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Se os nós górdios criados nos grandes processos marcam de alguma forma a imagem da Justiça portuguesa, a Operação Marquês é o caso mais paradigmático que se pode apontar sobre bloqueios jurídicos. O problema mais recente tem, contudo, um detalhe relevante e original: o acesso, por parte da defesa de José Sócrates, ao resultado de uma junta médica realizada ao juiz Ivo Rosa. Acesso esse que aconteceu antes sequer de o Conselho Superior da Magistratura e de o Tribunal da Relação de Lisboa terem tido conhecimento do mesmo — conforme informação que foi revelada pela revista Visão.
Pelo meio, outro dado raro: a juíza de instrução criminal sucessora de Ivo Rosa no Tribunal Central de Instrução Criminal, ajudou a defesa de José Sócrates neste novo imbróglio jurídico, graças a um zigue-zague de sucessivas decisões contraditórias (algumas delas reveladas pelo Observador). Tudo devido ao processo que representa uma pequena parte dos autos da Operação Marquês, relativo a três crimes de branqueamento e três crimes de falsificação de documento.
O resultado de mais este caso é que a prescrição dos crimes de falsificação de documento é cada vez mais inevitável — deverão começar a prescrever a partir de agosto deste ano. E este novo novelo jurídico arrisca-se a ser decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, caso o juiz Ivo Rosa se recuse a tomar uma decisão.
O Observador explica-lhe as consequências deste caso.
O estado dos autos da Operação Marquês e o primeiro zigue-zague da sucessora de Ivo Rosa
Os autos da Operação Marquês dividiram-se em dois grandes blocos com a famosa decisão instrutória assinada pelo juiz Ivo Rosa no dia 4 de abril de 2021, após dois anos e sete meses de fase de instrução criminal.
- O Bloco A — A pronúncia para julgamento propriamente dita decidida por Ivo Rosa. Neste Bloco A foram pronunciados para julgamento em quatro processos autónomos José Sócrates e Carlos Santos Silva, Ricardo Salgado, Armando Vara e João Perna.
- E o Bloco B — O despacho de não pronúncia, que corresponde a um arquivamento da esmagadora maioria dos 189 crimes que o Ministério Público imputou na acusação aos arguidos da Operação Marquês.
O que está agora em causa tem apenas a ver com o Bloco A. Por duas razões:
- Porque o despacho de não pronúncia de Ivo Rosa, o Bloco B, foi revogado pela Relação de Lisboa após recurso do Ministério Público. As desembargadoras Raquel Lima, Micaela Rodrigues e Madalena Parreiral Caldeira entenderam pronunciar José Sócrates para julgamento pela prática de 22 crimes (entre os quais três de corrupção passiva) e de mais 17 arguidos individuais [os pormenores da decisão estão aqui]. Estes autos ainda não baixaram para a primeira instância mas o julgamento poderá começar ainda este ano porque os recursos para o Constitucional são meramente devolutivos — isto é, não param a marcha do processo.
- E porque os autos relativos à pronúncia de Ivo Rosa decretada nula em março, o chamado Bloco A, baixaram logo para a primeira instância em abril. A ordem da Relação de Lisboa, que anulou apenas a parte da pronúncia relativa a José Sócrates e a Carlos Santos Silva (pronunciados em regime de co-autoria), foi clara: o Tribunal Central de Instrução Criminal tinha de emitir uma nova pronúncia que não faça nenhuma alteração substancial dos factos (como Ivo Rosa fez, infringindo a lei processual penal) e analise apenas os factos respeitantes aos seis crimes que Rosa tinha considerado como fundamentados.
Há dois problemas logo à partida: o juiz Ivo Rosa foi promovido a juiz desembargador, colocado no Tribunal da Relação de Lisboa (9.ª Secção) e, na altura em que os autos baixaram à primeira instância, estava de baixa médica desde janeiro deste ano, como foi noticiado no dia 8 de janeiro deste ano pelo jornal Eco. Os problemas de saúde de Ivo Rosa são públicos — o magistrado foi operado de urgência em fevereiro de 2022 devido a problemas cardíacos.
A juíza de instrução Sofia Marinho Pires, que substituiu Ivo Rosa no J2 — o juízo do Tribunal Central de Instrução Criminal (Ticão) ao qual foi sorteada a fase de instrução criminal —, desconhecia aparentemente tudo isso. Assim, a magistrada declarou-se incompetente em maio por entender que a lei impõe que a nova decisão instrutória ordenada pela Relação de Lisboa tem de ser feita pelo “juiz que presidiu ao debate instrutório e assistiu à argumentação dos sujeitos processuais sobre as questões, de facto e de direito, pertinentes para a decisão instrutória, a proferir tal decisão”, como escreveu no seu despacho de 14 de maio. Logo, segundo a juíza, é o “exmo. sr. juiz que proferiu a decisão [Ivo Rosa] o juiz natural” do processo e deve ser ele a tomar a “nova decisão”.
O primeiro zigue-zague da magistrada do Ticão aconteceu após ter sido informada pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM), já em junho, dos factos públicos acima referidos: Ivo Rosa tinha sido promovido a juiz desembargador da Relação de Lisboa e estava de baixa desde o início do ano.
Com esta informação oficial do CSM, de que “não era previsível” o “regresso ao serviço” de Ivo Rosa, a magistrada concluiu pela “impossibilidade do Exmo. Juiz de proferir nova decisão instrutória nos moldes determinados pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa”. Logo, e tendo em conta os “prazos prescricionais em curso, bem como os princípios de celeridade e de confiança dos cidadãos no funcionamento da justiça, será a signatária a proferir nova decisão”, lê-se num novo despacho datado de 21 junho.
Relação de Lisboa diz que Ivo Rosa não seguiu o “caminho do dinheiro” que leva a Sócrates
Tudo resolvido? Nem por isso.
A informação exclusiva do advogado de José Sócrates (que nem a Relação de Lisboa conhecia)
Quando o CSM colocou a juíza Sofia Marinho Pires a par de que Ivo Rosa estava de baixa médica, enviou igualmente um ofício da juíza desembargadora Guilhermina Freitas, presidente da Relação de Lisboa, a informar que o magistrado tinha uma junta médica da ADSE marcada para o dia 26 de junho. Essa informação foi notificada a José Sócrates no dia 25 de junho.
Logo após a junta médica, o advogado de José Sócrates apresentou um requerimento de 10 páginas — numa data que o Observador ainda não conseguiu clarificar, mas que se situa entre o dia 26 de junho e o dia 2 de julho —, no qual expõe o seguinte: o juiz Ivo Rosa “regressou ao trabalho depois de a junta médica lhe ter dado alta na passada quinta-feira, dia 26 de junho, véspera da notificação do despacho de 25 de junho [da juíza Sofia Marinho Pires]. Está, portanto, apto a cumprir todos os seus deveres de juiz e a exercer todas as funções jurisdicionais que lhe competem, designadamente neste processo.”
O advogado Pedro Delille requer então à juíza Sofia Marinho Pires que apresente de imediato os autos de todo o processo “ao Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador Ivo Rosa, que é o juiz legal” destes autos. Delille recorda todos os argumentos da própria magistrada, expostos no despacho em que se declarou incompetente, precisamente por considerar que Rosa era o “juiz natural” dos autos. Tal como a revista Visão recordou a 2 de julho, data em que revelou em primeira mão o requerimento de Pedro Delille, ninguém tinha a informação sobre o resultado da Junta Médica de Ivo Rosa. Nem o Tribunal da Relação de Lisboa, nem o Conselho Superior de Magistratura (CSM).
A presidente da Relação de Lisboa confirmou ao Observador que só foi informada do levantamento da baixa médica de Ivo Rosa um dia depois de a revista Visão ter revelado o caso. “Fui informada no dia 3 de julho de 2024”, disse em resposta escrita, sendo certo, acrescentou, que o magistrado só “entrou ao serviço a 4 de julho de 2024. Já lhe foram distribuídos processos. Tem uma redução de serviço devidamente justificada”, explicou.
O Observador sabe que o CSM, órgão de gestão e disciplinar da magistratura judicial, só soube do resultado da junta médica a Ivo Rosa ao mesmo tempo que a presidente da Relação de Lisboa.
Ou seja:
- O advogado Pedro Delille terá tido acesso em primeira mão ao resultado confidencial da junta médica feita ao juiz Ivo Rosa, o que configura um acesso a dados médicos daquele magistrado judicial. Nem o Tribunal da Relação de Lisboa ou o CSM — órgãos que tinham de ser informados pelo juiz Ivo Rosa das conclusões da junta médica — estava na posse de tal informação naquela data. Questionado pela revista Visão sobre a forma como teve acesso a essa informação confidencial, Delille limitou-se a dizer: “Disseram-me…”
- São falsas as várias afirmações que constam do requerimento de Pedro Delille apresentado entre 26 de junho e 2 de julho. O advogado de José Sócrates afirma que, nesse período, o juiz Ivo Rosa “está ao serviço no Tribunal da Relação de Lisboa” — o que não é verdade, pois o magistrado só regressou ao trabalho no dia 4 de julho. Delille diz ainda que Ivo Rosa não está de baixa médica no momento em que o requerimento foi apresentado — mas tal baixa só cessou com o seu regresso ao trabalho. E, finalmente, o advogado que defende José Sócrates na Operação Marquês escreve que Ivo Rosa “nem está impedido de trabalhar”, mas a realidade é que o desembargador “tem uma redução de serviço devidamente justificada”, como informou a presidente da Relação de Lisboa.
O segundo zigue-zague da juíza de instrução e o que pode acontecer
O que fez a juíza Sofia Marinho Pires perante o requerimento do advogado de José Sócrates?
Em primeiro lugar, questionou formalmente o CSM sobre o fim da baixa médica. Tendo sido esclarecida do regresso ao trabalho do juiz Ivo Rosa, a magistrada fez o seu segundo zigue-zague e voltou à decisão de 14 maio.
Invocando os argumentos apresentados nessa altura, a juíza Sofia Marinho Pires ordenou que fossem apresentados “os autos ao Exmo. Senhor Juiz [Ivo Rosa] que proferiu a decisão instrutória, para os fins tidos por convenientes”, lê-se no despacho datado de 15 de julho, último dia de trabalho antes do início das férias judiciais.
A presidente do Tribunal da Relação de Lisboa confirmou ao Observador esta terça-feira, dia 23 de julho, que os autos do processo n.º 16017/21.9 T8LSB — é assim que o Bloco A é reconhecido nas secretarias judiciais — ainda não tinham chegado àquele tribunal superior.
Quando tal acontecer, o desembargador Ivo Rosa poderá optar por uma de duas hipóteses:
- Ou retira a mesma interpretação jurídica da juíza de instrução Sofia Marinho Pires e toma uma nova decisão instrutória;
- Ou declara-se incompetente e o conflito de competências terá de ser analisado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Acrescente-se que, se Ivo Rosa optar pela primeira hipótese, não poderá voltar a tomar a mesma decisão que tomou em abril de 2021. Isto é, terá de analisar os factos à luz do comando do Tribunal da Relação de Lisboa que entende que a visão do MP sobre o facto criminal central — José Sócrates terá sido alegadamente corrompido, sendo dono dos fundos depositados na Suíça em nome de Carlos Santos Silva, que é seu cúmplice — tem de ser avaliado nessa exata medida e não pode ser alterado.
Recorde-se que o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu decretar a nulidade da pronúncia para julgamento de Sócrates e Santos Silva por três crimes de branqueamento e três crimes de falsificação de documento porque o então juiz de instrução Ivo Rosa fez uma alteração substancial dos factos que não é permitida pela lei processual penal. Isto é, transformou Carlos Santos Silva num alegado corruptor ativo de José Sócrates, em vez de o encarar com cúmplice do ex-primeiro-ministro.