Índice
Índice
Passavam poucos minutos das 9h da manhã quando Rui Moreira chegou a pé ao Tribunal Criminal de São João Novo, no Porto, acompanhado pelo seu advogado, Tiago Rodrigues Bastos, pelo seu chefe de gabinete, Vasco Ribeiro, e por um dos seus irmãos, Sebastião Moreira. Depois de beber um café do outro lado da rua e fumar um cigarro eletrónico, entrou no edifício para ouvir as alegações finais do caso Selminho.
O presidente da Câmara Municipal do Porto tem marcado presença em todas as sessões de julgamento, que arrancou no dia 16 de novembro. Está acusado pelo Ministério Público pelo crime de prevaricação por, alegadamente, ter favorecido a imobiliária da sua família, da qual era sócio, durante o seu primeiro mandato, em 2013, em detrimento da autarquia.
Na base do processo está o negócio de terrenos na escarpa da Arrábida, cujo conflito judicial opunha há vários anos a câmara e a imobiliária Selminho. Ainda que visivelmente sorridente e descontraído, fora da sala de audiências o independente não tem prestado quaisquer declarações aos jornalistas, remetendo uma reação para o final do julgamento.
Esta quarta-feira foram ouvidas as alegações finais e se do lado da acusação o procurador Luís Carvalho pediu ao coletivo de juízes a condenação do autarca do Porto pelo crime de prevaricação, com uma pena suspensa na sua execução, e a perda de mandato — aplicada no atual exercício de função no cargo público –; do lado da defesa foi pedida a absolvição do arguido.
O advogado Tiago Rodrigues Bastos acusou o Ministério Público de fazer “um ataque indescritível à honra” pessoal de Rui Moreira, considerando ter ficado provado em tribunal que este “não teve qualquer intervenção” no processo Selminho. À saída do tribunal, o advogado garantiu que irá aguardar com “confiança”, “tranquilidade” e “serenidade” a decisão do tribunal, que será conhecida a 21 de janeiro, pelas 14h30.
A procuração “inócua” no processo que deixou o MP “perplexo”
Segundo o MP, dez dias depois de tomar posse como presidente da Câmara Municipal do Porto, em outubro de 2013, Rui Moreira pediu para consultar “todos os processos em curso” que envolviam a autarquia e que estariam a ser geridos por advogados externos, acreditando que entre eles estaria o processo Selminho, relacionado com a imobiliária da sua família e sobre o qual o autarca já teria conhecimento da sua existência mesmo antes de tomar posse.
Poucas semanas depois, a 28 de novembro de 2013, por sugestão de Azeredo Lopes, seu chefe de gabinete na época, Moreira passa uma procuração forense ao advogado Pedro Neves de Sousa que lhe confere poderes especiais para poder continuar a representar o município numa ação interposta pela Selminho junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, onde em janeiro de 2014 terá começado a ser desenhado um acordo entre a câmara e a imobiliária.
Ora o autarca revelou que só durante o primeiro trimestre de 2014 é que se declarou impedido de intervir no processo, por sugestão de Raquel Maia, a então diretora municipal da presidência, o que no entender o MP foi tarde demais, demonstrando mesmo “perplexidade”.
Tendo em conta o facto de Rui Moreira ser sócio da imobiliária da família e de conhecer que a mesma reclamava há vários anos junto da Câmara do Porto a capacidade construtiva do terreno na escarpa da Arrábida, o procurador, Luís Carvalho, questionou a sua atitude. “Então [o arguido] vai perguntar ao senhor Azeredo Lopes se pode assinar a procuração? Devia era tentar perceber [junto dos serviços jurídicos] como é que não podia intervir de todo no processo, o que manifestamente não fez. E teve bastante tempo para o fazer, uma vez que a audiência prévia foi a 10 de janeiro de 2014”, considerou.
Rui Moreira já tinha admitido em tribunal ter sido “incauto” assinar o documento que está na origem de todo o processo. “Admito que, sabendo o que sei hoje, foi incauto ter assinado, era melhor não o ter feito, isso tenho a certeza absoluta.” A defesa considera que a única intervenção do presidente “limitou-se à outorga” desta mesma procuração “porque lhe foi solicitada”, sublinhando ser este um “ato inócuo” e sem relevância para o processo. “Mesmo tendo em conta que o dr. Rui Moreira não deveria ter assinado a procuração, dessa procuração não resultou a sua intervenção no processo.”
O advogado Tiago Rodrigues Bastos vai mais longe e fala mesmo numa “ignorância pungente” por parte do MP quando afirma que a procuração poderia não ser passada, pois tal “não era urgente”. “A procuração tinha que ser passada, seja lá por quem fosse”, referiu.
O acordo que o MP acredita ter mudado a posição da câmara
A procuração polémica permitiu ao advogado, em nome do município, chegar a acordo com a Selminho, assinado em julho de 2014, que previa o reconhecimento da edificabilidade do terreno na escarpa da Arrábida, por alteração do Plano Diretor Municipal (PDM), ou, se isso não fosse possível, indemnizar a imobiliária num valor a ser definido, mas em tribunal arbitral, caso houvesse lugar ao eventual pagamento de indemnização.
Nas alegações finais, o procurador Luís Carvalho recordou que desde 2005 que havia uma “via-sacra” da Selminho para que fosse atribuída capacidade construtiva ao terreno em causa, sublinhando que, até à tomada de posse de Rui Moreira, em 2013, a pretensão da imobiliária nunca foi “satisfeita” por parte do município do Porto. “Após oito anos de litígios sempre a não ter atendidas as suas pretensões, em 10 meses de mandato de Rui Moreira, a Selminho consegue ter um acordo favorável aos seus interesses”, afirmou, destacando a “mudança de posição” da câmara no processo.
Outro dado que deixou o MP “perplexo” foi o facto de Guilhermina Rego, antiga vice-presidente, ter assinado o acordo já depois de este ser elaborado, numa “opacidade em todo o processo de negociação”. “Não seria de inteirar a sra. vice-presidente da situação? Apenas se refere a necessidade de uma eventual procuração. Não só nada foi dito à vice-presidente sobre o que se discutia, como apenas em julho se voltou a falar no processo.”
O procurador Luís Carvalho concluiu então que o acordo “foi levado já na sua versão final” a Guilhermina Rego e que o mesmo “ao invés de distribuir o mal pelas aldeias concede à Selminho ainda mais do que as suas pretensões, sem que esta de nada prescindisse”, sublinhando que o documento “em tudo prejudicava o município”.
Uma versão completamente refutada pela defesa, que garante que o acordo final “não tem nenhuma ilegalidade” e não deu qualquer vantagem à Selminho em detrimento do município. O advogado considera ainda “falso” ter existido uma alteração de posição por parte município com o objetivo de beneficiar a empresa da família Moreira. “Pelo menos, com toda a segurança, a partir de 2010, está em cima da mesa a hipótese de se conceder viabilidade de edificação no terreno da Selminho”, recordou, acrescentando que o documento mantém “exatamente” o que estava a ser negociado anteriormente.
A intervenção de Moreira que todos negaram, mas que a acusação garante existir
Segundo o MP, no julgamento ficaram evidentes vários factos que demonstram que o autarca do Porto teve o “completo domínio” na elaboração de um acordo “totalmente favorável à Selminho”, sublinhando que Rui Moreira foi mesmo “o responsável e quem beneficiou” com o desfecho judicial entre a imobiliária da sua família e o município que até hoje preside.
Por outro lado, o advogado considera ser “absolutamente inequívoca e esmagadora” a prova de que o autarca não teve “qualquer intervenção” no caso. “O sr. procurador trouxe aqui 17 testemunhas e nenhuma alma foi capaz de dizer que teve, direta ou indiretamente, alguma instrução por parte do sr. presidente”, recorda Tiago Rodrigues Bastos, acusando o MP de ignorar a prova direta ao desvalorizar os depoimentos das testemunhas em tribunal. “Porque é que estas pessoas mentem?”, questionou o advogado.
Na sua intervenção, a defesa disse acreditar ser “absolutamente evidente não existir palco para o crime de prevaricação”, de que o presidente da câmara do Porto é acusado, e fala ainda num “ataque indescritível à honra” de Rui Moreira por parte do MP.
“Não posso dizer que fiquei surpreendido, embora me choque o que acabámos de ouvir. Infelizmente já não espero que o MP tenha o comportamento condizente com as suas funções, ou que os senhores procuradores ignorassem aquilo que se passa no julgamento, de forma a denegrir e ofender a honra das pessoas”, afirmou, acrescentando que as descrições do procurador da República são “de uma violência sem paralelo”.
“O que nos é dito é que Rui Moreira, que se candidatou contra os partidos, por um movimento independente de cidadãos, num espaço de oito meses esteve a cuidar dos interesses da sua família. Isto é uma ideia intolerável e inaceitável. Se isto não é um ataque indescritível à honra de uma pessoa, não sei o que é”, frisou o advogado, acrescentando que “tanto ou mais importante” do que saber se será ou não absolvido, o autarca pretende que não permaneça a ideia, “que lhe é atirada desde 2016”, de que mal foi eleito presidente a primeira coisa que fez foi “tratar da vidinha da sua família”.