequência e usou nas suas encíclicas. É muito típica da Igreja da América Latina.
E também dos jesuítas, não é?
Bom, os jesuítas também o têm usado. Mas o método teve origem num cardeal belga, nos anos 20, chamado Joseph Cardijn, e estava associado inicialmente à Ação Católica. De qualquer modo, foi muito aproveitado pela Igreja na América Latina depois do Concílio Vaticano II. O motivo pelo qual é um método eficaz é que nos permite olhar para o mundo, para as situações, para a realidade, com os olhos do bom pastor e perceber como é que Cristo fala através dos que sofrem e dos que estão à margem. Com esse tipo de clareza, é possível, depois, discernir o que é de Deus e o que não é de Deus e colocar em ação propostas ou ações que sejam inspiradas pelo Espírito Santo. Esse é o método, em resumo. Pensei, e ele concordou, que seria uma boa maneira de abordar esta crise. O que é que a crise nos diz sobre o mundo em que vivemos? Onde é que vemos Deus a falar através disso? Onde é que vemos o inimigo da natureza humana a tentar miná-la? E, por conseguinte, que tipo de ações, ousadas e radicais, precisamos de implementar para criar um mundo melhor, usando esta crise como uma oportunidade? Em linguagem teológica, diríamos um momento “cheio de graça”. Noutras palavras: há sofrimento, há dor nesta crise; mas também há salvação, porque onde há sofrimento há um Deus misericordioso que oferece sempre a graça, que nos permite sair melhores.
E qual é a proposta do Papa Francisco para a parte da ação?
Bom, a terceira parte do livro apresenta uma visão da política, da economia e da sociedade que, de muitas formas, é semelhante àquilo que tem vindo a ser proposto por economistas que falam da regeneração: temos uma economia que dá acesso a empregos, a habitação, a melhores padrões de vida para os excluídos, enquanto, em simultâneo, protege o planeta. Isso requer que haja objetivos económicos diferentes, não apenas o crescimento. O foco excessivo no crescimento tem sido um grande problema. Na segunda parte, ele fala de Mariana Mazzucato e de Kate Raworth, e de economistas como elas. Nesse sentido, o Papa Francisco reflete muito do pensamento que tem sido produzido. Mas penso que há um elemento em que ele faz algo muito, muito diferente de tudo o que qualquer outra pessoa tem feito: na parte final, ele fala de uma política que não é o individualismo liberal, mas também não é o populismo nacionalista. Na verdade, ele fala de um autêntico envolvimento das pessoas nas decisões que afetam as suas vidas. Por outras palavras, ele não olha para o Estado nem para os mercados. Olha para as organizações dos próprios povos. Se preferir: uma política baseada nas comunidades. Penso que esse é o elemento radical do que ele propõe.
As duas primeiras partes são mais longas do que a terceira, sobre a ação. Isto é um sinal de que o mais importante é a reflexão, que não o estamos a fazer suficientemente?
Para ser rigoroso, a segunda parte é a mais longa, mas depois vem a terceira e depois a primeira. Penso que a primeira é a mais curta das três.
Mas a segunda parte, sobre o discernimento, é a maior, no fundo a minha pergunta ia nesse sentido.
A razão pela qual a segunda parte é a maior é que ele pediu para explicar muito bem o discernimento. A segunda parte é, na verdade, para ajudar-nos a praticar esta arte espiritual do discernimento. Como sabemos o que é de Deus e o que não é de Deus? Acabou por ficar a parte mais longa porque senti que ele precisava de espaço para explicar algumas das suas reflexões mais profundas sobre o modo como navegamos pelo conflito e pela tensão, que eu penso que são brilhantes e que são o fruto do seu próprio trabalho intelectual, ao longo da sua vida, do seu trabalho sobre Guardini. Nunca lhe deram verdadeiramente o espaço, enquanto Papa, para explicar o seu pensamento sobre o tema. E, depois, para o aplicar à sinodalidade, ao crescimento dos sínodos na Igreja. Tudo isso era complexo. Espero que o tenhamos tornado acessível.
Acredita, portanto, que este é um meio inédito de ter acesso ao modo como o Papa Francisco pensa?
Uma das minhas ambições para o livro era a de que ele deveria ter o espaço para explicar duas áreas do seu pensamento que, enquanto biógrafo dele, conheço muito bem — e estou convencido de que é brilhante —, mas que ele tem sido muito relutante em explanar com detalhe. Em parte porque, enquanto Papa, ele fala com o espírito da Igreja. É por isso que, no início, dizia que um livro como este permite-lhe que seja pessoal, que exponha o seu próprio pensamento sobre os temas, sem a tentação de dizer que está a apresentar o ponto de vista da Igreja. Uma dessas áreas é o trabalho da tese dele sobre como navegar pelo conflito e pela tensão, de modo a permitirmos que o Espírito Santo crie novas formas de pensamento, em vez da polarização. A segunda área, que surge na terceira parte do livro, é o seu próprio entendimento de uma política baseada nas pessoas — e como ela difere do populismo. Todos sabem que ele é um crítico do populismo, mas pude dizer-lhe, no livro, que precisávamos mesmo de perceber o que é que ele quer dizer com “o povo”. Quem é o povo, como se forma o povo, o que significa que o povo seja o protagonista do próprio futuro. Como lhe pude dar este espaço, fazendo-lhe estas perguntas, ele pôde alongar-se, como nunca tinha feito, sobre estes dois temas centrais do seu pensamento.
Falemos então da questão do populismo. Ao ler a primeira parte do livro, fica evidente que o Papa expõe, de modo muito claro, o seu ponto de vista relativamente a alguns dos tópicos mais fraturantes dos nossos tempos. A Covid-19 e os perigos do negacionismo, a luta pela igualdade de direitos, o racismo, o caso George Floyd, a crise dos refugiados, as alterações climáticas… e podia continuar. Mas há dois meses testemunhámos umas eleições norte-americanas em que os católicos mais tradicionalistas apoiaram Trump, que vai contra tudo o que o Papa Francisco apoia, e criticaram repetidamente Joe Biden com um único argumento: o aborto. Vemos o fenómeno por todo o mundo, líderes extremistas e populistas a usar argumentos do Cristianismo para atrair uma base mais conservadora. Parece-lhe que o Papa Francisco está desiludido com uma parte da Igreja?
Quando nós estávamos a preparar o livro, estava a acontecer nos Estados Unidos a campanha eleitoral e, como referiu, tinha acontecido o homicídio de George Floyd, o que permitiu ao Papa falar sobre estes assuntos. Ele nunca comenta diretamente, nunca se referiria a ninguém pelo nome. Mas penso que há muito no livro que é uma crítica muito poderosa do trumpismo e do populismo em geral — e de uma certa política baseada na guerra cultural, que tenta transformar um único assunto, neste caso o aborto, no único tema, sendo que tudo o resto é relativo a ele. Na terceira parte do livro, o Papa pronuncia-se duramente contra o aborto, mas liga-o ao modo como tratamos os migrantes e ao modo como tratamos o ambiente. Ou seja, ele coloca-o num contexto ético muito mais alargado, dizendo: se nos preocupamos com isto, também temos de nos preocupar com aquilo, porque tudo emana do Evangelho. Por isso, pode deduzir onde é que ele se posiciona em relação a essas questões. Mas penso que as páginas mais importantes do livro no que toca àquilo que me está a perguntar são aquelas da segunda parte, sobre a consciência isolada. Ele fala sobre uma condição espiritual em que as pessoas se afastam do corpo, agem contra o bem comum e desenvolvem teorias da conspiração, tornam-se paranoicas e apresentam este misto de vitimização e de justiça própria. O espírito por trás disso tem estado perfeitamente à mostra nesta última semana. A invasão do Capitólio foi uma ilustração brilhante disto. Novamente, apoiada por alguns católicos. Não sei como prefere chamar-lhes: tradicionalistas, ou rad-trads [do inglês radical traditionalism, ou tradicionalismo radical] como lhes chamamos. De qualquer modo, claro que os católicos foram apanhados nesta onda.
Não foram simplesmente apanhados na onda. Há líderes populistas a usar argumentos do Cristianismo para sustentar tudo aquilo que vai contra o que o Papa Francisco defende e atrair a base conservadora e cristã. É por isso que lhe perguntava se o Papa estará desapontado com este grande grupo de católicos.
Há pessoas como o arcebispo Viganò [antigo embaixador do Vaticano nos EUA associado aos tradicionalistas radicais que acusou o Papa Francisco de encobrir abusos sexuais], uma série de bispos nos Estados Unidos que são anti-vacinas, que alinham com as teorias da conspiração de Trump sobre as eleições roubadas. Se pergunta como é que o Papa Francisco se sente relativamente a isso, sente-se entristecido, mas penso que mais importante do que isso é que ele reconhece o que se está a passar. Ele deu por estes dias uma entrevista à televisão italiana e, quando lhe perguntaram pela invasão do Capitólio, ele disse que há sempre algo de errado quando um grupo de pessoas agem contra a democracia e contra o bem comum, mas depois continua dizendo que ainda bem que isto estoirou, pois agora podemos ver o problema como ele é e começar a curá-lo. Ele tem esta grande convicção de que o modo como o Espírito Santo trabalha é revelando-nos o que verdadeiramente está a acontecer. Ele coloca aí a esperança dele. Ao tornar-se claro o que está verdadeiramente por detrás de muitas destas atitudes e pensamentos, temos a possibilidade de o curar, porque podemos ver o problema como ele é.
E a entrada deste problema no interior da Igreja é uma preocupação para o Papa?
Se fala especificamente da Igreja nos Estados Unidos em específico, ele teve uma estratégia muito consciente desde o início do pontificado, ao nomear bispos que não são guerreiros culturais, que não são obcecados com temas únicos e que percebem a importância de evangelizar a sociedade, em vez de proteger os privilégios. Basta a olhar para o que ele faz.
Não estava só a falar dos EUA, na verdade. É óbvio que esse é um exemplo internacional de grandes dimensões, mas há exemplos na Europa e até em Portugal, em que o líder do partido de extrema-direita, que está a subir nas sondagens, diz que foi Deus quem lhe confiou a missão de mudar o país. É uma preocupação para o Papa Francisco a existência deste tipo de líderes populistas a corromper a mensagem da Igreja?
Absolutamente. É uma preocupação para ele. Se olhar para a segunda parte do livro, em que ele critica o populismo, uma das coisas que ele critica é o nacionalismo cristão, que, segundo o que ele diz, é esta ideia que os populistas têm de que estão a proteger a cultura cristã ao, por exemplo, usarem os refugiados de países muçulmanos como bodes expiatórios, ou impedirem a imigração a partir de países muçulmanos. Isso não é o Cristianismo, isso não é o Evangelho. É transformar o Evangelho numa forma de identidade tribal — algo que, obviamente, foi a batalha do próprio Jesus contra os fariseus, não foi? Ou seja, parte do trabalho do Papa passa por insistir na universalidade do amor de Deus por toda a Humanidade e por impedir tentativas de distorcer a legitimidade do Evangelho para fins francamente sectários, nacionalistas ou étnicos.
E dentro da própria Igreja? Vemos estes líderes extremistas a ganhar poder por todo o mundo com argumentos do Cristianismo. Teme que a Igreja possa sofrer o mesmo tipo de reação e o próximo Papa possa vir desses meios conservadores, ou tradicionalistas radicais?
Na verdade, não. E o motivo pelo qual digo isto é que, desde o início, estou convencido de que o pontificado do Papa Francisco representa o início de uma nova era na Igreja. É uma era que reflete a mudança da Igreja, da Europa para o mundo em desenvolvimento. O pontificado de Francisco tem sido sustentado pelo diagnóstico que os bispos da América Latina fizeram em Aparecida, no Brasil, em 2007, quando se reuniram num modelo ver-julgar-agir, para diagnosticar o mundo moderno. Penso que a visão de Aparecida nesse documento, que é o documento mais profundo produzido na Igreja Católica em qualquer lugar do mundo nas últimas décadas, vai continuar a guiar a Igreja durante a próxima geração, mesmo que o próximo Papa não seja latino-americano. Penso que será guiado por essa visão. A razão pela qual o digo com alguma confiança é que se olhar para a Igreja no mundo em desenvolvimento, ainda que possa encontrar alguns bispos conservadores e tradicionalistas, em geral, é muito mais pastoral do que ideológica. Está preocupada, primordialmente, com o sofrimento humano, com as necessidades humanas, em como exprimir a proximidade de Deus à Humanidade. Ao mesmo tempo, se olhar para a reforma que o Papa Francisco tem feito do colégio dos cardeais, percebe que a mudança mais interessante foi a nomeação de bispos e cardeais que estão nas margens da Igreja. Não apenas do mundo, mas da Igreja. Escolheu bispos com dioceses muito pequenas, às vezes com uma população católica muito pequena, em zonas de guerra ou nas fronteiras do conflito interreligioso. A escolha consistente por Francisco desses homens — a que no meu livro O Pastor Ferido chamo “bispos pequeno David”, porque é como na Bíblia, o escolhido não era o que estava na fila da frente — vai transformar a dinâmica do próximo conclave. Vai forçar o conclave, os cardeais vão ter de se focar muito mais em situações concretas da Humanidade, em vez de se embrenharem em questões institucionais e ideológicas.
Ou seja, haverá mais cardeais que pensam como o Papa Francisco.
Resisto ligeiramente a essa ideia, porque penso que ele não está interessado em nomear bispos que pensem como ele. Cada Papa é diferente — e o próximo Papa vai ser diferente de Francisco. Mas se, quando diz pensar como ele quer dizer que são fundamentalmente pastorais, missionários, não envolvidos em guerras culturais nem na nostalgia por uma Cristandade perdida, que entendem que a proclamação do Evangelho tem de ocorrer num contexto missionário, que a Igreja já não pode evangelizar pela cultura e pela lei, mas pelo testemunho e pela ação, nesse sentido concordo.
As mulheres na Igreja… mudança que pode durar décadas
Em certo ponto do livro, o Papa diz que países com mulheres presidentes ou primeiras-ministras lidaram melhor com a pandemia. Creio que sabe onde quero ir com esta pergunta. A mera constatação deste facto não devia abrir a discussão dentro da Igreja sobre a capacidade das mulheres para liderar? Ele desvia a resposta para os exemplos das mulheres fortes no Evangelho ou para o erro de clericalizar as mulheres. Mas porquê? Tudo o que as mulheres fazem na Igreja pode ser feito por homens, mas o oposto não é verdade.
Percebo isso. Penso que, na verdade, o que ele está a fazer é a abrir precisamente uma discussão sobre o papel de liderança das mulheres na Igreja. É exatamente isso que ele está a fazer. O espaço que ele está a abrir é interessante. Frequentemente, esta questão sobre a liderança das mulheres na Igreja resume-se a uma velha polarização: de um lado, os tradicionalistas que dizem que nada pode mudar, que a estrutura é eterna e se a mudamos implodimos tudo; e do outro lado uma crítica mais liberal e feminista, que diz que enquanto as mulheres não forem ordenadas no sacerdócio não podemos levar a Igreja a sério no assunto da igualdade de género. O que Francisco diz neste livro é: precisamos de mais liderança feminina na Igreja do que temos hoje e eu, enquanto Papa, tenho vindo a integrar cada vez mais vozes femininas no alto nível do Vaticano. Com vários exemplos disso. Ele dá um argumento interessante: o objetivo disto é permitir às mulheres que desafiem aquilo que são, muitas vezes, estruturas muito clericalistas. Desafiar o pensamento na liderança da Igreja. Quando ele diz que há um perigo em clericalizar a voz das mulheres é que se não se permitir às mulheres que tenham a sua voz distinta, os seus contributos distintos, então elas rapidamente se tornariam parte da mesma estrutura clericalista.
Mas elas não têm acesso. Ele dá uma série de exemplos de subsecretárias na Secretaria de Estado — mas uma mulher nunca poderia ser a Secretária de Estado do Vaticano.
Verdade. Vou responder à sua pergunta sobre o sacerdócio, mas é preciso entender este espaço que ele está a abrir. Ele diz que as mulheres já estão a liderar a Igreja de vários modos. Na Amazónia, por exemplo, há mulheres a liderar comunidades eclesiais inteiras, onde não existe padre, por exemplo. Elas lideram enormes organizações dentro da Igreja. Temos de reconhecer essa liderança. Se me diz: bom, mas elas não são padres, então não são verdadeiras líderes, isso é clericalismo. Na verdade, parte do problema neste debate é que nós confundimos o sacerdócio e a liderança. No entanto, ainda temos a questão: porque é que as mulheres não podem ser padres? Essa pergunta não vai desaparecer. João Paulo II foi muito claro no assunto, fechou a discussão, o que significa que, pelo menos durante a próxima geração, essa não vai ser uma opção.
Mas porque é que é clericalismo dizer que se as mulheres não são padres não são verdadeiras líderes? Pode uma mulher ser a líder da Igreja? Não. Porque não pode ser padre, logo não poderia ser Papa. Essa é a pergunta para muitas pessoas: se me diz que há subsecretárias que ocupam cargos intermédios, mas nunca poderiam ser Secretárias de Estado ou Papas…
Não é verdade que as mulheres não possam liderar departamentos do Vaticano. Podem. Por exemplo, o líder do dicastério das comunicações é um leigo, chamado Paolo Ruffini, que poderia igualmente ser uma mulher. Temos uma mulher à frente dos Museus do Vaticano. Temos mulheres, como ele diz, que estão no Conselho para a Economia, que está encarregada das finanças do Vaticano. Mas é verdade que as chefias de determinados dicastérios estão reservadas aos padres, portanto excluem as mulheres. Mas a exclusão aí não é de mulheres, é de leigos. Por exemplo, a Congregação para os Bispos e a Congregação para o Clero, que por terem jurisdição sobre o clero obrigam à ordenação.
Lá está. Não há nenhum cargo na Igreja que esteja excluído aos homens, mas há vários que são excluídos às mulheres. Isto não é exclusão?
A liderança de ordens religiosas femininas está excluída aos homens.
Bom… e acontece o mesmo com as masculinas. O ponto é o mesmo: na Igreja em geral é isto que acontece. E a minha pergunta de fundo é essa. Não é um sinal de que há exclusão na Igreja?
Há exclusão de mulheres na liderança da Igreja, sim. E penso que é isto que o Papa está a tentar corrigir. Nunca conseguiremos fugir da pergunta de porque é que as mulheres não podem ser padres. Não estou a tentar evitar a questão. Estou apenas a assinalar que existem grandes áreas de liderança dentro da Igreja que não dependem da ordenação e que precisam de ser abertas aos leigos no geral e às mulheres em particular — e esse é o espaço que Francisco está a abrir. Ele também fez uma coisa muito importante: tornar claro que as mulheres podem ser leitoras e acólitas, ou seja, não há nada que impeça as mulheres de estarem no altar. Há também uma discussão, como sabe, sobre as diaconisas. Ele já nomeou duas comissões para para olharem para toda a questão do diaconado feminino. Por outras palavras, são coisas que estão ativamente a ser feitas e estudadas pelo Papa, que têm necessariamente de acontecer antes de a Igreja sequer começar a pensar em reverter a tradição da ordenação masculina — e nem sei se alguma vez isso acontecerá, porque a tradição da Igreja tem sempre sido um sacerdócio masculino. Mudá-lo obrigaria a um grande concílio ecuménico, do género do que aconteceu no Concílio Vaticano II, que teria de ser preparado por várias décadas de um consenso crescente dentro da Igreja sobre o assunto. Tendo em conta a universalidade da Igreja, que está presente em tantos lugares e culturas diferentes, penso que ainda estamos tão longe disso ao ponto de a discussão ser puramente abstrata. Como deve imaginar, já tive esta conversa com imensa gente. Estamos tão longe disso. A diferença do Papa Francisco é que, apesar de ainda estarmos muito longe de começar a pensar na ordenação de mulheres, isso não nos deve impedir de, ativamente, começar a abrir os 99% de cargos de liderança na Igreja que podem e devem ser abertos aos leigos e às mulheres em particular.
Ou seja, é um modo de começar a discussão e de permitir às mulheres que tenham voz para mudar a liderança da Igreja a partir de dentro.
Exatamente. É uma questão de dar às mulheres cada vez mais cargos de liderança na Igreja — e isso irá mudar a Igreja. É esse o ponto de Francisco. O grande inimigo aqui é o clericalismo. O clericalismo é a ideia de que o sacerdócio é uma espécie de lugar privilegiado, uma espécie de elite. Essa é a mentalidade que tem de mudar e o Papa Francisco declarou guerra ao clericalismo desde o início do pontificado.
O escândalo dos abusos sexuais
Outro dos assuntos em que ele declarou guerra ao clericalismo foi o abuso sexual de menores. Aí a proteção do clero foi evidente durante décadas. O Papa volta ao assunto dos abusos sexuais no livro…
A análise que ele faz dos abusos sexuais na Igreja é muito semelhante, por exemplo, a porque é que temos abusos sexuais no movimento #MeToo? É a mesma mentalidade de privilégio e de direitos.
Pessoas que pensam que não podem ser acusadas, julgadas ou condenadas.
Porque sentem que, de algum modo, são bons, especiais ou privilegiados. Não vêem o seu próprio pecado. É uma espécie de cegueira.
A cimeira de 2019 foi decisiva para a Igreja começar a mudar o modo como aborda o problema. Em vários países do mundo a Igreja está a adotar novas regras, Portugal fê-lo recentemente. Como é que o Papa avalia o momento atual, dois anos depois da cimeira?
Quero ser claro sobre a cimeira. Foi um passo muito importante, mas não foi o início da reforma de Francisco nesta área. Ele tem sido muito ativo desde o princípio do pontificado na abordagem aos abusos. A cimeira foi importante para ajudar particularmente os bispos do mundo em desenvolvimento — nomeadamente de África e da Ásia, onde tem havido muito negacionismo à volta disto e onde os bispos dizem que se trata de um problema do primeiro mundo. Uma parte do propósito da reunião foi radicalizá-los. Transformá-los em cruzados. O modo de o fazer, e isto é muito típico de Francisco, foi obrigá-los a ouvir horas e horas de testemunhos terríveis de vítimas de abuso, que os deixaram à beira das lágrimas, muito abalados. Foi só depois de terem mudado as mentalidades que o Papa Francisco introduziu leis — Vox Estis Lux Mundi é a nova lei. Porque é que ele não introduziu estas leis antes? Porque sabe que podemos ter todas as leis, mas se a mentalidade não mudar as leis não servem para nada. Em primeiro lugar, ele procura uma conversão de mentalidades; depois, introduz as leis para suportar essa mudança.
E onde estamos hoje nesse processo?
Não sei. Penso que tem havido muito progresso neste assunto. A quantidade de legislação, de envolvimento ativo em cada nível da Igreja, tem sido enorme. Tinha de ser. Penso que estamos num lugar muito diferente de onde estávamos em 2013, mas claro que é um caminho em progresso. Parte do que a Igreja tem de continuar a fazer é ouvir as vítimas que se chegam à frente, muitas vezes ao fim de várias décadas, e precisam de ser ouvidas e escutadas. A Igreja está sempre a procurar aprender com a experiência das vítimas.
O livro acaba com um apelo à ação no sentido do desenvolvimento de um mundo focado nas pessoas. A dada altura, temos de nos perguntar: a pandemia da Covid-19 é mesmo um ponto de inflexão para a Humanidade? Depois desta crise, será mais fácil seguir este caminho rumo a uma sociedade centrada nas pessoas?
Essa é a grande questão. Penso que Francisco diz no início do livro que estamos num momento de limiar. Todas as grandes crises — guerras, pandemias, … — mudam-nos sempre. Podem mudar-nos para melhor ou para pior. Mas nunca seremos os mesmos depois. Não creio que Francisco seja um otimista no sentido em que não creio que ele assuma que as coisas vão melhorar. No livro, ele diz algumas vezes que está preocupado com a tentativa, por parte de alguns, de simplesmente regressar às coisas como elas eram antes. Ele sabe que a mudança é difícil e é um desafio. Mas penso que ele coloca a esperança dele — e diria esperança em vez de otimismo — no que a crise revelou sobre os valores que sustentam a nossa atual organização social, política e económica. Penso que podemos ver, no modo como as pessoas responderam, por exemplo, à forma como os idosos são tratados, ou às quantias pagas aos nossos cuidadores, que tratam de nós. Essas coisas tornaram-se claras na pandemia e as pessoas estão a clamar por mudança, por isso há aí esperança. O outro fator em que ele vê esperança são os movimentos populares de protesto contra o abuso da dignidade, contra a falta de respeito pela dignidade humana ou, positivamente, movimentos que procuram a dignidade das pessoas, o acesso à terra, ao trabalho e ao teto. Ele vê esperança nesses movimentos. Não espera grandes coisas do Estado, não espera grandes coisas dos políticos, mas vê que há uma exigência popular de mudança que tem potencial para transformar o nosso futuro.
Recentemente, circulou o rumor de que o Papa Francisco iria resignar no final de 2020, e parece que isso se baseou na distorção de palavras ditas por si há alguns anos. Mas a questão de fundo continua atual: acha que depois de Bento XVI a resignação vai tornar-se a norma para os papas? Francisco vai resignar?
Sobre as fake news, escrevi recentemente um artigo sobre isso, a contar a história de como esse artigo do Daily Express surgiu. Foi uma grande aprendizagem para mim. Também sou jornalista e nunca tinha percebido até que ponto isto pode chegar. Isto foi click-bait, nunca ninguém falou comigo, inventaram uma citação. Para responder à sua questão: sempre disse que Francisco consideraria a renúncia, e a razão pela qual o disse com confiança é que ele próprio já disse que a renúncia de Bento XVI tinha mudado para sempre a instituição do papado. Ou seja, nenhum Papa vai voltar a assumir que deve continuar. Isso significa que cada Papa terá de discernir se deve afastar-se ou não. Há muitos critérios para esse discernimento e acredito que vão ser diferentes consoante os papas. Mas penso que todos percebem que há um momento em que fisicamente e mentalmente é apropriado que o Papa se afaste do cargo. Sempre acreditei que ele não teria medo de tomar essa decisão quando chegasse o momento. Também disse, particularmente ao longo do último ano, que não vejo qualquer sinal de que isso aconteça nos próximos tempos, por três motivos. O primeiro é que o seu programa de reforma só agora está verdadeiramente a implementar-se. Demorou mais tempo do que ele achava. Ele pensou inicialmente num plano de cinco anos, que se tornou num plano de sete anos e a Covid-19, de alguma forma, adiou-o. Mas é possível sentir que o ritmo da reforma está a acelerar. O segundo é que a crise da Covid-19 voltou a dar energia à missão do pontificado. Ele claramente considera que o seu papel agora é ajudar a guiar o povo de Deus através deste momento de limiar. E o terceiro motivo é muito direto e triste: ele nunca equacionaria renunciar enquanto não sepultar Bento XVI. Esse dia triste irá chegar, e será um momento muito significativo: será a primeira vez na história que um Papa sepulta outro Papa. Estou certo de que ele nunca equacionaria a renúncia antes desse momento. São os três motivos pelos quais não acho que a resignação do Papa Francisco vá acontecer em breve. Mas insisto que, se ele sentisse que havia chegado o momento, não teria medo de tomar essa decisão.