Uma cajadada, dois coelhos. Mesmo que não tenha desfeito por completo o tabu sobre uma eventual aliança com o Chega, a renovada ofensiva de Luís Montenegro contra os “políticos” e “partidos” “racistas, xenófobos, oportunistas, populistas” teve uma dupla vantagem estratégica: criou a perceção política e mediática de que a porta está definitivamente fechada ao Chega (mesmo que não esteja) e provocou uma reação epidérmica em André Ventura, o que, aos olhos dos sociais-democratas, pode traduzir-se numa enorme vantagem para o PSD: o de chamar e fixar o centro e a direita moderada para e no partido.
No rescaldo da entrevista de Montenegro a Maria João Avillez, exibida a 14 de abril pela CNN, André Ventura desdobrou-se em ataques aos sociais-democratas. Em Évora, nas jornadas parlamentares do partido, que se realizaram entre segunda e terça-feira, o líder do Chega radicalizou o discurso. “O PSD decidiu prostituir-se ao PS em vez de aceitar um entendimento à direita. É a direita mais maricas dos últimos anos”, atirou Ventura, aproveitando a incursão pelo distrito de Évora para estabelecer como meta ultrapassar PSD nas sondagens em menos de um ano.
A mais de 133 quilómetros de distância, a comitiva de Montenegro, que passou uma semana a correr o distrito de Lisboa, celebrava a explosão de Ventura. “Enfiou o barrete”, ria-se um destacado dirigente social-democrata em conversa com o Observador. É fácil perceber porquê: Montenegro nunca nomeou o Chega na referida entrevista, como nunca o fizera no congresso que o entronizou, em 2022, ou, por exemplo, na entrevista que deu à SIC, a 23 de fevereiro, em que usou formulações muito semelhantes para se referir à sua política de alianças à direita; Ventura, na reação às palavras do social-democrata, assumiu as dores dos partidos e dos políticos “racistas, xenófobos, oportunistas, populistas”.
Calendário político acelera e obriga antecipar estratégia
Para o PSD, o contra-ataque de Ventura serve o propósito dos sociais-democratas: Montenegro está consciente de que só vencerá eleições se conseguir agarrar o eleitorado moderado de centro e centro-direita e afastar do plano mediático o papão do Chega. Ventura, ao reagir como reagiu, deu força à narrativa que o líder social-democrata quer alimentar, acentuou as diferenças entre os dois protagonistas e mostrou, aos olhos do PSD, a imaturidade política do Chega – mordeu rapidamente o isco de Montenegro, que depois o deixou a falar sozinho. Se os portugueses forem chamados a votar, o partido que melhores condições de governabilidade oferecer sairá beneficiado — tem sido esse, pelo menos, o padrão.
A verdade é que o calendário político parece ter acelerado e isso precipitou a estratégia do líder social-democrata – ainda em fevereiro, Montenegro repetia que só clarificaria a sua política de alianças imediatamente antes das eleições legislativas — com data marcada para 2026. A verdade é que, até lá, o PSD terá de enfrentar umas eleições europeias de desfecho incerto, mas não só: pode mesmo ter de se atirar de cabeça para umas legislativas antecipadas no segundo semestre de 2024 se Marcelo usar a bomba atómica — e esta hipótese é cada vez mais plausível.
Aliás, na mesma entrevista à CNN, Montenegro admitiu pela primeira vez que poderá ficar à frente do partido mesmo se perder as eleições europeias, definindo para si próprio uma bitola muito baixa: “Se tiver uma catástrofe eleitoral, saberei tirar consequências disso. Mas não vou ter, nem o PSD”, sublinhou. Ora, apesar de serem umas eleições difíceis, é muito provável que o PSD consiga superar o mínimo olímpico conseguido por Rui Rio em 2019 e crescer a partir daí – algo que dificilmente poderia ser considerado o tal cenário-catástrofe teorizado por Montenegro. Sobretudo se, em cima disso, o PS mergulhar numa crise que precipite o fim do Governo.
Ora, se todo o ciclo se está a precipitar, e se a perspetiva de uma dissolução no segundo semestre de 2024 é, mais do que nunca, uma hipótese considerada por Marcelo Rebelo de Sousa, importa também carregar nas linhas vermelhas em relação ao Chega e começar a ensaiar o apelo ao voto útil à direita. De resto, os sociais-democratas vão-se divertindo com o desnorte de Ventura. Mesmo depois de ter chamado “direita mariquinhas” ao PSD e de ter dito que o partido se tinha “prostituído” ao PS, Ventura foi a Belém e saiu de lá satisfeito com o reconhecimento de que Marcelo Rebelo de Sousa “não será obstáculo a qualquer tipo de participação governamental por parte do Chega”.
O mesmo Ventura que veio afirmar que o seu grande objetivo era ultrapassar um PSD que desconsidera em absoluto, apareceu em público a dizer que era “muito importante” que o Presidente da República tivesse deixado claro daria o ‘ok’ a uma solução desse género. Para os sociais-democratas, André Ventura não está a conseguir adaptar-se ao momento atual, despir a pele de partido de protesto, fugir às cascas de banana do PSD e assumir o perfil de partido de poder.
O discurso de Ventura tem balançando desde o final de janeiro. Nessa altura, o próprio e os mais destacados dirigentes do Chega passaram os três dias do seu congresso a negociar publicamente lugares de governo com o PSD, a suavizar o discurso e a vender uma imagem de moderação. Daí para cá, Ventura parece ter entrado noutro ciclo à boleia dos acontecimentos que foram surgindo.
Desde alimentar a tese de terrorismo a propósito do ataque ao Centro Ismaili, defender uma política de imigração musculada e em função de determinadas nacionalidades, somar episódios de confrontação na Assembleia da República até agendar uma manifestação contra a vinda de Lula da Silva a Portugal, repetindo o slogan dos que se opõe ao Presidente brasileiro: ″Lugar do ladrão é na prisão”.
Em todos estes momentos, Montenegro aproveitou para se demarcar de Ventura. “Aqueles que [misturam posições de Lula com relação com Brasil] não estão à altura de assumir cargos de responsabilidade na democracia portuguesa”, atalhou o líder social-democrata. Antes, no caso concreto do ataque ao Centro Ismaili, Hugo Soares, secretário-geral do PSD e braço direito do líder, aceitou debater com o presidente do Chega na CNN, uma espécie de aquecimento para o que pode ser a próxima campanha para as legislativas. O tom – truculento do início ao fim – foi celebrado no interior do partido como uma oportunidade conseguida de marcar a diferença num tema delicado como a imigração.
Já a propósito da TAP, depois de Ventura desafiar mais uma vez o PSD a apresentar uma moção de censura, Montenegro carregou nas tintas. “PS e Chega cada vez mais juntos. Mostram ambos impreparação, ligeireza e imaturidade. Anunciar uma moção de censura com seis meses de antecedência é tão aberrante como ter nacionalizado a TAP para depois privatizar. Um bom Governo e uma boa oposição não são isto”, escreveu o líder social-democrata no Twitter.
Marcelo dá uma ajuda e passa para golo
O empurrão dado por Marcelo Rebelo de Sousa esta semana também ajudou. Na véspera de receber Montenegro, no encontro de terça-feira, e depois de uma semana particularmente tensa entre os dois, o Presidente da República fez questão de se referir oficialmente a Montenegro como “líder da oposição” na nota que anunciava a audiência em Belém. Foi a primeira vez que o fez – até ali, Marcelo referia-se sempre a Montenegro como “presidente do PSD”.
O tratamento dado a André Ventura, que foi recebido em Belém no dia seguinte, quarta-feira, não poderia ter sido mais diferente. Através do mesmo canal oficial, Marcelo referiu-se ao líder do Chega ‘apenas’ e ‘só’ como “deputado” – logo Ventura, que, não raras vezes, se refere a si próprio precisamente como “líder da oposição”. Durante o encontro entre Marcelo e Montenegro, como contava aqui o Observador, não ficou qualquer assunto por tratar, incluindo os equilíbrios à direita e a situação política do país, que pode ou não resultar na marcação de eleições antecipadas no segundo semestre de 2024.
A conversa terá sido franca, mas não foi tensa, o que terá ajudado a relançar uma relação que tem sido tudo menos pacífica entre Belém e São Caetano. Montenegro aproveitou este encontro com o Presidente da República para evitar o escalar de um pingue-pongue que se vem arrastando há alguns meses e esvaziar a tensão – mas não recuou perante Marcelo.
A desgraduação de Ventura e a promoção de Montenegro foi muito bem recebida no PSD, que começa a sentir um Presidente da República mais alinhado com os interesses da sua família política de origem. Esta sexta-feira, Marcelo voltou a escancarar as portas à dissolução da Assembleia da República, dizendo que, apesar de ser sempre “uma má notícia”, às vezes “tem de haver más notícias”.
Desta vez, e ao contrário do que vinha fazendo até aqui, o Chefe de Estado não se desdobrou em reflexões sobre a inexistência de uma alternativa forte – coisa que irritava e de que maneira a direção do PSD. Assistência de Marcelo para golo de Montenegro. Resta saber se a nova dinâmica é para manter ou se foi só (mais) um drible presidencial.