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Foi um G20 sem a tradicional foto com todos os líderes. Só esse era um sinal claro de que o ambiente entre as 20 maiores economias do mundo está longe de ser o melhor, mas os acontecimentos ao longo dos últimos três dias em Bali, na Indonésia, reforçaram ainda mais a ideia de que não há consenso entre os líderes mundiais.
Inflação, crise alimentar, aumento da dívida — nada disso foi motor suficiente para ultrapassar a divisão clara provocada pela guerra na Ucrânia que deixou de um lado o Ocidente (representado por Estados Unidos, União Europeia, Canadá, Austrália e Japão) e do outro a Rússia. Pelo meio, vários países que se descrevem como “não-alinhados” no conflito, como a China, a Índia, a África do Sul ou a Turquia.
Os líderes ocidentais tinham esperança de que o rumo da guerra (que tem sido desfavorável à Rússia) combinado com uma ofensiva de charme diplomático, pudesse fazer países como a China pressionarem Moscovo. Mas a “declaração de líderes” que saiu em conclusão da cimeira veio provar que não foi esse o caso. “A declaração consiste em 52 parágrafos e o parágrafo que foi amplamente discutido foi aquele que diz respeito à atitude em relação à guerra na Ucrânia”, resumiu o Presidente indonésio, Joko Widodo, no final do encontro.
Um cenário de pesadelo para a Indonésia, que não desejava que a cimeira fosse ensombrada pelo tema da guerra. Apesar de em público Widodo ter arrancado a reunião com um apelo ao “fim da guerra”, nos bastidores vários diplomatas confessavam ao Politico que a Indonésia tentou pressionar as equipas europeias a aliviar a pressão sobre a Rússia para que fosse possível emitir um comunicado final conjunto que pudesse retratar este G20 como um sucesso.
Não foi exatamente assim. As reuniões que se prolongaram noite fora na terça-feira foram acompanhadas pelas notícias de bombardeamentos constantes à Ucrânia e da queda de um míssil na Polónia, lembrando a todos que a guerra persiste. Se os Estados Unidos e a Europa esperavam que tal pudesse ajudar países como a China e a Índia a assumirem uma posição mais firme contra a Rússia, martelando uma e outra vez que a atual crise económica está ligada à agressão russa, Pequim deixou claro que não vai alterar toda a sua política externa num piscar de olhos.
Entre os “não-alinhados”, a frustração com a guerra existe, “em parte pelo desgaste dos preços alimentares e da inflação energética”, reconheceu ao Politico Aaron Connely, analista do International Institute for Strategic Studies. “Mas países como a África do Sul e a Indonésia são suscetíveis a narrativas anti-Ocidente.” E o último G20 veio mesmo deixar claro o fosso que existe entre o Ocidente e o resto do mundo, que a guerra da Ucrânia veio cavar mais fundo.
“Guerra” ou “operação especial”? Comunicado final marcado por horas de negociação
O comunicado final conta toda a história. O Ocidente quis que ficasse por escrito a oposição do G20 à guerra levada a cabo pela Rússia contra a Ucrânia e a exigência de que o país retire dali as suas tropas. Mas não conseguiu consenso. Assim, o texto final afirma que “maioria” das vinte maiores economias do mundo “condenam fortemente a guerra na Ucrânia”, mas também nota que “há outras visões e avaliações diferentes da situação e das sanções”. E lembra que o G20 é um fórum económico e não político.
De acordo com o Washington Post, a ressalva sobre diferentes “visões e avaliações” foi incluída depois de uma longa negociação em que a República Popular da China se opôs terminantemente, durante horas, a que fosse usada a palavra “guerra” no comunicado — ecoando a posição russa, que insiste em chamar “operação militar especial” ao conflito.
Foi assim ao longo de todo o encontro: a CNN nota que os resumos dos encontros do Presidente chinês, Xi Jinping, com outros líderes, usavam termos como “a crise ucraniana” ou “o assunto Ucrânia” em vez da palavra “guerra”.
Nem a diplomacia dos dias anteriores teve efeito. O encontro entre o Presidente Joe Biden e Xi Jinping não conseguiu mais do que um acordo entre as duas partes sobre o efeito nefasto da guerra e a rejeição do uso de armamento nuclear, mas nada mais. Também o homólogo francês, Emmanuel Macron, tentou fazer lobby junto de Xi, pedindo diretamente à China que “envie mensagens ao Presidente Putin para evitar uma escalada”. A resposta de Pequim foi que “apoia os esforços de mediação europeus”, em particular os de França. Mas nada mais.
Pequim alinhada com Moscovo ao longo de toda a cimeira
Desde que chegou a Bali que a delegação chinesa foi deixando claro que não tencionava mudar a sua posição de semi-aliada da Rússia. Logo na sexta-feira passada, o porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, Zhao Lijian, lembrou que o G20 serve para discutir a economia e não “o problema ucraniano”.
Já esta terça-feira, o responsável máximo da diplomacia chinesa, Wang Li, foi um dos poucos dignitários a encontrar-se com Sergey Lavrov, o ministro dos Negócios Estrangeiros russos que esteve em Bali no lugar de Vladimir Putin. As conclusões da reunião frisaram apenas um entendimento comum de que “uma guerra nuclear não deve ser combatida”.
Também no discurso que fez na cimeira, Xi Jinping não escondeu que esta seria a postura de Pequim quando fosse altura de discutir o comunicado final. Nunca mencionando diretamente o conflito ucraniano, Xi fez eco das declarações de Lavrov, ao dizer que o G20 “deve opor-se de forma resoluta a tentativas de politização de questões alimentares e energéticas”. E, na discussão final, a China não torceu o braço: ficou por escrito a sua “visão” diferente e a sua oposição às sanções contra a Rússia.
Índia, o “não-alinhado” que pode estar a mudar de posição
Esta solução final terá sido encontrada por um dos outros países “não-alinhados”: a Índia. Foi isso que confirmaram várias fontes presentes nas reuniões a órgãos ocidentais como o Financial Times. E que foi replicado pela própria imprensa indiana.
A equipa indiana e o próprio primeiro-ministro Narendra Modi terão estado envolvidos nessa negociação, de acordo com o Hindustan Times, sugerindo “mudanças ao texto” que “encontraram eco nas negociações”. O tom adotado foi por isso semelhante ao que Modi já tinha usado no seu último encontro com Vladimir Putin, frisando que “esta não é uma era de guerra”.
Isso indica que a Índia poderá estar a assumir uma postura diplomática diferente daquela que tem adotado até agora, afirmam os especialistas. Se até aqui o país se tem abstido nos votos de condenação à Rússia nas Nações Unidas, como a China, agora pode estar a tentar conquistar pontos junto do Ocidente, tentando descolar-se de Moscovo.
“Se a linguagem da Índia foi a que foi usada no texto, isso significa que os líderes ocidentais estão a ouvir a Índia”, notou à CNN Happymon Jacob, professor de diplomacia na Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Deli. “Estamos a ver a Índia a distanciar-se da Rússia de várias formas.”
Um G20 dividido, onde “sobra pouco oxigénio”
Independentemente de ter sido encontrada uma solução para o comunicado final, o texto deixa claro que não há unanimidade entre os membros do G20. Com Estados Unidos e China em polos opostos, países como a Índia e a Turquia num equilíbrio complicado, e nações como a África do Sul e o Brasil mais próximos da Rússia (mas em silêncio), seria de prever que esta cimeira não conseguisse grandes avanços ou soluções para a situação atual mundial.
Para trás ficam os tempos em que o G20 funcionou como um fórum agregador e em que as potências se uniram para resolver problemas conjuntos, como aconteceu em 2009, quando EUA, China e Rússia se uniram para tentar encontrar soluções para a crise financeira. O grupo “historicamente sempre funcionou melhor quando há uma crise que afeta todos de forma igual, como o contágio financeiro da crise de 2008”, lembrou ao The Guardian o professor de História de Cambridge Tristen Naylor.
“Esta não é uma crise que afete todos os países de forma igual, por isso não há uma solução com que todos possam concordar”, acrescentou. “Junte-se a isso a guerra da Ucrânia e as tensões EUA-China sobre Taiwan e sobra muito pouco oxigénio para respirar.”