A analogia bem-humorada é da equipa de economistas do banco ING: a proposta da Comissão Europeia para o Fundo de Recuperação pós-Covid é como uma garrafa de vinho daquelas mais caras, que se encontram na prateleira do supermercado. “Sabemos que seria um enorme prazer, que seria algo sensacional, poder comprá-la para a poder saborear. Mas também sabemos que, muitas vezes, aquela garrafa cara só foi colocada ali para fazer com que as garrafas um pouco mais baratas pareçam, em comparação, ter um preço mais razoável”.
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, alertou esta quarta-feira que esta crise é muito mais grave do que a crise da década passada, a chamada “crise das dívidas soberanas”. Por isso, instou os líderes europeus a não arrastar os pés, a serem ainda mais rápidos a socorrer as economias do que foram a socorrer os bancos na última crise. Porém, apesar do repto da presidente da Comissão Europeia, a negociação que agora se segue não se afigura fácil. E os analistas acreditam que não haverá acordo antes do final do ano. E um acordo que não irá tão longe quando vai esta proposta – provavelmente, no final a Europa acabará por comprar um garrafa de vinho de valor mais comedido.
Os analistas acreditam que ainda este ano (embora não em julho, como Von der Leyen pediu) haverá acordo em torno de um plano de recuperação que poderá incluir boa parte das linhas principais com que este se cose. Mas as negociações não se afiguram fáceis. Um responsável político holandês, que não quis ser citado, disse à CNBC que “as posições estão muito afastadas e esta é uma questão que carece de unanimidade – portanto as negociações vão ser longas”. E atirou: “é difícil imaginar que esta proposta corresponda aos contornos finais que o acordo irá ter”.
Uma coisa é certa: se o plano que vier a concretizar-se não for demasiado aguado pela intransigência dos “quatro países frugais”, este “projeto ambicioso dará início a um novo ciclo do projeto Europeu”, comenta Carlos Almeida, diretor de investimentos do Banco Best, ao Observador. Mas há um problema: “este é um plano que se baseia em quadros plurianuais de financiamento comunitário ao longo de vários anos – o que falta aqui é a ideia de emergência, de fazer com que haja fundos a chegar à economia real… já, porque eles são necessários já”.
Fundo “dificilmente estará operacional antes do final do ano”
O professor universitário e especialista em Assuntos Europeus Miguel Poiares Maduro está muito longe de acreditar numa solução breve. Pelo contrário. “Dificilmente este instrumento estará operacional antes do final do ano” – diz ao Observador – pelo que “até lá os Estados-membros dependem deles próprios e da política do BCE, que lhes permite ir ao mercado a taxas de juro muito baixas para se financiarem e do reforço previsto para o mecanismo de estabilidade europeu”.
Fundo Europeu “dificilmente estará operacional antes do final do ano”, avisa Poiares Maduro
A razão para esta previsão sombria é clara. “A grande dificuldade aqui é a necessidade de unanimidade. E mais, neste caso, na medida em que a emissão da dívida está dependente da adoção de uma nova decisão sobre a forma como se financia e o volume de financiamento do orçamento europeu, o chamado teto dos recursos próprios, é uma das poucas decisões na UE que exigem não apenas unanimidade no Conselho, mas a ratificação por todos os parlamentos nacionais”.
Ou seja, além das divisões que já são difíceis de limar no Conselho Europeu com os 27 chefes de Estado e de Governo, os problemas serão ainda mais difíceis de ultrapassar porque “há governos nacionais que não têm uma maioria estável no seu parlamento”.
Ponto por ponto. Com que linhas se cose a “bazuca” da UE contra a crise económica
“Portanto, nós podemos ver este processo todo bloqueado num parlamento nacional em que exista uma maioria de bloqueio. Este é o risco muito grande que temos aqui. Por exemplo num parlamento tão fragmentado como o holandês, o governo holandês vai até usar isso como pretexto para obter concessões por parte dos outros Estados”, considera Miguel Poiares Maduro.
Que tipo de concessões? Poiares Maduro diz que algumas até já lá estão – e de forma bem clara – na proposta da Comissão. “Não só há uma condicionalidade ao semestre europeu como também, num dos mecanismos – a Ferramenta de Recuperação e Resiliência, que mobiliza 560 mil milhões – o acesso às transferências está condicionado ao cumprimento de reformas”. Algo que a proposta de plano franco-alemão deixava antever.
Fundo de recuperação. Alemanha e França acenam com fundo perdido, mas há condições
“Não acredito que seja algo como consolidação orçamental, mas pode ser reformas do mercado do trabalho, rendas em determinados setores económicos, reforço das entidades reguladoras”, acredita Miguel Poiares Maduro. Ou seja, mais do que suficiente para acrescentar mais incerteza quanto à aprovação nos parlamentos nacionais.
Em termos líquidos, Portugal recebe mais oito mil milhões
Os líderes que se vão reunir (provavelmente por videochamada) no Conselho Europeu de 18-19 de junho irão fazer uma primeira análise da proposta, comparando-a com a proposta Merkel/Macron e, também, com a “contra-proposta” apresentada alguns dias depois pelos “quatro frugais”: Países Baixos, Áustria, Suécia e Dinamarca – uma contra-proposta que se afirmou frontalmente contra a emissão de dívida conjunta e contra um reforço significativo do orçamento comunitário.
Mas é exatamente aí que assenta o plano apresentado esta quarta-feira por Ursula von der Leyen no Parlamento Europeu — embora não com a ambição que os países do Sul esperariam. A solução apresentada — com um pedido de empréstimo da Comissão, em nome de toda a UE — permite a Ursula von der Leyen argumentar que a proposta não leva os estados-membros a uma mutualização da dívida. Há um esforço partilhado, mas a dívida fica à responsabilidade de cada um. Os estados-membros “têm um controlo muito claro sobre as partes que lhes cabem”, sublinhou a presidente do executivo comunitário, em conferência de imprensa, referindo-se não só ao momento em que a UE pede emprestado (as garantias nacionais) mas também aos pagamentos do empréstimo ao longo das próximas décadas.
Estão em causa 750 mil milhões de euros, que acrescem ao orçamento comunitário de 1,1 biliões de euros para os próximos sete anos. Ou seja, no total, estão em causa 1,85 biliões de euros – graças a esse reforço anunciado esta quarta-feira. O plano passa, em parte, pela emissão de dívida nos mercados, por parte da União Europeia, dívida que depois será reembolsada em prazos ultra-longos, até 2058.
Ursula von der Leyen tranquiliza os países “frugais” — não há mutualização da dívida
Tratando-se do orçamento comunitário, os países com as contribuições mais elevadas vão acabar por pagar uma parte maior da fatura, o que significa que em termos proporcionais irão contribuir com mais do que aquilo que receberão. Segundo cálculos avançados pela agência Bloomberg, em termos líquidos, Portugal acabará por receber oito mil milhões de euros a mais, entre aumento da contribuição e aumento do benefício. Outros países poderão receber mais, em termos líquidos: Espanha 33 mil milhões, Polónia 21 mil milhões, Grécia 16 mil milhões e Itália 15 mil milhões.
Em termos brutos, porém, Portugal poderá receber 26,3 mil milhões de euros em subvenções e empréstimos no âmbito do Fundo de Recuperação – 15,5 mil milhões de euros em subvenções (distribuídas a fundo perdido) e a 10,8 mil milhões de euros sob a forma de empréstimos concedidos em condições favoráveis. Para a chave de alocação dos empréstimos – numa base voluntária, ou seja, os Estados-membros é que decidem se os solicitam -, foi tido em conta o Produto Interno Bruto ‘per capita’ e o nível de dívida, tendo neste caso Portugal sido colocado no grupo de países com um PIB ‘per capita’ abaixo da média da UE e “dívida elevada”.
Uma das coisas que os analistas dizem que falta perceber é exatamente como é calculada a repartição para cada país. Os países mais afetados pela pandemia de covid-19, em termos humanitários – Itália e Espanha – poderão receber, respetivamente, 172,7 mil milhões de euros (81,8 mil milhões de euros em subsídios e 90,9 mil milhões em empréstimos) e 140,4 mil milhões de euros (77,3 mil milhões de euros em subsídios e 63,1 mil milhões em empréstimos).
Filipe Garcia, economista da IMF – Informação de Mercados Financeiros, comenta que “até se perceber exatamente em que é que estes fundos vão ser aplicados, em que condições e com que repartição entre os países, parece que estamos aqui a pagar ‘ao morto’, porque não me parece que, se estamos a falar num plano de recuperação económica, que a economia italiana ou espanhola tenha sofrido mais do que a portuguesa, que também depende bastante de setores como o turismo”. “Para já”, diz o especialista, “este programa parece ser pouco mais do que uma prova de vida da Comissão Europeia, que até pode resultar em algo concreto e, de facto, inclui a novidade da emissão de dívida conjunta, mas para já não terá consequências muito concretas para a economia”.
Subvenções e empréstimos vs subvenções ou empréstimos
Aos 500 mil milhões de subvenções propostos por Merkel/Macron – que são, no fundo, um reforço do quadro comunitário 2021-2027 – a Comissão Europeia acrescentou 250 mil milhões em possíveis empréstimos em condições favoráveis. Dessa forma, tentou dar um sinal aos “quatro frugais” que os empréstimos também são uma das ferramentas a que a Comissão Europeia quer recorrer. O problema é que a oposição destes países não existe porque faltava acrescentar empréstimos à proposta franco-alemã, a oposição dos países existe porque querem que o Plano de Recuperação se baseie apenas em empréstimos. É a crucial diferença entre subvenções E empréstimos e subvenções OU empréstimos.
A principal plataforma do plano apresentado pela Comissão Europeia é a chamada Ferramenta de Recuperação e Resiliência, ou RRF na sigla anglo-saxónica. São até 560 mil milhões de euros a que os países podem aceder tendo por base uma fórmula calculada entre a dimensão da economia nacional, a população, o impacto da pandemia no PIB e o nível do desemprego jovem em cada país. Além deste mecanismo novo, é lançado o chamado REACT EU, uma nova iniciativa de apoio à coesão que terá um orçamento de 55 mil milhões, disponível já este ano (desejavelmente).
A Comissão Europeia defende que “um acordo político rápido ao nível do Conselho Europeu, até julho, é necessário para dar novo dinamismo à recuperação e equipar a UE com uma ferramenta poderosa para ajudar a economia a restabelecer-se e a preparar-se para o futuro”. Ou seja, a bola volta para Angela Merkel, Emmanuel Macron e os demais líderes políticos do Conselho Europeu, incluindo António Costa. “Adivinham-se negociações ferozes antes de se chegar a um acordo”, diz o ING, ao que o Berenberg Bank acrescenta que “estas propostas são o início das negociações e não o fim deste processo”.
Apesar de desvalorizar as divergências, que têm sido evidentes, a presidente da Comissão sempre vai avisando que é preciso pôr para trás das costas “o velho preconceito e as velhas divisões”; que a UE “não pode permitir” que sejam acentuadas as discrepâncias entre os 27 estados-membros nem as “distorções no mercado único”; e que há uma escolha a ser feita — ou se deixam “países, regiões e povos para trás” ou é dado “o passo em frente”, pela próxima geração.
O recado deve ter chegado a Viena, Haia, Copenhaga e Estocolmo, mas a primeira reação entre os países “frugais” foi a esperada. O primeiro ministro sueco, Stefan Lofven, achou “incrível” que a Comissão tenha sugerido — tal como o plano franco-alemão — 500 mil milhões de euros em subvenções “sem qualquer exigência de devolução”. O dinheiro a fundo perdido é uma das grandes divisões neste debate — e não está fechado, como já reconheceu a presidente da Comissão Europeia.
O Governo sueco mostrou-se ainda desapontado, porque o dinheiro proposto pela Comissão “ainda é muito elevado”. O tamanho da “bazuca” incomoda os países “frugais”, mas França já avisou, depois da apresentação de Ursula von der Leyen, que qualquer acordo que piore a proposta, “nomeadamente no valor das subvenções do plano de recuperação, não é possível, porque não responderia às necessidades”.
Governo português bem alinhado com a posição de França
A resposta de Lisboa surgiu pela voz de António Costa, num discurso muito alinhado com Paris. Logo após a apresentação do plano por Von der Leyen, o ministro das Finanças francês disse que, “com esta proposta, a Comissão Europeia está a bater forte e a bater bem, está a portar-se à altura das suas responsabilidades históricas”. E deixou um apelo aos frugais para que não bloqueiem a decisão no Conselho Europeu.
E António Costa? Descubra as diferenças. Para o primeiro-ministro português a Comissão esteve “à altura do desafio que a Europa enfrenta”, porque apresentou uma proposta “ambiciosa”. Trata-se de “uma resposta robusta à crise sanitária, económica e social” que os Estados-membros atravessam, disse o governante português. E, tal como tinha feito Le Maire, deixou um toque a quem está a bloquear o acordo.
“Cabe agora ao Conselho não frustrar esta esperança”. Leia-se: a bola está do lado dos “frugais”, porque os outros já aceitam, com mais ou menos reservas, este modelo.
Um dado de calendário importante pode ajudar a facilitar um encontro de posições. É que a Alemanha já está a preparar a sua presidência da União Europeia (2º semestre de 2020) e Berlim será, ainda mais por essa razão, o elemento central para agregar o consenso nos 27 países.
“Pode muito bem acontecer que este seja uma das últimas investidas de Angela Merkel, no sentido de liderar a Europa no sentido de mais integração”, afirmam os economistas do ING, na mesma linha da opinião do Berenberg Bank, que acredita que “ Alemanha irá, provavelmente, fazer valer o seu peso político”. “Mas este é um debate que poderá não ser concluído antes do final do ano – e quanto mais cedo os líderes políticos se puderem reunir presencialmente, melhor”, acrescenta o banco de investimento.
No final, acrescenta o Berenberg, “acreditamos que os 27 países cheguem a acordo em relação a uma versão moderadamente aguada desta proposta apresentada esta quarta-feira”. Será, a confirmar-se, “o típico compromisso europeu, a meio-termo, que nem irá confirmar as melhores esperanças dos maiores entusiastas da União Europeia nem confirmar os piores receios dos maiores céticos do projeto europeu”.