A 26 de setembro de 1960, e pela primeira vez na história da política norte-americana, os dois candidatos à presidência dos Estados Unidos enfrentaram-se num debate televisivo. Nessa corrida, John F. Kennedy era tudo menos favorito; Richard Nixon era um vencedor antecipado. O debate foi disputado, mas não particularmente aceso, como recuperava aqui o Observador. No final, quem assistiu ao duelo pela televisão escolheu maioritariamente Kennedy como vencedor. Os que o ouviram na rádio deram a vitória a Nixon. Kennedy, bronzeado, sorridente e de fato azul escuro, transpareceu confiança. Nixon, enfiado num fato cinzento, ainda a recuperar de 12 dias de cama e com quase 39 graus de febre, transpirou em bica. Kennedy venceu as eleições; Nixon lamentou para sempre a falta de preparação para aquele formato.
“Devia ter-me lembrado de que uma imagem vale por mil palavras”, escreveria Nixon na sua autobiografia. No PSD, há quem se tenha lembrado deste episódio depois de ver Luís Montenegro, cercado por jornalistas, agitado e a transpirar visivelmente, a comentar uma “vitória em toda a linha” do PSD na Madeira – o mesmo PSD que nem depois de ter engolido o CDS conseguiu manter a maioria absoluta numa região onde só conhece o sabor da vitória. “Nunca deveria ter falado naquelas circunstâncias. Foi terrível. Deu uma imagem enorme de fraqueza”, comenta com o Observador um senador do partido. Montenegro teve o seu momento Nixon.
Os mais próximos de Montenegro relativizam: as declarações foram assertivas, tiveram o mérito de dar mais um chega para lá ao Chega (o definitivo, promete-se) e convenceram quem as leu ou ouviu pela rádio. É verdade que a imagem conta – e conta muito –, e que a agitação evidente e o tom excessivo eram absolutamente dispensáveis; mas são questões que só divertem a bolha mediática e que têm zero impacto junto do eleitorado, vai-se dizendo no quartel-general do PSD. A mensagem, insiste-se, passou: Montenegro foi um dos vencedores daquela noite; e António Costa, desaparecido em combate, o maior derrotado.
A verdade, como quase sempre, estará algures no meio. Mas, muito mais do que o aspeto cénico, o que incomodou verdadeiramente alguns elementos influentes do PSD foi a proclamação de vitória do líder nacional. Quebrando a tradição de autonomia regional, Luís Montenegro celebrou o resultado e puxou para si o significado daquela noite eleitoral. “Estas são as primeiras eleições do meu mandato. Estou aqui para dar a cara por elas. É caso para dizer que, no meu mandato, PSD 1 – PS 0; Luís Montenegro 1 – António Costa 0”, chegou a atirar o presidente do PSD.
Num tom particularmente duro, e já com os resultados conhecidos, Miguel Relvas lamentava o erro estratégico do líder social-democrata. “Não era a sua eleição. Montenegro transformou-se no centro do debate político. Nunca se nacionalizaram estas eleições. A verdade é que o líder do PSD acreditou que hoje [domingo] haveria uma retumbante vitória… Há riscos que são desnecessários. Foi completamente desnecessário. Não há uma explicação política para o que aconteceu”, argumentou o antigo braço direito de Pedro Passos Coelho.
Logo na noite eleitoral, ainda antes de saber qual seria o resultado da coligação, Luís Marques Mendes aproveitava o seu espaço de comentário na SIC para antecipar esse cenário, longe de esperar que viesse a confirmar-se. “Se não houvesse maioria absoluta, toda a gente estaria a dizer que Montenegro sai derrotado, e seria verdade”, aventava o antigo líder do PSD. E foi verdade.
O desconforto, aliás, já vinha de trás. Contra aquela que é a tradição do partido regional, Montenegro juntou-se à campanha de Albuquerque, desfilou pela Madeira perante o desagrado de uma parte do PSD-M, ouviu críticas de figuras como Alberto João Jardim, teve de escutar Miguel Albuquerque a exigir-lhe uma vitória nas europeias e decidiu organizar a reunião da comissão permanente do partido (núcleo mais duro) para o dia seguinte à suposta vitória esmagadora. Por outras palavras: apesar dos pequenos irritantes que nasceram da sua ida à Madeira, Montenegro envolveu-se pessoalmente naquilo que todos projetavam que ia ser a grande festa da maioria laranja e azul. Não foi.
Na ressaca da noite eleitoral, Alberto João Jardim chamou “caloiro” a Montenegro, reconheceu o objetivo revés do PSD (que Albuquerque e Montenegro se esforçaram por negar) e disse que o discurso do líder social-democrata não tinha sido “feliz”. “[Montenegro] pô-se em bicos de pés. Entrou-se num clima de vale tudo. Foi um momento penoso e particularmente infeliz”, atalhou Mota Amaral, antigo presidente da Assembleia da República e ex-presidente do Governo dos Açores, em declarações à agência Lusa.
Objetivamente, os sociais-democratas tiveram um resultado mais do que positivo nas eleições da Madeira. Ganharam em todos os concelhos, só perderam em duas freguesias, somaram 43,13% dos votos, viram o PS a ser esmagado e evitaram todo o drama que poderia nascer se os PSD se visse confrontado com a eventualidade de ficar refém do Chega – a questão magna que se tem colocado à direita. É isso que vão repetindo Luís Montenegro e demais dirigentes do PSD.
Mas, na Madeira, a história destas eleições era outra: toda a campanha girou à volta da capacidade da coligação liderada por Miguel Albuquerque em manter a maioria absoluta depois de o PSD a ter perdido há quatro anos. Tanto era essa a história destas eleições que Miguel Albuquerque dramatizou ao ponto de ameaçar com a demissão caso perdesse essa maioria, jurando a pés juntos que não governaria se falhasse esse objetivo. Resultado: a coligação “Somos Madeira” perdeu a maioria, Miguel Albuquerque não se demitiu e Montenegro apanhou-se na Madeira, com toda a direção do partido, a tentar festejar de forma esfuziante uma vitória com sabor amargo — no mínimo.
“Na política, mais do que os factos, muitas vezes o que conta é a narrativa. E a narrativa não é boa para nós”, concede um destacado dirigente social-democrata. “As declarações de Miguel Albuquerque, o facto de a direção se ter mudado de armas e bagagens para a Madeira… Obviamente que elevaram as expectativas. E quando não se está à altura das expectativas, isso tem sempre consequências. É sempre uma perda, obviamente. Evidentemente que teria sido melhor ficar cá”, nota um senador social-democrata ao Observador. “Tudo lhe corre mal. Foi um disparate pegado ir para a Madeira”, acrescenta outro.
Mesmo no núcleo mais reservado do líder do PSD, o Observador sabe que, além de ter causado óbvio desconforto nas estruturas regionais, a ideia de ir para a Madeira não animava todos em Lisboa. Ainda antes de conhecidos os resultados, um influente social-democrata reconhecia que o risco era grande: a vitória por maioria absoluta seria sempre de Albuquerque e não de Montenegro; uma ‘derrota’ (entre muita aspas) contaminaria Luís Montenegro. Teve razão antes do tempo.
Ainda assim, entre os mais próximos do presidente do PSD, a ordem é relativizar. A rejeição do Chega permitiu marcar a agenda política (voltou a repetir a ideia esta quarta-feira), o PSD continua a governar o arquipélago sem qualquer tipo de drama (o PAN não causa verdadeira urticária a ninguém) e Montenegro “demonstrou ser um líder”, dando a cara num momento menos feliz – ao contrário de António Costa que, quatro anos depois de ter apostado tudo em Paulo Cafôfo, se “evaporou” (Montenegro dixit). No que verdadeiramente importa, defende-se na São Caetano, ficou tudo exatamente na mesma. Tudo menos uma coisa: é preciso redobrado cuidado com a ideia das vitórias adquiridas.
Até os opositores internos (mais ou menos assumidos) evitaram atacar publicamente Montenegro. “Há tempos de coruja e de falcão”, comenta com o Observador um dos críticos da atual direção, sem esconder algum divertimento com o momento protagonizado por Montenegro. Não será seguramente a Madeira a precipitar o que quer que seja em Lisboa. André Coelho Lima, deputado e antigo vice de Rui Rio, até apareceu a elogiar o acordo do PSD com o PAN, não resistindo em reafirmar que o PSD é um partido do centro e, como tal, pode fazer acordos à sua esquerda e à sua direita — tese dominante do rioísmo e que sempre foi criticada por aqueles que hoje compõem a direção do PSD.
Mas este não é o momento para partir a corda. Esse chegará, se chegar, mais à frente. De resto, um influente social-democrata resume as coisas nestes termos: “Evitou-se o cenário catastrófico, que era ficar dependente do Chega, o que seria uma calamidade para Luís Montenegro. E não alterou nada o curso dos acontecimentos. Que não haja enganos: a prova dos nove serão as europeias”. Resta saber se Luís Montenegro marca mais um golo contra António Costa ou se passa a ficar 1-1. Em caso de derrota nessas eleições, não faltarão críticos internos a exigir uma chicotada psicológica. Se vencer a 9 de junho, Montenegro fica mais do que lançado como candidato a primeiro-ministro.
Passos mantém-se na reserva, mas não para alimentar o peditório das presidenciais