Índice
Índice
Ricardo Sá Fernandes não tem dúvidas: Ana Gomes é a pessoa ideal para unir a esquerda numa corrida contra Marcelo Rebelo de Sousa nas Presidenciais de 2021. Mas não deixa de ter esperança no atual Presidente para travar a entrada em vigor da despenalização da eutanásia, aprovada na generalidade na Assembleia da República. Apoiante da eutanásia, o advogado não aceita que uma lei estruturante como aquela seja aprovada à pressa e sem a legitimidade de todos os partidos deixarem claro nos respetivos programas eleitorais qual é a sua posição sobre a matéria.
Quanto ao confronto no Livre entre a direção e a deputada única Joacine Katar Moreira, Sá Fernandes não tem ilusões sobre os prejuízos causados ao partido. Confessa ter ponderado a saída do Livre, mas optou por ficar, porque continua a acreditar no partido que nasceu para unir a esquerda. Mas não desiste de apoiar Joacine — que diz ter sido vitima de um “bullying mediático absolutamente inusitado e chocante.” São estes os grandes temas da grandes entrevista de Ricardo Sá Fernandes ao programa Sob Escuta da Rádio Observador que pode ouvir na íntegra aqui:
“Apoio Ana Gomes como candidata à Presidência da República”
Marcelo é um candidato inevitável, à direita André Ventura já anunciou a sua candidatura. A esquerda precisa de ter um candidato presidencial? Será Ana Gomes este nome?
Já comuniquei à Ana Gomes que, se ela se candidatar, serei com certeza apoiante dela. A Ana Gomes é um valor da democracia portuguesa, foi uma grande diplomata ligada a um dos feitos mais importantes da nossa democracia que tem a ver com o caso de Timor. É uma mulher corajosa, de bons princípios e séria. Não tenho a mais pequena dúvida de que seria bom que a esquerda se unisse em volta da sua candidatura.
O Livre não tem que ter um candidato presidencial, então?
Não. O Livre, de que faço parte, decidirá como entender. Independentemente do que o Livre decidir, o meu apoio será seguramente para Ana Gomes.
Durante o conflito entre a direção do Livre e Joacine Katar Moreira sempre apelou a um entendimento. Já passou quase um mês desde a decisão de retirada de confiança. Considera que o partido errou nesta decisão?
Sim, errou. Um partido que nasce para unir a esquerda não pode ao fim de um mês ou dois meses romper com a única deputada que tem por razões que não são substanciais, são procedimentais. Foi um ato politicamente errado, de grande imaturidade política, mas agora as coisas estão como estão. Este processo revelou-se irreversível, a rutura deu-se. Foi para mim muito traumatizante do ponto de vista político. Fiquei muito entristecido, fiz o que pude para evitar que tivesse acontecido.
Ponderou sair do Livre e continua a apoiar Joacine Katar Moreira
Ponderou deixar o partido, desvincular-se?
Ponderei, mas acho que não é muito o meu género. Neste momento, a minha posição é a de apoiar o Livre a reerguer-se das cinzas e apoiar a deputada Joacine. O Livre é útil à democracia portuguesa e a Joacine Katar Moreira pode fazer um bom mandato enquanto deputada independente. Espero que ambos consigam singrar.
Joacine foi uma vítima?
A candidatura da Joacine foi importante para o país também pelo que pode representar. Com certeza que Joacine cometeu erros, como cometem os políticos em Portugal e em todo o mundo. Acho que foi vítima de um bullying mediático absolutamente inusitado e chocante. Era o penteado, era porque na entrevista ao Expresso apareceu uma fotografia dela em biquíni com 16 anos, era porque não entregou uma proposta da nacionalidade a tempo por um motivo que não lhe era imputável, como veio a ser reconhecido, era porque uma pessoa no dia das eleições estava com a bandeira da Guiné. Mesmo aquele grito dela no Congresso (“é mentira, é mentira”)… foi excessivo, com certeza que foi. Descontrolou-se. Mas já vi o primeiro-ministro descontrolar-se com as mesmas palavras durante a campanha eleitoral. E foi o fim do mundo? Achei uma coisa absolutamente vergonhosa o bullying de que ela foi vítima.
Por culpa da comunicação social?
Não, Joacine foi vítima de um conjunto de circunstâncias. Aliás, espero um dia poder fazer a história do que aconteceu desde que ela foi eleita até agora ao último dia para se perceber a forma como tudo o que ela fazia era matéria de crítica.
O partido não a defendeu como seria de esperar ou como devia ter feito?
A partir de certa altura o problema passou a ser também dentro do partido. Houve um problema geral. Com certeza que a Joacine também tem responsabilidades, com certeza que também cometeu erros, não estou a dizer que não os cometeu, mas ela é uma pessoa sozinha. O partido devia ter tido outra capacidade de reflexão, de encaixe, de maturidade para a poder também defender, porque aquilo que aconteceu foi um massacre. Havia forças políticas muito interessadas em acabar com o Livre e com a Joacine, não vamos ter ilusões.
O partido cedeu a esses interesses?
O partido não teve noção da gravidade política disto. Agora que isto já passou, desejo felicidades ao partido de que eu faço parte. Faço parte do Conselho de Jurisdição do partido, estou empenhado em ajudar a que o partido consiga recuperar da situação em que está, mas não vou abandonar a Joacine. Vou estar ao lado dela sempre que aquilo que ela fizer justifique o meu apoio. Não é um apoio incondicional, mas entendo que ela tem condições para fazer um bom mandato e acredito que o Livre possa recuperar. Que é muito difícil é, isto foi de facto muito frustrante.
“As primárias são uma matriz do Livre. Devem continuar”
Sendo parte de um dos órgãos nacionais do partido, ficou fragilizado por ter afirmado publicamente e defendido durante o Congresso que o partido devia ter ficado ao lado de Joacine?
Não, não acho que fico nada fragilizado. Pelo contrário, o partido só tem a ganhar por cada um dos seus membros dizer o que pensa e de voz alta e fundamentada. Se sentisse ou vier a sentir que a minha posição é um estorvo no partido, eu afasto-me porque não estou na política por qualquer ambição pessoal. Neste momento, entendo que ainda posso ser útil.
Já depois de ser retirada a confiança política a Joacine Katar Moreira, a deputada não inscrita votou contra a descida do IVA da eletricidade, que era uma das medidas inscritas no programa eleitoral do Livre, pelo qual foi eleita. Ficou surpreendido com o sentido de votação de Joacine?
Não, acho que ela justificou muito bem a votação. Entendeu que, apesar de continuar a ser a favor dessa medida, isso podia pôr em causa a estabilidade governativa.
E optou pela estabilidade.
Optou pela estabilidade. Não foi uma decisão oportunista nem nenhuma pirueta, foi uma opção fundamentada.
Falava de reerguer o partido e sair das cinzas. Numa das moções aprovadas no Congresso, está prevista a revisão do sistema de primárias. Acha que o partido ainda vai conseguir recuperar a confiança dos portugueses?
Vai haver um Congresso estatutário e acho bem que se tente melhorar este sistema das primárias. O sistema tem insuficiências e tem que ser bem avaliado. Mas não vamos com equívocos. O problema da Joacine não teve nada a ver com as primárias, porque a Joacine foi escolhida por primárias, mas também com o apoio da direção.
Já era membro do partido há vários anos, fazia parte da Assembleia…
No Congresso anterior foi escolhida para fechar o Congresso. Portanto, havia apoio dos principais agentes do partido à Joacine. As primárias, no fundo, limitaram-se a ratificar isso.
Se não houvesse primárias, Joacine teria sido escolhida à mesma.
Precisamente. Portanto, não é um problema das primárias. Veja-se o que se está a passar neste momento nos Estados Unidos — que é a mais importante democracia do mundo, apesar do Trump e tudo o mais. E como é que são escolhidos os candidatos na América? Através de primárias. A matriz do Livre são as primárias. Agora, os sistemas têm que ser melhorados, aprofundados, corrigidos nos seus defeitos. Têm de ter mecanismos para evitar excessos, perversões, claro que sim. Vamos lá a ver se esse Congresso estatutário tem êxito nesse aspeto.
O que aconteceu pode prejudicar o partido no próximo ato eleitoral, as autárquicas?
Aquilo que aconteceu prejudicou o Livre em todas as áreas. Agora, não foi o fim do partido. O partido tem condições para, nestas eleições autárquicas e amanhã noutras, recuperar a sua influência. Estou convencido de que, sem negar o efeito negativo que perdura ainda naquilo que aconteceu relativamente a Joacine Katar Moreira, o partido tem condições para fazer coligações, como já fez e espero que consiga. O partido errou politicamente, mas o partido é um partido de gente séria com valores. Tudo isto foi politicamente frustrante e infantil, sem ofensa, mas não houve nenhuma vigarice. É uma questão de maturidade.
“Espero que o Presidente Marcelo vete a lei da eutanásia”
Falemos da questão da eutanásia. O Presidente da República deve enviar a lei aprovada pelo Parlamento para o Tribunal Constitucional?
Depende da redação final da Lei. Pode haver questões de proporcionalidade que possam ser aferidas mas não julgo que seja uma questão para o Constitucional. Tal como não foi na questão do casamento de pessoas do mesmo sexo ou do aborto. A Constituição permite as duas opções [a favor ou contra a eutanásia]. Isto não é um problema de constitucionalidade, é um problema político. Eu, que tenho uma posição de princípio a favor da eutanásia, já em 2018 escrevi aqui no Observador que não podemos legislar apressadamente. Acho inaceitável do ponto de vista político esta iniciativa porque o PS — o partido mais votado — e o PSD não falaram disto nos seus programas eleitorais. E não podiam dizer que não sabiam que se ia falar.
Em 2018, altura da primeira votação, também não tinham proposto nos programas eleitorais de 2015.
O PAN falava, mas falava só para abrir um fórum de discussão. O problema da eutanásia não é para resolver em dois anos. Se calhar uma coisa bem feita, bem estruturada, demora 10, 15 ou 20 anos. Temos de fazer uma avaliação bem feita. Não basta dizer dor insuportável, irreversível. Temos de ir ao caso concreto, fazer o estudo do que já existe noutros países para poder fazer uma legislação que não seja uma legislação de coisas gerais que depois está sempre a ser furada. Tenho dificuldade em compreender como é que na Holanda e na Bélgica milhares de pessoas são eutanasiadas todos os anos. Quando aprovei o manifesto dos 122 em 2016, julguei que isto eram meia dúzia de casos, coisas desesperadas. Em função disto, espero que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tome a atitude que eu tomaria se fosse Presidente da República: vetaria a Lei.
Vetaria?
Não tenho dúvidas nenhumas, vetaria a Lei com estes dois argumentos. O primeiro-ministro António Costa é a favor da regionalização, eu também sou. Mas ele já disse que não avançava com a regionalização porque o Presidente da República estava do outro lado e ele não queria criar um conflito. Acho um bocadinho contraditório que, sabendo que o Presidente tem outra posição relativamente à matéria da eutanásia, que não estava no programa (enquanto a regionalização estava), ele queira provocar um confronto com o Presidente da República. Acho que o PS pode ainda ter margem para recuar em relação a esta precipitação.
O Presidente deve vetar para provocar um referendo? Toda essa avaliação que faz teria como conclusão final a realização de um referendo?
Se o Presidente da República for firme e vetar, acho que o PS pode, em função da ponderação, do tal equilíbrio de interesses e valores em causa, recuar. Talvez seja bom, por exemplo, encarregar uma comissão para fazer um grande livro branco sobre esta matéria da eutanásia mas também sobre os cuidados paliativos — parece que só 30% da população é que está em zonas com direito a cuidados paliativos. Acho que só devemos legislar sobre a eutanásia quando tivermos estas duas matérias muito bem estudadas. Fazer uma grande reflexão sobre isto era uma solução de princípio justa e eu, que defendo o princípio, sinto-me dececionado pela forma apressada como este processo está a ser conduzido e espero que o Presidente da República de facto vete.
Mas a realização do referendo para si não é condição sine qua non para aprovação da eutanásia?
Pode haver debate aprofundado na mesma sem referendo. A Assembleia da República pode chegar a um consenso sem referendo ou, pelo menos, a uma maioria sólida e fundada sem referendo. Mas também pode ser com referendo. As duas coisas não são incompatíveis podendo ser cumuladas.
Bragaparques. “O corruptor lançou várias granadas contra mim, falharam todas o alvo”
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem deu-lhe razão na queixa que apresentou contra Portugal no chamado caso Bragaparques. No centro do caso está a denúncia que fez na Justiça sobre a tentativa de corrupção do seu irmão José Sá Fernandes por parte do empresário Domingos Névoa. Esta decisão atesta como é difícil o combate à corrupção em Portugal?
Estou de acordo. Este processo que durou 14 anos é muito eloquente por duas razões. Por um lado, porque foi possível demonstrar por uma única vez como quem é visado por uma ação de corrupção ao nível político pode denunciar essa corrupção e demonstrá-la de forma inequívoca. Ficou tudo gravado. Tenho muito orgulho, é o ato cívico mais importante da minha vida. Mas também é eloquente porque demonstra a que é que se sujeita quem denuncia a corrupção. Não é uma coisa específica deste senhor da Bragaparques nem de Portugal, é uma coisa internacional. Os corruptores quando são apanhados não hesitam em recorrer a tudo para abater quem os denuncia, para os aniquilar. Senti nestes 14 anos como foi dirigida contra mim uma bateria de ações, de processos, queixas na Ordem dos Advogados, ações crime por difamação. Em todas elas demonstrei aquilo que era evidente: aquilo era uma ação de corrupção que devia ser denunciada. E em todas elas eu contei com os juízes portugueses a meu lado, no sentido em que defenderam o que estava certo.
Apesar de a Lei não lhe dar poderes especiais enquanto denunciante…
Sim, mas reconheciam os factos. Mais de 20 juízes envolvidos. O corruptor lançou várias granadas contra mim, falharam todas o alvo. Mas aconteceu que, após ter sido absolvido em primeira instância do crime de gravação ilícita, o recurso foi parar a dois juízes, Almeida Cabral e Rui Rangel, que fizeram um acórdão verdadeiramente infame.
Quando Domingos Névoa o contactou para tentar corromper o seu irmão, gravou a conversa nesse seu primeiro encontro.
Gravei, gravei. Agarrei na gravação — não fiquei com cópia dela — entreguei no dia seguinte ao Ministério Público e foi com base nela que se desenvolveu o processo. Depois os juízes Almeida Cabral e Rui Rangel entenderam que o direito à palavra do corruptor era superior ao meu direito a defender-me. Essa primeira conversa era muito importante porque demonstrava que ele é que me tinha contactado — e não o contrário, que era aquilo que ele procurava dizer durante o processo. Fui condenado pelo crime de gravação ilícita por ter ajudado a justiça a apanhar um corruptor. Ontem, finalmente, foi-me dada razão e foi sublinhado que eu não tinha tido direito a uma justiça equitativa dos juízes Almeida Cabral e Rui Rangel. O que me deixou naturalmente feliz e satisfeito.
O juiz desembargador Rui Rangel é o principal arguido da Operação Lex. Neste caso também se investiga a ação do ex-presidente da Relação de Lisboa, Vaz das Neves, por alegadamente ter desvirtuado os sorteios de juízes e a ação de mais cinco desembargadores… A Relação de Lisboa está a ser posta em causa na Operação Lex?
O processo está ainda em fase de inquérito e acho que todas as pessoas têm direito à defesa e à presunção de inocência, como é sabido. Agora, se os factos que têm vindo a lume são verdadeiros, nós estamos perante uma situação gravíssima. É absolutamente imperioso que haja um apuramento destes factos no processo e o Conselho Superior da Magistratura deve fazer uma auditoria muito rigorosa à forma como se fazem as distribuições nos tribunais superiores. Há muitas histórias, muitos zunzuns — agora há suspeitas mais concretizadas, mas ainda não comprovadas. Pôr em causa a distribuição dos processos e o principio do juiz natural, admitir que há juízes que podem ser escolhidos para determinados casos em favor de determinada pessoa, se isso for verdade e se isso se comprovar, é de uma enorme gravidade. Por aquilo que tem vindo a lume, tendo-se replicado em mais que uma situação, significa que o sistema não funciona. Precisa de ser revisto com coragem e com determinação. É preciso acabar com as distribuições manuais.
Ou seja, quando o sistema informático não funciona…
É preciso ver como é que essas distribuições manuais são feitas e se não é possível eliminá-las de vez. O princípio de o juiz natural é absolutamente basilar do Estado de Direito e neste momento está sob suspeita. Espero que no processo se investigue tudo, todas as consequências, doa a quem doer. Sublinho mais uma vez: a grande maioria dos juízes são pessoas sérias, que defendem os cidadãos e os seus direitos. Mas basta que haja um, dois, três, quatro ou cinco que subsistam para poder contaminar a confiança que a justiça deve ter na magistratura.
Ficou surpreendido com a pena disciplinar aplicada pelo Conselho Superior da Magistratura a Rui Rangel e à sua ex-mulher Fátima Galante antes sequer de a acusação ter sido deduzida?
Não conheço as situações concretas nem os termos pelos quais, do ponto vista disciplinar, o juiz Rangel e a juíza Fátima Galante foram avaliados disciplinarmente. São duas coisas diferentes. A ideia de que o processo disciplinar tem que estar a aguardar o processo crime não tem, a meu ver, fundamento na lei nem é necessário. Há determinados comportamentos que podem não ter valoração criminal, mas têm valoração disciplinar.
O Conselho Superior do Ministério Público, o órgão de gestão e disciplinar da magistratura, ainda não concluiu o processo disciplinar aberto ao procurador Orlando Figueira — condenado em primeira instância pelos crimes de corrupção passiva, branqueamento de capitais e violação do segredo de justiça e com recurso pendente na Relação. Há aqui alguma dualidade de critérios?
Mais uma vez, não conheço os contornos específicos do caso. Aparentemente, e de acordo com a mesma lógica, não vejo que o processo disciplinar a esse procurador tenha que estar à espera do desfecho do processo crime. Em tese geral, o processo disciplinar valora determinados elementos disciplinares que podem não ter valoração criminal.
“Rui Pinto deve ser protegido. Prisão preventiva tão prolongada choca-me”
Já aqui falámos da proteção dos denunciantes e na ordem do dia está o caso de Rui Pinto, em que essa questão tem sido muito falada. A lei portuguesa atual permite encarar Rui Pinto como um denunciante que deva ser protegido em vez de o perseguir criminalmente por tentativa de extorsão e invasão de sistemas informáticos? E entende que a prova reunida por Rui Pinto através desses métodos pode ser utilizada no processo penal português ou é prova proibida?
São várias questões. Acho que Rui Pinto é um denunciante que num grande conjunto de áreas se move por aquilo que é o interesse público e, nessa medida, deve ser protegido. Concretamente, embora não conheça o processo em concreto, fala-se que há uma tentativa de extorsão no caso Doyen. Se houve uma tentativa de extorsão, Rui Pinto não tem que ser imune à perseguição penal. Acho que tem de responder por isso, mas tem de ser valorado todo o seu comportamento enquanto denunciante, em denúncias muito relevantes, que foram já valoradas noutros países e que em Portugal se devem valorar. Choca-me esta situação de prisão preventiva tão prolongada ao Rui Pinto. É excessiva, sem justificação. Em relação à questão da prova: a prova pode não ser utilizada mas pode ser uma base para que se recolha aquela mesma prova de uma forma legítima.
Portanto, é notícia de crime?
É notícia de crime. Acho que nesta matéria a palavra chave é equilíbrio. A justiça deve levar a que os criminosos sejam condenados, que aqueles que não são criminosos sejam absolvidos e que os direitos da defesa sejam respeitados. Muitas vezes em Portugal aquilo que acontece é que isto está desequilibrado — e ora está desequilibrado a favor dos criminosos, ora está desequilibrado a favor dos cidadãos que se querem defender. Muitas vezes, a cultura formalista da nossa vida judiciária leva a que os verdadeiros culpados consigam sair impunes e os inocentes não tenham direito à sua defesa efetiva por razões às vezes absolutamente fúteis. Por exemplo, o recurso em segunda instância é muito frágil e muito deficiente em matéria de facto.
Apoia medidas de aprofundamento de direito premial para lutar contra a corrupção
Esse excesso de formalismo está agora a ser debatido no pacote de medidas anti-corrupção que o Governo anunciou em janeiro. Por exemplo, a ministra da Justiça quer aprofundar o chamado direito premial. Por um lado, quer premiar quem denuncia crimes ao Ministério Público, permitindo dispensa de pena ou atenuação especial de pena por decisão do juiz. Por outro lado, quer facilitar confissões durante o julgamento que permitam a pena suspensa desde que exista reparação económica. O que pensa sobre estas medidas que permitem uma colaboração entre o suspeito e o Ministério Público?
Estou inteiramente de acordo. Acho que o Governo está a ser prudente em matéria de direito premial. É uma matéria de facto muito difícil, muito delicada, porque devemos efetivamente reconhecer quem ajuda a justiça, mas não podemos prejudicar a defesa das pessoas e não podemos instigar a que, por motivos perversos, as pessoas possam fazer isto ou aquilo. Temos de ser muito cuidadosos nisto. Acho que esta proposta do Governo tem de ser uma proposta prudente, sensata e que aprofunde regimes que já existem na nossa lei. Não é nenhuma invenção e ainda vão ser submetidos a estudo. Devo dizer que, nessa perspetiva, a ministra da Justiça vai no bom caminho e tem o meu integral apoio.
Outra ideia, que tem sido contestada nomeadamente pelo bastonário da Ordem dos Advogados, prende-se com uma aposta na especialização dos juízes. Considera que pode ser inconstitucional a criação de um juízo especializado não para julgar apenas uma categoria de crimes, mas sim para julgar processos de criminalidade económico-financeira, violenta ou de especial complexidade?
Sobre essa matéria ainda não tenho uma opinião completamente formada. Tenho algumas reservas. Há uma coisa que é inconstitucional: não pode haver tribunais para certas categorias de crimes. Mas a Constituição permite que possa haver tribunais de competência especializada para certas matérias — e a especialização é bem-vinda. O risco desta proposta é que, no fundo, essa competência reservada para certas matérias redunde em certo tipo de crimes e isso é que não pode ser. Encontrar aqui um balanceamento é mais difícil.
Não acha que podemos ficar aqui reféns de um preconceito do passado contra os tribunais especiais — um preconceito que tinha razão para as gerações que viveram a Ditadura mas que nada tem a ver com os tempos atuais da Democracia?
Podemos. E é por isso que não digo “não” à proposta da ministra da Justiça. Se for possível configurar um tribunal de competência especializada em função de uma matéria que esteja individualizada por razões objetivas — que não esteja ligado a uma categoria de crimes — mas é difícil fazer isso. Sobre essa matéria sou prudente e aguardo o resultado desses estudos que estão a ser feitos. Independentemente do que se passou no Estado Novo o que é certo é que a Constituição portuguesa não permite tribunais especializados para certo tipo de crimes.