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Mário Soares chamava-lhe “o livro dos livros” e utilizou-o como poderosa arma política contra o regime do Estado Novo na sua mais condensada e francesa versão: Le Portugal Baillonné (1972). São várias as histórias por detrás de Portugal Amordaçado, que o programador cultural e escritor José Manuel dos Santos organizou naquele que é o Volume 1 da coleção Obras de Mário Soares. Uma dedicatória de Soares para Marcello Caetano, uma carta a agradecer o livro de Francisco Sá Carneiro, então deputado descontente da ala liberal, ou um agradecimento de António Spínola um mês depois do 25 de Abril de 1974 são alguns dos inéditos que constam de mais de 1460 páginas, divididas em dois volumes.
José Manuel dos Santos recorda ao Observador que o livro era chamado pelo historiador Oliveira Marques como “a primeira história da oposição” ou por Eduardo Lourenço como “o romance da nossa geração”. Depois de, no volume zero, ter publicado As Ideias Políticas e Sociais de Teófilo Braga, o programador cultural decidiu dedicar o primeiro volume ao livro que “Mário Soares pensou atualizar muitas vezes”. E promete continuar, nos próximos anos, a revelar inéditos. Este volume é apresentado na Gulbenkian dia 7 de dezembro, dia em que Soares faria 99 anos.
A “cereja no topo do bolo”, lá mais para o fim da coleção, são as notas em cadernos (“uma espécie de diário”) e também a ficção do “escritor” Mário Soares que tinha no seu espólios contos e até um romance, intitulado de Concordata.
José Manuel dos Santos lembra que “Soares escrevia todos os dias”, havendo ainda muitos documentos por explorar. Para já, ficam conhecidos mais alguns, que o coordenador disponibilizou ao Observador, de um “menchevique” (Henry Kissinger, por exemplo, chamava-o de Kerensky) que diz que podia ter sido escritor, como o pai profetizou, se “não tivesse tanta facilidade em escrever”.
A dedicatória ao “inimigo” Marcello Caetano: “Admito que lhe possa desagradar”
Mário Soares tinha sido aluno de Marcello Caetano na faculdade de Direito e, não obstante as profundas divergências políticas, reconhecia a competência do professor. Após ser deportado para São Tomé e Príncipe, Soares pediu mesmo um parecer a Caetano sobre a ilegalidade da sua deportação. O antigo professor nunca o fez e dificilmente o faria: quando a carta chegou a Portugal, Salazar já tinha caído da cadeira e o antigo professor de Soares estava na calha para a sucessão.
Marcello Caetano torna-se então presidente do Conselho (o equivalente ao primeiro-ministro) e, apesar de Soares ainda ter tido alguma esperança, cedo percebeu que a chamada “primavera marcelista” não queria abrir o país à democracia, mas apenas mudar para que tudo ficasse na mesma.
Quando lança o livro Le Portugal Baillonné, Soares — que está exilado (em Paris, embora acabe de escrever o livro em Itália) — vai a Madrid encontrar-se com Maria Barroso e a filha Isabel a Madrid para lhes dar exemplares para levarem para Portugal. Um deles segue para Marcello Caetano e tem a seguinte dedicatória de Mário Soares, manuscrita:
Para o professor Marcello Caetano — este livro, que embora admita que lhe possa desagradar, desejo que conheça por meu intermédio. Com a esperança de que chegará o dia, nesta terra que nos é comum, em que os adversários não tenham de se comportar, necessariamente, como inimigos. Mário Soares, Madrid, 29 de Abril de 72″.
Na página do livro enviado para Marcello Caetano é possível ver a dedicatória manuscrita de Mário Soares:
Mário Soares, que já cultivava importantes ligações com o Vaticano — muito por via do cardeal Casaroli, que mais tarde viria a ser secretário de Estado da Santa Sé — percebe que Roma escolhera um patriarca mais “liberal” para suceder a Cerejeira.
Soares decide então também enviar um livro ao novo patriarca, António Ribeiro, com uma mensagem mais simples: “Ao Senhor Patriarca de Lisboa — D. António Ribeiro — homenagem respeitosa do Mário Soares. Madrid, abril de 1972“. E obtém resposta: “Com os respeitosos cumprimentos, António Ribeiro Patriarca de Lisboa agradece o livro recebido, através do Dr. Raúl Rêgo, que leu com muito interesse”.
A resposta de Sá Carneiro e a dedicatória a Pinto Balsemão
Mário Soares estava atento à Ala Liberal que, à altura de saída do livro, já estavam em grande conflito com o regime, mas ainda não havia renúncias — como viriam a fazer no ano seguinte, Francisco Sá Carneiro e Francisco Pinto Balsemão. Do volume agora publicado, não consta o envio da dedicatória para Sá Carneiro, mas é divulgada a resposta do então deputado da Ala Liberal.
Francisco Sá Carneiro começa por agradecer a “simpática dedicatória” e diz que apreciou “muitíssimo” o livro, que descreve como “testemunho lúcido e franco sobre a nossa situação inalterada, só tenho pena de não ter lido aquilo que, segundo se diz, teve de ser suprimido dado tratar-se da edição francesa”. Sá Carneiro tinha razão: uma parte do livro foi retirada da edição francesa, precisamente por as personagens nada dizerem aos também destinatários internacionais. Em 1974, na primeira edição portuguesa do livro, Sá Carneiro já tem oportunidade de ler toda a obra.
Mas voltando à carta do deputado Sá Carneiro, de 1972, este queixa-se a Soares, que está exilado no estrangeiro, da situação do estado do regime:
Foram novidades, tristes novidades, muitos dos factos narrados no seu corajoso livro, o que veio avivar-me a consciência da situação de alheamento e falta de informação em que somos forçados a viver.”
Sá Carneiro lamenta ainda o facto de ainda não conhecer Soares pessoalmente, o que diz esperar acontecer em breve:
Tenho pena de que nunca nos tivéssemos encontrado, mas espero ter oportunidade de lhe apresentar pessoalmente os agradecimentos que aqui lhe renovo.”
Na carta enviada a Soares, Francisco Sá Carneiro , de 20 de junho de 1972, este conta que já estava a meio do livro quando recebeu um exemplar oferecido pela editora:
Apesar de não se conhecer a resposta de Francisco Pinto Balsemão a Mário Soares, o livro tem a dedicatória enviada pelo socialista ao então deputado da Ala Liberal. É curta e, entre travessões, não deixa de dizer que há matérias de fundo que os separam. “Não obstante algumas divergências importantes”, lê-se. Percebe-se, igualmente, que o livro já foi enviado de Paris (a Marcello Caetano enviou de Madrid):
Ao Dr. Francisco Balsemão — não obstante algumas divergências importantes — com a consideração e a cordialidade do Mário Soares. Paris, maio de 72.
Como explica José Manuel dos Santos, Soares envia o livro a todas as pessoas que achava “interessantes”. Desde amigos próximos (Salgado Zenha — o “querido Xico”), a companheiros de causas (Manuel Alegre, que lhe responde de Argel e lhe confessa a “admiração”) ou outros exilados (como José Mário Branco, que estava em Paris, e quando envia uma carta a agradecer o livro, aproveita também para agradecer um recorte do Jornal “República” que Soares lhe tinha entretanto enviado).
A carta do “ami” Miterrand, que ataca “ditadura asfixiante”
Mário Soares enviou a primeira e francesa versão do Portugal Amordaçado para várias figuras internacionais, desde logo para François Miterrand, que já então era secretário-geral do Partido Socialista Francês e, 10 anos depois, chega a presidente de França. A forma como Soares se referia ao amigo, deu uma das frases mais batidas da política portuguesa: “Mon ami Miterrand“.
Logo em maio de 1972, Miterrand responde a Soares para lhe dizer que ficou “muito sensibilizado pelo envio do livro” e promete que vai ler: “Vou ler com todo o interesse que tenho pelo seu belo país, lamentando que esteja, há demasiados anos, entregue a uma ditadura asfixiante”.
O cartão de Spínola e a edição de 1974
Mário Soares publica o livro pela primeira vez em Portugal em 1974, pois antes estava, naturalmente, impedido de fazê-lo. Uma das pessoas a quem envia o livro é a António Spínola, que na altura era o presidente da Junta de Salvação Nacional. O general do monóculo responde com um cartão de visita que em que chama Soares de “incansável lutador”:
António Spínola agradece sensibilizado a amável oferta do “Portugal Amordaçado”, que bem reflete o alto sentimento patriótico de um incansável lutador pela causa da Democracia”.
Na troca de correspondência sobre a versão de 1974 — que consta do Volume publicado pela Casa da Imprensa Nacional, coordenado por José Manuel dos Santos — está também uma carta pouco simpática de Snu Abecassis para Mário Soares. A então editora estaria em conversações com Soares para publicar a edição portuguesa de Portugal Amordaçado, mas um dia liga para Maria Barroso e uma “senhora que atendeu o telefone” terá dito que o livro já estava a ser publicado pela Arcádia. E pergunta, indignada, na carta que envia a Soares:
Talvez pareça ridículo eu estar a escrever estas linhas! Mas não foi possível durante a semana que passou mandar alguém telefonar para me informar da sua decisão?”
O centenário e o (muito) que falta conhecer sobre Soares
A obra que agora é publicada tem também a história à volta do livro, que demorou quatro anos a escrever. Tem dezenas de documentos inéditos e ainda, por exemplo, as capas de todas as edições do livro. A apresentação da obra será na próxima quinta-feira, dia 7 de dezembro, dia em que Soares faria 99 anos, e contará com a presença do Presidente da República e do primeiro-ministro.
Será também o lançamento para o centenário de Mário Soares, que se realiza precisamente um ano depois. Até lá, ainda devem ser lançados mais três volumes de obras de Mário Soares. A Comissão do Centenário é igualmente coordenada por José Manuel dos Santos — que foi assessor de Soares em Belém entre 1986 e 1996 — e conta com os filhos João e Isabel. Além disso, da comissão fazem parte figuras como Maria de Lurdes Rodrigues, Isabel Alçada, José Amaral, Teresa Calçada, Paulo Caramujo, Filipe Guimarães da Silva e Pedro Marques Gomes.
As celebrações do centenário do nascimento de Soares estará ligadas às comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974 e vão estender-se até 2025, ano em que se comemora o centenário de Maria Barroso. Nos próximos anos, muitos inéditos de Soares vão ler a luz do dia. “Estamos a fazer investigação, que demora muito tempo. Mas há muita coisa. Só as cartas culturais são 2 mil cartas que já temos inventariadas só de portugueses, de Eugénio Andrade a Sophia, de Natália ao Cesariny, da Beatriz Costa ao Herman José, da Adília Lopes ao Siza Vieira, não há ninguém que não tenha escrito a Mário Soares”, conta José Manuel dos Santos. Além disso, há ainda “milhares de cartas políticas, nacionais e internacionais”. Muito sobre a vida de Soares ainda está para descobrir.