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Comprada por 120 contos (114 mil euros a preços atuais) em 1936 por Ricardo Espírito Santo, albergou, durante a II Guerra Mundial, até os duques de Windsor. Era na Casa dos Pórticos que os descendentes, mais de 100, do banqueiro, avô de Ricardo Salgado, se reuniam no Natal. Agora, ao fim de mais de oitenta anos, a família viu-se obrigada a desfazer-se do palacete. Depois de várias tentativas, contrariadas na Justiça devido ao arresto de bens do antigo presidente do BES, alvo de várias investigações criminais (pelas quais vai ser julgado), que acabou por atingir a parte da mulher, Maria João, a mansão cor de rosa junto à Boca do Inferno foi finalmente vendida. O comprador é um investidor norte-americano, que pagou 16,5 milhões de euros.
Os restantes acionistas, membros da família, tiveram de aceitar ainda assim “um pequeno desconto” para consumarem a venda, concluída no ano passado e que abrirá um novo capítulo nesta história. Agora, com sotaque inglês — tal como o do primeiro proprietário que iniciou a construção na década de 1920 –, a casa na Boca do Inferno vai tornar-se residência de um casal norte-americano.
“Aquilo tem uma área enorme, é uma loucura, à volta de 1.000 metros quadrados” (contando os três pisos), comenta ao Observador Mary Salgado, irmã de Ricardo Salgado, que diz ter ficado “muito espantada por um pai, uma mãe e dois filhos irem viver naquele casarão”. Contactado pelo Observador, Anthony Lynn Davis, o comprador, confirmou, através de um representante, que o seu objetivo é mesmo fazer do imóvel o local de residência permanente para a família. Para isso, está a reabilitar o palacete com todo o “cuidado e respeito pelo seu valor histórico”.
“Aquela casa foi feita pelo meu avô e desde miúda que ia lá passar o verão”, recorda Mary Salgado, que foi viver, anos mais tarde, na propriedade com outros membros da família, incluindo alguns sobrinhos. “Acabei por ficar lá sozinha, porque os sobrinhos cresceram, casaram-se, foram-se embora”, diz e justifica o desfecho: “Nós não tínhamos dinheiro para manter aquela casa“, confirmando ao Observador que a venda foi fechada no final de 2023. “Nós ficámos muito mal de dinheiro, com o problema do banco”, afirma, explicando a situação: “Tínhamos ações do banco que nos davam um rendimento e, de um dia para o outro, as ações passaram a valer nada”.
“Nenhum de nós [os cinco irmãos ou respetivos herdeiros] tem dinheiro para arcar com as despesas daquela casa, aquilo dá muita despesa, sobretudo nos meses de inverno, quando as ondas e a espuma do mar, levada pelo vento, chegam às paredes da casa”, acrescenta Mary Salgado, garantindo que não falou com o irmão [Ricardo Salgado] sobre a venda da casa – “foi tudo tratado pelos advogados”, até porque Salgado “já não está bem, já não se consegue ter uma conversa com ele“. O ex-banqueiro reside numa propriedade contígua em Cascais, na Rua Pedra da Nau.
O arresto que obrigou os restantes acionistas a aceitarem o desconto no preço
O contrato de promessa de compra e venda da Casa Dos Pórticos – Sociedade de Administração de Bens, empresa que detém a propriedade, foi assinado em março de 2023 com a Davis Investment Holdings, empresa detida por Anthony Lynn Davis, um investidor americano que foi fundador do fundo Anchorage e que, no mundo financeiro, é mais conhecido por Tony Davis, de acordo com o processo consultado pelo Observador.
[Já saiu o sexto e último episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo, aqui o terceiro, aqui o quarto episódio e aqui o quinto episódio.]
O negócio fez-se pelo preço de 16,5 milhões de euros. O contrato, porém, teve de ficar suspenso até chegar a autorização por parte de autoridade judiciária que tem sob gestão bens arrestados nos processos que envolvem o Universo Espírito Santo. Apesar de Ricardo Salgado já não ser acionista da empresa fundada pela sua mãe e irmãos no final do século passado, e para a qual foram transferidos os imóveis, 20% do capital estava ainda nas mãos de Maria João Salgado, a mulher do antigo banqueiro. Não obstante estarem casados em regime de separação de bens, os tribunais recusaram o pedido de levantamento do arresto feito pela defesa, e isso impediu a realização de duas tentativas de venda anteriores, que foram noticiadas nos media.
Em 2022, o Tribunal de Relação de Lisboa recusou o recurso para levantar o arresto preventivo. Em 2023 foi feito um outro requerimento ao juiz que já deu a permissão para operação avançar, com a condição que o encaixe da participação detida por Maria João Salgado ficasse arrestado – o que permitiu aos outros acionistas receberem o produto da alienação. No entanto, tiveram de aceitar um desconto face ao valor negociado com a Davis Investments, porque o gabinete de administração de bens arrestados apresentou uma avaliação superior ao preço negociado com o investidor americano.
Sem a parte arrestada, as irmãs de Ricardo Salgado e os descendentes dos irmãos (que entretanto morreram) receberam um total de 13,174 milhões de euros. Esta transação, fechada em setembro do ano passado, só foi noticiada pelo Correio da Manhã este domingo e estava a ser investigada há semanas pelo Observador, que pediu o acesso aos processos relativos aos bens do antigo banqueiro.
O procedimento cautelar do Tribunal Central de Instrução Criminal, consultado pelo Observador, mostra que o GAB (Gabinete de Administração de Bens) valorizou a propriedade em 18,688 milhões de euros, mas apontou para um valor de 16,632 milhões euros no contexto de uma venda imediata, uma vez que a operação já tinha sido objeto de contrato de promessa. Esta avaliação foi 132 mil euros superior ao preço negociado. O tribunal determinou que teria de ficar arrestado, ainda assim, um valor correspondente aos 20% da mulher de Ricardo Salgado com base nesta segunda avaliação, ou seja, 3,326 milhões de euros.
O comprador não colocou objeções desde que não tivesse que pagar mais do que os 16,5 milhões acordados. Em resultado desta condicionante, todos os restantes vendedores aceitaram ceder da sua parte uma pequena diferença de 26,4 mil euros, recebendo um pouco menos, para viabilizar a transação. A parte na venda de Maria João Salgado, os tais 3,326 milhões, permanece assim sob arresto.
O resto da contrapartida foi distribuída por seis acionistas na proporção da sua participação: as irmãs Maria do Espírito Santo Silva Salgado (Mary) e Ana Maria do Espírito Santo Silva Salgado tiveram direito, cada uma, a cerca de 3,3 milhões de euros (3,293 milhões de euros), o que equivale a 20% do capital que detinham respetivamente. Os quatro descendentes dos dois irmãos, João e António, acionistas originais da sociedade, receberam, cada um, 1,647 milhões de euros relativos a 10% por titular.
Depois da não oposição ao negócio pelas partes e pelo Ministério Público, a transação foi finalizada em setembro de 2023. O montante relativo à participação da mulher de Ricardo Salgado ficou depositado numa conta indicada pelo gabinete de arresto de bens, tendo ficada autorizada a mobilização do montante necessário para o pagamento de imposto sobre mais-valias.
Ricardo Salgado terá passado os seus 20% à mulher antes da queda do banco
A Casa dos Pórticos entrou para a família Espírito Santo em 1936 comprada por 120 contos. Em 1998, foi constituída a empresa a Casa dos Pórticos — Sociedade de Administração de Bens —, que recebeu como dotação inicial a propriedade então detida pela mãe de Ricardo Salgado, Maria da Conceição Cohen Espírito Santo Silva, avaliada, na altura, em cinco mil contos, correspondendo a 50% do capital. Os cinco filhos — Maria, Ricardo, Ana, António e João — entraram, cada um, com mil contos, o que correspondia então a 10% do capital da sociedade para cada um.
Maria da Conceição, já viúva, deu a propriedade como entrada em espécie para a sua participação social na sociedade que ficou, nessa altura, a ser presidida por Ricardo Salgado.
Ao longo dos anos Ricardo Salgado assumiu a presidência e só em março de 2014 renunciou ao cargo para o qual tinha sido nomeado em 2013 para um mandato de quatro anos (até 2016). A carta de renúncia, consultada pelo Observador, não avança motivo para a demissão, mas três meses depois dá-se o estrondoso colapso do BES e de todo o Grupo Espírito Santo. Quem assumiu a presidência da Casa dos Pórticos foi a irmã, Maria do Espírito Santo Salgado (Mary), que ficou no cargo até à venda da propriedade em setembro de 2023.
“Como presidente não fazia muito, apenas conferia se as despesas estavam a ser todas pagas, o que nem sempre era fácil porque era muito dispendioso manter aquela casa”, recorda Mary Salgado.
Desde a criação da empresa, os irmãos terão ainda ficado com a participação que equivalia ao património imobiliário que era da mãe, que morreu em 2010. Nos últimos anos entraram nos órgãos sociais representantes das gerações mais jovens, como Bárbara Fiúza Salgado e Vanessa Fiúza Salgado Guerra Pinto. A empresa foi colocada à venda em 2019 por 20 milhões de euros, segundo noticiado à data, tendo voltado ao mercado em 2022, por cerca de 16 milhões de euros, de acordo com uma notícia do Jornal Económico. De acordo com a documentação consultada pelo Observador, o valor tributário do imóvel para efeitos do IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) estava valorizado em pouco mais de um milhão de euros, uma avaliação com data de 2015.
Em setembro de 2023 a Casa dos Pórticos passou a ser administrada por Anthony Lynn Davis, Susy Carla Davis, o casal que tem uma morada no centro histórico de Cascais, e Fátima Martins dos Reis. Já este ano foi transformada em sociedade de administração de bens unipessoal, tendo sido também realizado um aumento de capital de 1,050 milhões de euros, subscrito pela Davis Investment Holdings.
Imóvel é de interesse municipal e autarquia acompanha obras
Anthony Davis vai tornar a Casa dos Pórticos a residência permanente da família, o que obrigou à reabilitação do palacete com “cuidado e respeito pelo seu valor histórico”.
As obras, que são visíveis da via pública, incidem sobre o palacete cor de rosa que é composto por cave, rés-do-chão, sótão e terraço sobre colunas com uma área coberta de 260 metros quadrados. Há ainda um segundo edifício, mais pequeno, com área coberta de 156 metros quadrados e uma piscina de 260 metros quadrados.
O projeto de reabilitação da casa principal deu entrada na Câmara de Cascais este ano, com a assinatura do arquiteto Manuel Aires Mateus, e está a cargo da VerdeOeste, uma empresa de gestão de projetos com sede em Oeiras, que se tem especializado no apoio e desenvolvimento de investimentos e projetos de estrangeiros a viver em Portugal.
É um projeto que já não requer a aprovação prévia da câmara, uma vez que deu entrada após já estar em vigor o simplex no licenciamento urbanístico. No entanto, como a propriedade está classificada como sendo de interesse municipal, a Câmara de Cascais tem de acompanhar e fiscalizar a execução das obras para assegurar que cumpre o projeto entregue.
Com mais de 8.681 metros quadrados e com uma frente mar virada para a Boca do Inferno, a Casa dos Pórticos foi palco de histórias reais que poderiam ter sido cenas de filmes clássicos. Desde festas grandiosas — era muito usada para os casamentos de família —, a episódios de espionagem durante a Segunda Guerra Mundial, à famosa passagem do Duque de Windsor e da mulher Wallis Simpson por Portugal. O casal ficou hospedado na suite do palacete com piscina e vista para o mar depois de ter sido impedido pelo Governo de Churchill de usar a embaixada britânica, pela desconfiança da simpatia do duque pelo regime nazi.
As ligações a Portugal do investidor ambientalista que comprou a casa
Algures entre 2014 e 2015, Tony Davis começou a sentir que “já não estava tão entusiasmado, todas as manhãs, por acordar e ir para o escritório”. Na altura, o financeiro norte-americano vivia e trabalhava em Londres, a expandir as operações europeias da gestora de investimentos que tinha ajudado a fundar, uma década antes, em Nova Iorque: a Anchorage Capital Group. Foi nessa altura, com 45 anos feitos pouco tempo antes, que decidiu mudar de vida.
“Por vezes podemos achar que é só uma fase menos boa, que acabará por passar, mas depois de algum tempo percebi que já não tinha a mesma motivação e já não encontrava significado no trabalho que estava a fazer. Por isso decidi encontrar alguma coisa que tivesse mais significado para mim e que estivesse mais alinhado com aquilo que eram os meus interesses pessoais”, explicou Tony Davis numa apresentação a estudantes de uma escola secundária do Connecticut.
Poucos meses depois, estava a sair da Anchorage, uma empresa que, alguns anos mais tarde, em 2018, seria notícia em Portugal por comprar uma das maiores carteiras de ativos tóxicos (imóveis e créditos problemáticos) vendidos pelo Novo Banco, a chamada “carteira Viriato”. A Anchorage era, na altura em que Tony Davis saiu, uma empresa que geria mais de 20 mil milhões em ativos. Hoje serão mais de 32 mil milhões de dólares.
Novo Banco acorda vender imóveis a fundos da Anchorage e espera receber 389 milhões de euros
O início da carreira dera-se, antes, no “gigante” da banca de investimentos Goldman Sachs, para onde entrou em 1997. Tinha-se formado na Brigham Young University (Utah), uma universidade ligada à Igreja Mormon, e tinha feito o MBA na The Wharton School (Pensilvânia).
Quando a Anchorage comprou a “carteira Viriato”, ao Novo Banco, Tony Davis já tinha saído há três anos para fundar, com a mulher – Suzy Davis – uma nova empresa de gestão de investimentos. Mas era uma empresa com um objetivo diferente: investir apenas em empresas e em novas ideias que se alinhassem com os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável definidos pela Organização das Nações Unidas (ONU).
“De todas as emissões carbónicas industriais do mundo, 161 empresas representam 80% dessas emissões”, explicou Tony Davis, na apresentação que fez na escola do Connecticut. “Estamos a falar de empresas do setor do petróleo e gás, transporte marítimo, cimenteiras, siderúrgicas – e parte do nosso trabalho é interagir com essas empresas, diretamente ou através de algumas ONG das quais somos parceiros, com o objetivo de pressionar estas empresas e levá-las a reduzirem as suas emissões carbónicas”, afirmou.
A empresa de Tony Davis, que tem sede em Manhattan, chama-se Inherent Group e é composta por uma pequena equipa que inclui três portugueses. Tony Davis é o presidente executivo e o chief investment officer. Numa curta biografia no site da Inherent, Tony diz-se “apaixonado por investimentos e por devolver” os frutos desses investimentos com a sociedade.
Aos alunos da escola do Connecticut, Tony Davis explicou que, quando ainda estava na Anchorage, começou a ter contacto com várias pessoas ligadas a empresas (de vários setores e países) que tinham ideias que poderiam beneficiar o mundo e as sociedades, incluindo as populações mais carenciadas. “Foi aí que percebi que poderia fazer aquilo que sabia fazer – investir capitais – mas contribuir para resolver estes desafios que enfrentamos na área das desigualdades, das alterações climáticas, etc.”
A Inherent não é uma empresa “not-for-profit”: é uma empresa que busca o lucro, porém “com um propósito”, relacionado com o progresso social e ambiental. “Acredito que os negócios e os investimentos podem e devem ter um papel de liderança nas questões ambientais e sociais”, afirma o presidente, na biografia. Sob gestão da Inherent estão mais de mil milhões de dólares em investimentos cotados e não-cotados. Esse é o volume de dinheiro de terceiros, colocado sob a gestão da empresa de Tony Davis. Mas, além disso, a Inherent também gere o capital próprio de 55 milhões com a qual foi criada.
Na biografia que está no site da Inherent, o financeiro fala um pouco sobre a sua vida pessoal: “Sou casado, tenho dois filhos pequenos que me mantêm bastante ocupado, mas quando posso gosto de escapar um pouco para fazer desportos na natureza: esquiar, ciclismo de montanha e kite-surfing”.
Corrigida a referência ao arquiteto do projeto para a Casa dos Pórticos.