A abertura de dois concursos públicos, em 2010 e 2011, nas juntas de freguesia de Marvila e do Beato, em Lisboa, estiveram na base de uma investigação do Ministério Público. E a colocação da filha e da namorada dos respetivos autarcas socialistas na capital levantou suspeitas. Numa espécie de troca de cadeiras, a filha do presidente da junta de Marvila ganhou o concurso para um cargo na junta do Beato e a namorada do presidente do Beato ficou em primeiro lugar no concurso para a junta de Marvila.
O Ministério Público acabou por acusar, já em abril de 2021, os dois antigos autarcas socialistas, Hugo Xambre e Belarmino Silva, além das duas candidatas que ficaram com os lugares e ainda a consultora jurídica avençada — que trabalhava nas duas juntas e definiu os critérios para os dois concursos — de oito crimes de corrupção ativa e passiva. Aberta a instrução, o tribunal decidiu que os crimes já tinham prescrito e mandou arquivar o processo. Mas o Tribunal da Relação de Lisboa, em abril deste ano, teve outro entendimento, anulou a decisão instrutória assinada pelo juiz Carlos Alexandre e mandou seguir o caso para julgamento em primeira instância. Ao Observador, fonte ligada ao processo indicou, no entanto, que os arguidos ainda não foram notificados para o início do julgamento.
Juiz Carlos Alexandre colocado no Tribunal da Relação de Lisboa
“Meu caro, junto envio o currículo da minha filha, caso precisem”
O Ministério Público acredita que a abertura dos dois concursos públicos foi combinada entre os dois agora ex-autarcas, Belarmino Silva e Hugo Xambre, ambos com mandatos nas respetivas juntas entre 2005 e 2017. E as trocas de emails deram mais força à tese do MP. Em setembro de 2010, Belarmino Silva, que estava à frente da junta de Marvila, enviou o seguinte e-mail para o autarca do Beato: “Meu caro, junto envio o currículo da minha filha, caso precisem. Ok. Um TAF”. Esta forma de despedida é, aliás, um cumprimento maçónico, em que TAF significa Tríplice Abraço Fraterno. Dois meses depois, foi a vez de Hugo Xambre enviar o currículo da namorada para a junta de Marvila.
Só no ano seguinte, em abril de 2011, foi aberto um concurso pela junta de freguesia de Marvila. A vaga era para técnico superior na área de gestão e é nessa altura que volta a surgir uma nova troca de emails. Desta vez, com uma nova participante: uma consultora jurídica que trabalhava simultaneamente, a recibos verdes, nas duas juntas de freguesia.
Esta consultora jurídica terá ficado responsável pela elaboração da prova feita aos candidatos à vaga de técnico superior na área da gestão, redigindo as perguntas, as respostas e os critérios de avaliação. Mas a informação, descreve o Ministério Público, terá sido enviada por email para Hugo Xambre e para Belarmino Silva, “com o assunto ‘FW:prova’ e sem qualquer texto adicional”. E terá ido parar também à caixa de correio eletrónico da então namorada de Hugo Xambre.
A este concurso público concorreram nove candidatos, incluindo a namorada do presidente da junta do Beato, que conseguiu o lugar com uma diferença de dez valores na prova escrita em relação aos restantes oito candidatos. “O referido documento [enviado pela consultora jurídica aos dois autarcas e, posteriormente à candidata] continha 23 perguntas e respostas, sendo que as 20 primeiras coincidiam com aquelas que integravam a totalidade da prova de conhecimentos gerais”, escreveu o MP, que defendeu ainda que a candidata vencedora “teve acesso direto e integral, não só à prova de conhecimentos que iria realizar, mas também aos respetivos critérios de correção”. “E tudo isto dezassete dias antes da realização da prova”, acrescentou.
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Um mês depois da abertura deste concurso, chegou então a vez de a junta do Beato avançar com a abertura de um concurso para preencher uma vaga para técnico superior na área de animação cultural. O processo foi o mesmo: 30 candidatos, uma prova escrita e, no fim, ganhou a filha do presidente da junta de Marvila. Colocando mais uma vez a atenção na prova feita pela consultora jurídica, o Ministério Público refere que a avaliação contou com “13 questões em comum com a prova de conhecimentos gerais utilizada no procedimento concursal de Marvila”.
Para o Ministério Público, ficou claro que a consultora jurídica “definiu a estrutura e o conteúdo das provas de conhecimentos gerais, os respetivos critérios de correção, participou na vigilância de ambas as provas, procedeu à sua correção e avaliação e participou nas entrevistas dos candidatos aprovados na prova de conhecimentos gerais, de forma a possibilitar/determinar a graduação da candidatas”.
Relação diz que interpretação de juiz Carlos Alexandre pode levar a “total descrédito do Estado de direito”
Depois da acusação do Ministério Público, quatro dos cinco arguidos pediram a abertura de instrução, numa tentativa de evitar que o processo seguisse para julgamento — a consultora jurídica foi a única arguida que não pediu abertura de instrução. E o caso foi parar às mãos do juiz Carlos Alexandre, que vai passar brevemente para o Tribunal da Relação de Lisboa, deixando assim o Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa.
Ainda como juiz de instrução, Carlos Alexandre analisou a acusação do Ministério Público e chegou à conclusão de que o processo não tinha condições para avançar. Primeiro, não considerou a retificação dos tipos de crimes feita pelo Ministério Público: na acusação, o MP indicava crimes de corrupção passiva para ato lícito e, já depois de constituídos os arguidos e conhecida a acusação, pediu a alteração para crimes de corrupção passiva para ato ilícito, por se tratar de um “erro de escrita”. Depois, considerou que os crimes já estavam prescritos e que, por isso, não haveria lugar a julgamento.
Em relação à tipificação dos crimes, que o Ministério Público quis alterar, o Tribunal da Relação acabou por dar razão aos procuradores, admitindo que “a existência de erro de escrita é evidente, pelo que se impõe a correspondente correção”. “É incontestável o caráter ilícito das condutas descritas na acusação e, como se disse, a acusação buscou claramente a imputação de crime de corrupção passiva para ato ilícito”, justificou.
Ora, o Tribunal da Relação também não concordou com a interpretação feita pelo juiz de instrução Carlos Alexandre sobre a prescrição dos crimes e acabou por dar razão ao recurso do Ministério Público, que defendeu que o tribunal de instrução fez “uma errada interpretação” da lei, ao considerar que os crimes em causa “eram puníveis com uma pena de prisão até seis meses ou com uma multa até 60 dias, quando ali se estabelece uma moldura penal de 2 a 8 anos de prisão para os referidos crimes”. Aliás, o MP indicou que “o prazo de prescrição do procedimento criminal quanto aos crimes de corrupção ativa é de 10 anos, contado desde a data da prática do crime”.
Aqui, as datas dos envios dos e-mails, das aberturas dos concursos públicos e da publicação dos resultados são importantes para os tribunais, já que é a partir desta análise que se chega à conclusão de que os crimes não prescreveram. De acordo com a acusação do MP, os factos tiveram início em setembro de 2010 e prolongaram-se até ao dia 8 de novembro de 2011 — data da colocação da última candidata. E a Relação considerou, por isso, que o prazo para prescrição dos crimes em causa deve ter em conta, não só o momento em que começa o planeamento — que neste caso foi 2010 –, mas também o momento em que é executado, ou seja, já no final de 2011 — data dos concursos e respetivas colocações das duas candidatas.
“A não ser assim, permitir-se-ia que criminosos continuassem a praticar atos de execução do crime, pagando e recebendo subornos em perfeita impunidade. Correr-se-ia o risco, no limite, de o crime já estar prescrito ainda antes da sua consumação material ou terminação, o que, obviamente, precludiria toda e qualquer possibilidade de perseguição e punição do criminoso, conduzindo não só à impunidade, como ao total descrédito do Estado de direito, em particular dos tribunais e da administração da justiça”, escreveu o Tribunal da Relação no despacho que revogou a decisão instrutória.
Numa longa explicação sobre a prescrição dos crimes de corrupção, a Relação diz então, sobre o processo em causa, que, “neste caso, o prazo de prescrição tem o seu início a partir de 1 de novembro de 2011, data em que foram alcançados os resultados por todos os arguidos: as contratações para trabalho em funções públicas das arguidas”.